Tudo Tanto #22: Céu inconstante

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Hora de republicar as edições da minha coluna Tudo Tanto que escrevi para a revista Caros Amigos nos útimos meses. A primeira da safra é a do mês de junho, quando escrevi sobre o Tropix da Céu.

Céu imprevisível
Em seu quarto disco, a cantora paulista se firma como o João Gilberto da música brasileira deste século

Encontrei com a Céu logo depois de ela ter terminado seu quarto disco e ela quase não cabia em si. Queria falar sobre o disco, queria mostrar o disco, queria dizer o nome do disco, dizer o que estava experimentando, o que havia inventado, quem havia participado. Mas sabia o quanto o sigilo era importante naquele estágio de gestação do álbum, que ainda estava tendo seu cronograma de lançamento agendado. A obra já estava terminada, o produto ainda não. Mas a vontade para mostrar o disco novo era tanta que ela preferiu trabalhar no campo subliminar, indo me encontrar vestida com uma camiseta do grupo paulistano Fellini. Confesso que a visão dela com a camiseta de uma banda tão importante para a cena independente brasileira quanto desconhecida do grande público me causou certo estranhamento, tanto que perguntei logo depois de nos cumprimentarmos. “Conheci faz pouco tempo”, ela me contou, empolgada, dizendo que estava escutando todos os discos da banda. Por mais que pudesse ter traçado uma conexão entre a banda paulistana e o novo disco dela (Céu lo-fi?) a dica invisível nunca me diria que ela estivesse prestes a lançar uma versão para uma das músicas do grupo. “Foi difícil escolher uma das músicas pra regravar”, ela me contou num outro encontro, quando já podia falar sobre o assunto.

Tropix, o disco que Céu revelou ao mundo no final de março, no entanto, passa longe das gravações de baixa fidelidade do Velvet Underground paulistano. O quarto disco da cantora é seu salto mais ousado, um mergulho na disco music e na pista de dança, na eletrônica e na vida noturna, no mundo digital e nos beats e loops. Um universo completamente avesso à aura rústica que ela carregava em seus ombros musicais, uma ambiência que cruzava a singularidade do reggae mais roots com a aspereza do samba mais cru, a tonalidade mais sépia da música latina e a candura da canção brasileira. Depois de discos de cores neutras, ela veio com um álbum preto, branco e prata, brincando com timbres sintéticos e com a linguagem digital.

E é tudo Céu. O disco foi produzido pela dupla Pupilo, o pulso preciso da Nação Zumbi, e Hervé Salters, o mago francês dos timbres eletrônicos por trás de projetos como General Elektriks e Honeycut. Conta com participações do guitarrista carioca Pedro Sá e da cantora paulista Tulipa Ruiz, tem canções coescritas com o goiano Dinho da banda psicodélica Boogarins e o pernambucano Jorge Du Peixe, vocalista da mesma Nação de Pupilo. Mas é tudo Céu.

A tradição do canto feminino no Brasil nos acostumou a tratar cantoras como intérpretes – que vão da simples definição do termo (em que basicamente cantam músicas compostas, arranjadas e produzidas por outros – quase sempre homens) ao limite da canção com o teatro (quando cantoras como Elis Regina e Maria Bethânia se entregam corporalmente à música). Mais uma das inúmeras facetas do secular machismo enraizado em nossas entranhas (e isso, de forma alguma, é demérito exclusivo do Brasil), sempre que pensamos em mulheres fazendo música, as vemos como musas escolhidas por homens talentosos ou controladores. Céu vira esse jogo. Porque seu disco é todo seu. Foi ela quem começou rascunhando as canções no computador, foi ela quem escolheu músicos e produtores, foi ela quem determinou o rumo a ser seguido, quem compôs as canções e deu o tom do novo álbum. Como em todos seus álbuns.

Ela é o João Gilberto de vestido que inventou essa nova bossa nova que gosto de chamar de música brasileira do século 21. Foi ela que mostrou para diferentes novas cantoras que não era preciso ter homens nos bastidores para determinar seu rumo. Foi ela também quem estabeleceu o parâmetro musical que não é preciso sublinhar forte os gêneros musicais em formação para se determinar pertencente a um clube A ou B de estilo musical, misturando tudo numa mesma sonoridade indefinível, ousada, mas, principalmente, pop. Tropix não é a nova joia em sua coroa de rainha da música brasileira: é o farol que determina o rumo daqui pra frente. Em seus três primeiros discos (Céu, Vagarosa e Caravana Sereia Bloom) ela traçou um perfil que ajudou a moldar a cena musical brasileira atual. Tal como João Gilberto cinquenta anos antes, não o fez de forma consciente, apenas deixou sua sensibilidade guiar o rumo. Mas acertou um nervo artístico que ecoou por diferentes artistas, cenas musicais, discos e shows. Injetou autoestima em uma cena musical que vivia sob a sombra de um cânone que parecia imutável. E mudou a cara da música brasileira.

