Chega de Saudade – João Gilberto

, por Alexandre Matias

Começo a postar aqui algumas resenhas que fiz pra edição dos 100 melhores discos da música brasileira que saiu na Rolling Stone com o Faustão na capa. Começando pelo clássico do João.

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“Mas eles são quatro e cantam em inglês”, ria Tom Jobim no Epílogo do escolástico Chega de Saudade, escrito por Ruy Castro em 1990. Naquele ano, conta o livro, a editora de direitos autorais BMI fez uma pesquisa para saber quais as músicas mais tocadas no mundo e sua “Garota de Ipanema” estava na quinta posição, atrás apenas de quatro canções dos Beatles – daí o motivo do gracejo. A brincadeira procede, mas por mais que “Garota de Ipanema” tenha sida apresentada ao mercado americano no mês seguinte à chegada de John, Paul, George e Ringo aos EUA (tanto a Beatlemania quanto a onda de bossa nova tomaram os Estados Unidos de assalto no primeiro semestre de 1964), ela não teria o mesmo impacto caso o velho maestro não tivesse conhecido João Gilberto.

Não é exagero comparar João Gilberto aos Beatles, pelo contrário. Ambos artistas inventaram o universo musical que habitamos hoje, criando amálgamas sonoros que moldaram os ouvidos da segunda metade do século vinte.

De Liverpool, no norte da Inglaterra, os quatro heróis britânicos ruminaram a música de rádio dos anos 50 (e não apenas o rock’n’roll, mas também soul, standards, doo-wop, rockabilly, country, surf music, folk e R&B) devolvendo-a ao resto do mundo como uma sonoridade sólida, coesa e autoral – que mais tarde o mundo chamaria apenas de “rock”. Sua grande sacada: reduzir todo o instrumental a duas guitarras, baixo e bateria e mesmo assim manter o som cheio e vibrante.

De Juazeiro, no norte da Bahia, nosso herói mascou o rádio dos anos 30 e 40 (e não apenas o samba, mas também jazz, músicas tradicionais, conjuntos vocais, samba-canção, música sertaneja, choro, música de fossa e o batuque) traduzindo-o para o resto do mundo como uma sonoridade igualmente sólida, coesa e autoral – que mais tarde chamaríamos apenas de “bossa nova”. Sua grande sacada: reduzir todo o instrumental apenas para seu violão.

Este é um caso à parte. Enigmático, cheio de acordes dissonantes e inusitados, seu violão reinventava a tradição rítmica brasileira ao atrelá-la à harmonia moderna para sempre. Enquanto a mão esquerda esticava-se para pressionar cordas distantes umas das outras, a direita recolhia-se quase fechada, com o polegar conduzindo o ritmo grave nas cordas mais grossas como um surdo de escola de samba e os outros dedos puxam as cordas mais finas, repetindo o toque do repique. Por cima, a voz.

Que voz. Nem rompantes de divas de jazz, lamentos dramáticos do samba-canção ou cantos bon vivant dos clones de Sinatra. João canta com a intensidade de quem conversa, calmo e sereno, deixando o som vibrar o mínimo possível.

Explorava vazios sonoros como Miles Davis começava a fazer na mesma época, mas não queria introspecção e sim tranqüilidade. Para isso, contou com Jobim na coordenação de seu primeiro disco, Chega de Saudade, quando posicionou estrategicamente as coordenadas de seu novo mapa: seis partes de novos compositores (Lyra, Bôscoli, Jobim, Vinícius), duas de Ary Barroso e uma de Dorival Caymmi, além de um tema quase religioso e duas quase instrumentais.

Os Beatles injetavam juventude, velocidade e brilho a uma cultura popular que descobria, fascinada, os poderes da comunicação global. João veio logo depois, pedindo calma, mas não como um bedel. Com seu violão, ele plantou a semente de uma árvore de silêncio, que se infiltrou no imaginário mundial e acompanha, discreta, a genealogia da música do fim do século. E se hoje não estamos berrando todos uns com os outros, culpe João.