No ano passado fui convidado para participar do livro De Tudo Se Faz Canção – 50 anos do Clube da Esquina que comemorava meio século desta obra ímpar de Milton Nascimento e Lô Borges que colocou no mapa da música brasileira toda uma nova cena e novos temperos musicais que mudaram a cara de nossa música. Concebido e organizado pela Chris Fuscaldo, através de sua editora Garota FM, ao lado de um dos patronos desta cena, o próprio Marcio Borges, letrista do grupo e irmão de Lô. O livro conta esta saga do ponto de vista de seus protagonistas, com depoimentops de Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Fernando Brant, Wagner Tiso, Toninho Horta, Alaíde Costa e muitos outros que participaram do disco, além de seus próprios autores, Milton e Lô e um extenso faixa a faixa em que vários pesquisadores, críticos e jornalistas, como Leonardo Lichote, Kamille Viola, Marcelo Costa, Ana Maria Bahiana, Charles Gavin, Carlos Eduardo Lima, Patrícia Palumbo e Ricardo Schott, entre outros, atravessam as clássicas canções deste disco histórico. É nessa seção que faço minha participação, dissecando as duas versões de “Saídas e Bandeiras” e mostrando como a força destas duas pequenas canções atravessou décadas para ressurgir numa apresentação que vi duas bandas contemporâneas em 2015, quando O Terno e os Boogarins celebravam a importância do disco a partir de uma transformação conjunta desta microcanção no bis de seu show conjunto no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, tornando-se um épico de mais de doze minutos com duas baterias, dois baixos e três guitarras. De Tudo Se Faz Canção ainda fala de outros grandes nomes ligados ao disco (como Eumir Deodato, Paulo Moura e o fotógrafo Cafi), cita as comemorações do cinquentenário do disco no ano passado, incluindo a turnê de despedida de Milton Nascimento, e reúne fotos raras com um acabamento gráfico de primeira. O livro pode ser comprado no site da Garota.fm e aproveitei para falar do livro nesta sexta-feira em que os Boogarins tocam na íntegra o Clube da Esquina no teatro do Sesc Pompeia, a partir das 21h. Os ingressos para o show já estão esgotados, mas vai que aparece alguém vendendo algum que sobrou na hora…
“Já tinha escutado músicas dos Mutantes na infância e adolescência, mas conheci mesmo a banda em 1999, através da coletânea do David Byrne The Best of Os Mutantes, que tinha como subtítulo Everything Is Possible!”, lembra Chris Fuscaldo, que sofreu o impacto do grupo paulistano ao mesmo tempo em que este ganhava ares de lenda muito maiores do que os que poderia imaginar em seu tempo. Ela logo completou a coleção de discos e escreveu sua monografia de conclusão de curso sobre o grupo, entrevistando integrantes originais da banda no início do século para fazer seu TCC. O grupo é alvo do segundo livro sobre música da jornalista, Discografia Mutante, que será lançado neste sábado na Baratos Afins, em São Paulo (mais informações aqui), e na próxima sexta no Sebo Baratos, no Rio (mais informações aqui). O livro usa o formato de dissecção da discografia do grupo, utilizando-a como fio condutor para contar a história do passar dos anos da banda e já havia sido testado no primeiro livro sobre música de Chris, Discobiografia Legionária, sobre o Legião Urbana.
Os dois projetos nem eram as principais iniciativas de Chris – imersa há dez anos no trabalho de uma biografia de Zé Ramalho e que já iniciou uma segunda, sobre Belchior – e surgiram de possibilidades de trabalho que apareceram em sua vida. Começou a falar sobre Legião a convite da gravadora EMI e teve o insight de falar sobre os Mutantes pelo cinquentenário de sua discografia neste ano. As duas discobiografias se diferem também pelo formato: a primeira saiu pela editora LeYa e a segunda pela própria editora de Chris, que financiou o projeto via crowdfunding. Bati um papo com ela sobre a realização deste novo livro, que pode ser comprado em seu site.
Como foi a realização do seu primeiro Discobiografias?
Minha primeira “discobiografia” foi a Discobiografia Legionária, em que conto as histórias dos álbuns da Legião Urbana. Em 2008, eu fui convidada pela gravadora EMI Music para preparar textos que seriam encartados na reedição em vinil dos 8 discos de carreira da Legião Urbana que seriam lançados em 2010. Para mim, o projeto pararia por aí, até porque, em 2010 meu projeto era mergulhar nas pesquisas para a biografia de Zé Ramalho. Mas, com as entrevistas que fiz, percebi a riqueza do material e, ao receber diversos e-mails de fãs, vários reclamando do difícil acesso aos discos, que saíram com um preço muito alto, achei que a história que estava contando nos encartes renderiam um livro. Em 2016, após assinar com a editora LeYa, fiz nova pesquisa e muitas outras entrevistas para falar também dos discos ao vivo, das coletâneas e dos projetos solo de Renato Russo. Minha ideia era colocar no livro a biografia de toda a obra da Legião Urbana enquanto os três estavam vivos e juntos, tudo isso como se estivesse dentro do estúdio com a banda.
Os Mutantes foram uma escolha óbvia para continuar o projeto?
