Cezar Vieira (1971-2020)

Foto: Sora Maia

Foto: Sora Maia

Não conheci direito o Cezar Vieira, guitarrista da lendária banda indie baiana Brincando de Deus, que faleceu no último sábado. Estive com ele em algumas ocasiões, mas todos que o conheceram tinham enorme apreço pelo músico, um dos nomes a erguer o indie rock nordestino no mapa da música brasileira. Sem a Brincando, bandas, fanzines, cenas locais inteiras e até festivais que começaram a surgir a partir do meio dos anos 90, teriam um destino e um enfoque bem diferentes – e tão importante quanto a postura e a atitude de seu vocalista e principal compositor, Messias Bandeira, eram as guitarras de Cezar, delicadas e barulhentas ao mesmo tempo, que atingiam uma sonoridade que não se ouvia por aqui. Reproduzo abaixo o texto que Messias escreveu sobre a partida do amigo, cuja morte ainda não se sabe se está relacionada à maldita pandemia que assola o planeta. Pedi também para o Messias escolher uma música como trilha sonora deste post – e ele escolheu o clipe caseiro de “An Evening Out”, do primeiro disco da banda, o clássico Better When You Love (Me).

Obrigado, Cezar.

Quando a música parece maior do que a vida

“Bands, those funny little plans, that never work quite right” (“Holes”, Mercury Rev)

Mais uma camada de tristeza foi adicionada a estes tempos distópicos que estamos vivendo. E quão grossa é esta camada. Nosso guitarrista, amigo e irmão Cezar Vieira partiu no sábado, 23.05. Ainda estamos tentando entender o quadro de saúde que o levou tão rápido. Envoltos numa atmosfera de tantas perdas, queremos que família, fãs e amigos sejam reconfortados, ainda que isso não apague, de fato, algo inelutável: a dor pela perda de alguém tão central em nossas vidas.

Não quero elencar as qualidades de Cezar agora. Isto seria reduzir sua plasticidade vital, sua luz e seu encantamento. Sim, Cezar: “You made me realize”. Penso no seu olhar sobre a realidade. A tatuagem em seu braço (“What difference does it make?”) era mais do que uma citação à sua banda predileta depois da bddeus (cuja tatuagem ficava no braço oposto): era uma regra beneditina de vida, quase um koan. Não como um desprezo por tudo, mas exatamente pelo questionamento a tudo.

Jean-Yves Leloup nos conta que, certa vez, Jean Cocteau, ao ser perguntado “o que salvaria se sua casa pegasse fogo”, respondeu: “o fogo!”. Cezar era assim. E era assim que ele se agarrava à música e se desprendia da vida. Música, essa des-matéria viva à qual nos agarramos nestes 30 anos da “brincando de deus”, numa espécie de redenção diária, de religação com nós mesmos. Sim, nosso estúdio pegou fogo em 1999: salvamos a nossa música. Algo como “acender fogueira para apreciar a lâmpada elétrica”, como dizia Tom Zé.

Vendo Cezar partir tão rápido e tão cedo, percebo, agora, que nunca dei a resposta que deveria quando nos perguntavam “por que a banda se chama brincando de deus”: porque, às vezes, a música parece ser maior do que a vida. Tão desconcertante quanto dizer “I will live and then decide, I don’t care about my life (but I do)”, como escrevemos em nosso terceiro disco.

Os ensaios, as gravações, os shows, as viagens — todo este conjunto que parece encapsular a trajetória de uma banda —, misturam-se a algo maior: a intimidade de pessoas, a construção de uma comunidade no entorno da banda, a reverberação de nossa existência, como se estivéssemos a irradiar algum sentido para além de uma carreira artística.

Olhando em retrospecto, vejo que constituímos um método próprio que comutava a precariedade técnica em elaboração melódica, tudo isso com um objetivo absolutamente claro: nós buscávamos a canção perfeita por linhas tortas, ainda que este horizonte se mostrasse mais distante quanto mais navegássemos. Mas era nessa viagem que, distraindo-nos da ambiciosa meta, encontrávamos o som, o efeito, a poesia, a dança — guiados por uma militância independente que alguns achavam monástica demais. A história toda eu conto depois.

Nunca desistimos da Música, e Cezar era aquele que fazia renascer este desejo em estado bruto. Mesmo que ela estivesse difusa em nossas vidas aceleradas, dilaceradas. Ainda e sempre, “Love will tear us apart again”. Talvez seja isso que o tenha levado a um outro tempo de giro no relógio da vida.

Sua guitarra fará falta, especialmente neste momento em que a estridência e o ruído, aliados à melodia, são absolutamente necessários para enfrentarmos a tolice, a barbárie e a tristeza que, mais do que em qualquer outro lugar, afetam nosso país.

Que você siga em paz, Cezar, que seu caminho seja iluminado.
Que você faça uma boa travessia após esta intensa jornada.
Não quero que você descanse, pois você sempre nos lembrava nas mensagens das madrugadas: “ninguém dorme”.
Quero apenas que sua dor passe (“All I want in life is a little bit of love to take the pain away…”).

E que você nos envie, daí, músicas tão altas que possam ser escutadas através do vácuo espacial. Daí mesmo de onde você está : “Higher than the sun”, para além do “Wild Side”.

Messias G. Bandeira – 26.05.2020