Tanto que Tropix parece-se com outros dois discos de cantoras e compositoras que vieram depois dela. Tanto o Dancê de Tulipa Ruiz e Frou Frou de Bárbara Eugenia, ambos lançados no ano passado, disfar- çam-se de fúteis para passar mensagens bem fortes. Cada um apresenta uma sonoridade específica, todos os três fundados em cima de uma musicalidade brasileira que sucedeu a MPB dos anos 1970 e antecedeu o rock dos anos 1980. Uma atmosfera de pista de dança que ecoa a discoteca e os arranjos de Lincoln Olivetti, a carreira de Rita Lee após o grupo Tutti Frutti e os anos dance music de Gilberto Gil, a frugalidade de uma sonoridade de fácil absorção e com alto astral. Cada um deles chega dançando do seu jeito para revelar verdades mais difíceis de ser assimiladas do que o simples pop: Tulipa traz mestres como João Donato, Lanny Gordin e novos titãs como Felipe Cordeiro e o trio Metá Metá; Barbara entrega-se a mantras de autoconhecimento e às baladas intensas de Fernando Catatau e Tatá Aeroplano.

A superfície sintética e dance de Tropix guarda segredos densos e realidades flutuantes, como a própria versão que ela fez para “Chico Buarque Song”, dos acima citados Fellini, a latinidade teatral de “Sangria” e as três músicas que fecham o disco “Camadas”, “A Nave Vai” e “Rapsodia Brasilis”, cheias de cordas deslumbrantes, que apontam para um rumo completamente diferente da pista de dança (embora as duas últimas façam dançar). O que ela fará a seguir? Uma viagem à África? Um disco de música baiana? Uma visita ao Caribe? Uma busca pela canção interiorizada? Nem ela sabe. E assim ela consagra a imprevisibilidade não apenas como uma de suas principais características, como a de toda essa nova geração.

O festival mais alto astral do Brasil

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Em sua décima terceira edição, o pernambucano Coquetel Molotov se consolida como um dos melhores do país – escrevi sobre o festival no meu blog do UOL.

Conheço Recife desde os tempos em que o mangue beat ainda era uma novidade recebida com estranhamento pelos próprios pernambucanos, que demoraram para reconhecer que aquela mistura de tradição e modernidade encabeçada por Chico Science aos poucos colocaria a cidade não apenas no mapa musical do Brasil como no atlas da cultura mundial. A natureza tradicionalmente cosmopolita da cidade – resquício da colonização holandesa liderada por Maurício de Nassau no século 17 – havia entrado em estado de hibernação durante os anos 80 e a turma dos caranguejos com cérebro sonhava em voltar a respirar uma cidade que fosse reconhecida por sua rica cultura e mentalidade aberta, não pelos índices de violência e de pobreza.

Um quarto de século depois dos primeiros rascunhos do mangue beat, a décima terceira edição do festival pernambucano Coquetel Molotov foi a materialização daquela utopia imaginada no início dos anos 90, quando os primeiros agitadores culturais que criaram aquele movimento hoje histórico começaram a se conhecer. Eles imaginavam uma Recife conectada ao resto do estado, do país e do mundo sem fazer escalas pela ponte Rio-São Paulo, refletindo a atmosfera naturalmente moderna da capital pernambucana em uma conversa internacional e moderna, colocando artistas e público numa sintonia alheia às demandas ou exigências do mercado.

E foi isso que aconteceu na ampla fazenda colonial Coudelaria Souza Leão, neste sábado, dia 22, que recebeu a melhor safra do pop brasileiro deste ano, desfilando entre os dois principais palcos do dia final do evento, que desta vez teve etapas realizadas nas cidades de Belo Jardim (no interior do Pernambuco) e Belo Horizonte nas semanas anteriores. Quase dez mil pessoas assistiram a shows de artistas de diferentes estados brasileiros e de outros países, mas mais do que as atrações musicais o que realmente determinava a atmosfera do festival era o público.

Um púbico completamente misturado – de diferentes etnias, classe sociais, faixas etárias e gêneros -, respeitoso e exigente, entregues à música fosse ela a hipnose psicodélica dos goianos dos Boogarins, o groove sintético da paulistana Céu, o ativismo dance da curitibana Karol Conká ou a pista pesada dos soteropolitanos do BaianaSystem. Em cada um dos shows o público reagia de forma diferente, mas sempre entrando em sintonia completa com a realidade musical proposta por cada atração. Era uma pequena multidão que ia do transe reverente ao baile apaixonado, da surpresa empolgada ao êxtase corporal, deixando os artistas à vontade para fazer o que melhor sabiam.