Em fevereiro deste ano eu tive um insight durante uma viagem pela Califórnia, onde estava respirando paz, amor e psicodelia: “Em 2018 o primeiro disco dos Mutantes completa 50 anos!”, pensei ao acordar no meio de uma madrugada. Aí, lembrei que minha monografia da faculdade, sobre as capas dos discos da banda, estava guardada desde 2002 e que eu tinha ótimas entrevistas com eles da época e feitas depois, durante meus anos trabalhando como jornalista de música para diversos jornais, revistas e sites. Achei que seria impossível lançar ainda este ano se tivesse que começar a buscar uma editora e lembrei do quão bem sucedido foi o projeto do Bento Araujo, que lançou o livro Lindo Sonho Delirante através de financiamento coletivo. Pedi umas dicas a ele e joguei a campanha no ar em março, assim que voltei para o Rio. Para mim, Mutantes é sempre uma escolha óbvia, mas fiquei impressionada como ninguém tinha tido essa ideia justamente no ano em que a banda – que tem outra formação, mas ainda é liderada por Sérgio Dias – veio ao Brasil para shows e foi super celebrada pelos fãs.
O que você descobriu pesquisando o livro que mais te impressionou?
Eu tinha medo de não descobrir nada pelo fato de já existir uma biografia dos Mutantes que considero super boa, a do Carlos Calado, A Divina Comédia dos Mutantes. No entanto, ele lançou aquele livro em 1995, então, muita água rolou depois disso. Por exemplo, a história do álbum Tecnicolor é contada pela primeira vez neste meu Discobiografia Mutante. Também resolvi incluir os álbuns lançados após o retorno da banda, em 2006, para um show no Barbican Theatre, em Londres. E, claro, descobri coisas de dentro do estúdio que não estavam no livro do Calado porque assumi esse viés que detalha melhor o que aconteceu durante as gravações do que na vida pessoal de cada um. Óbvio que é impossível deixar as relações entre eles de lado, mas eu tive muito interesse em abordar equipamentos, sonoridades, trajetória nos palcos etc.
Que registro inesperado que você encontrou?
Eu adorei saber, por exemplo, que já em 1969, nos palcos, os Mutantes tinham uma potência mais de 10 vezes maior do que a de Roberto Carlos devido ao equipamento em que tocavam, produzido por Cláudio César, o irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio. E que, na época do disco Tudo Foi Feito pelo Sol, o PA da banda pesava mais de 200 quilos, o que inclusive tornava alguns shows inviáveis.
Você lançou um livro por uma editora e outro via crowdfunding. Qual sua experiência neste processo? Pretende repetir o crowdfunding?
Gostei da experiência de fazer o crowdfunding. Fui a responsável por todas as etapas do processo e isso me ensinou muito. Acabei lançando minha própria editora, a Garota FM Books, pois na hora de fechar o livro, descobri que eu mesma teria que gerar o código ISBN. Também já estudei como farei a conversão do livro para E-book. E editei a mim mesma, pois escrevi, coordenei as revisões e traduções e ainda administrei a diagramação junto ao Leonardo Miranda, que fez um trabalho lindo, mas sempre muito atento ao que eu queria. Eu repetiria o processo, mas agora preciso me dedicar aos dois livros que já estavam prometidos a uma editora antes de eu dar esse mergulho no mundo dos Mutantes entre março e agora.
Qual o próximo livro?
Estou escrevendo uma biografia de Zé Ramalho há anos, mas parei de prometer que ele está “prestes a sair” desde que percebi que este é um trabalho bem mais difícil do que os outros que fiz até agora. Já faz mais de 10 anos tudo começou. É uma pesquisa mais difícil, mais cara, com distâncias mais longas para percorrer, com entrevistas com personagens mais complexos. É um dos projetos que mais me deu prazer na vida, pois amo o universo nordestino no qual a história se inicia e acho extremamente necessário falarmos sobre ele. Por causa dele, fiz um mestrado e engatei em um doutorado, que está em curso. Por causa dele, iniciei também uma pesquisa para um livro sobre Belchior, que é este segundo que está em andamento, mas sobre o qual ainda não consigo falar muito. E, bom, tenho uma tese para escrever até o fim de 2019. Então, acho que tô cheia de coisa para fazer, né?
O livro é bilíngue e o formato é parecido com o Lindo Sonho Delirante do Bento Araújo. Foi uma referência para este livro?
O Lindo Sonho Delirante foi uma super inspiração! Fiquei encantada quando conheci o livro do Bento e ele me deu várias dicas para que minha campanha fosse bem-sucedida. Interessante que nos conhecemos justamente porque ele estava de olho no meu Discobiografia Legionária e eu, no LSD dele. Nos encontramos para trocar livros sobre discos. Acho que a diferença entre o trabalho dele e o meu é que ele faz resenhas e eu emendo narrações.
Como anda o jornalismo cultural e especificamente de música no Brasil hoje? Como você se informa?
Todos os dias, eu fico de olho no Facebook para ver o que meus amigos, parceiros ou pessoas que eu sigo do mundo da música compartilharam. E sigo as páginas dos blogs, jornais e revistas via esta rede social. Fora isso, leio revistas, sendo que a Rolling Stone acabou de me privar da única leitura de música que eu fazia nesse formato; agora só me restaram as revistas femininas, que sempre gostei de acompanhar. E tenho uma assinatura de um jornal somente aos domingos; durante a semana, fico de olho no caderno cultural dele e no de um outro de São Paulo que acho que tem mais meu perfil. A verdade é que minha vida tem me levado a viver mais do passado do que do presente. Ando lendo muito mais livros.