Isso potencializou shows naturalmente fortes, como o de Céu e do BaianaSystem, donos de dois dos melhores discos e shows deste ano. Frente ao público do palco principal do festival (dentro de um enorme casarão colonial), os dois suaram sorrindo para fazer apresentações irrepreensíveis, conduzindo a platéia na mão ao mesmo tempo em que se entregavam a ela. Já artistas como o paranese Jaloo, a banda carioca Ventre e os norte-americanos do Deerhoof souberam aproveitar as dimensões menores do palco aberto e fizeram shows de pura adrenalina: Jaloo entregue aos braços da audiência, a baterista Larissa Conforto da Ventre mais uma vez roubou a cena com uma intensa intervenção política e os norte-americanos descarregando eletricidade e ritmo. Shows intensos em que parte dessa energia vinha da cumplicidade quase instantânea entre bandas e público.

Entre os dois palcos, este público também circulava entre um mercado de compras, o terceiro palco do festival (a Rural do Rogê, uma velha caminhonete que abriga shows itinerantes pelo Recife, capitaneada pelo Rogê da antiga Soparia, eternizado na música “Macô” da Nação Zumbi) e um quarto palco, bem menor e sem iluminação, quase uma ocupação, que foi colocado entre os dois palcos principais para receber bandas instrumentais. Música para todo o lugar que você ouvisse, cercando um público que começou a frequentar shows exatamente quando o mangue beat começou a ser incorporado ao mainstream da cidade e o Coquetel Molotov começava a dar seus primeiros passos, ainda sob o epiteto de “o festival indie do Recife”.

Treze anos depois o festival cresceu e seu público também, bem como suas ambições culturais e estéticas. E o que viu-se neste sábado no Recife foi justamente a maturidade completa de uma cena local, aberta para o novo e disposta a se reinventar constantemente, uma vez que a cena já entendeu esta realidade. Para o ano que vem eles tentam um desafio ainda maior: trazer o festival para São Paulo. Não apenas alugar uma casa noturna e desfilar algumas atrações que também levarão para o Recife, mas reproduzir em São Paulo a atmosfera deste que é o festival mais alto astral do Brasil. Um desafio e tanto.

Vida Fodona #542: Trazer o sol

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Concentração.

Como foi o Coala Festival 2016

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Não consegui pegar os shows do início, cheguei no final da Céu e consegui ver Cícero e Marcelo Camelo, BaianaSystem (arrasador) e Karol Conká, seguem os vídeos a seguir. Festival redondinho, que só pecou pelo som e pela falta de sinalização nos arredores, mas de resto, tudo ótimo. São Paulo precisa de mais eventos assim:

Vida Fodona #538: Hora de mudar o tempo

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Todo mundo, vamos lá.

Como foi a primeira edição do Spotify Talks

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O primeiro Spotify Talks, série de encontros e conversas sobre música que inventei de fazer com o pessoal do Spotify, aconteceu nesta terça-feira e reuniu alguns dos principais nomes da atual música brasileira. Aproveitei a reunião de Mahmundi, Lucas Santtana, Céu e Emicida para conversar sobre o início de suas carreiras, que começou neste momento estranho da indústria fonográfica, em que o modus operandi convencional – o que chamamos de mainstream – desmorou, implodindo em nichos cada vez mais populosos, em que cada artista pode experimentar tanto na composição e gravação de seus trabalhos, quanto em sua apresentação e divulgação. A íntegra da conversa deve pintar em algum dia desses por aqui, mas o pessoal do Update or Die acompanhou o debate e escreveu sobre o encontro, além de fazer estes vídeos abaixo com os participantes sobre o que é o mainstream neste início de século.

Fala Céu:

Emicida:


Emicida

Lucas:


Santtana

Mahmundi:

O próximo Spotify Tracks acontece no mês que vem e assim que tivermos fechada a programação eu anuncio aqui.

#SpotifyTalks: Contraponto ao mainstream

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Uma série de encontros para discutir as diferentes facetas do mundo da música neste século – este é o SpotifyTalks, que começa na semana que vem, que desenvolvi em parceria com o aplicativo de streaming de música mais popular do mundo. A ideia dos eventos é justamente mostrar que o Spotify não é apenas um software e que está ativo junto à comunidade musical brasileira e o primeiro deles acontece na terça que vem, com um debate sobre como o que chamávamos de mainstream está mudando à medida em que os nichos deixam de ser pequenos. Para isso, chamei quatro nomes da nova música brasileira que viveram diferentes fases do mercado fonográfico: Céu, Lucas Santtana, Emicida e Mahmundi. Este primeiro encontro é fechado (estamos estudando a possibilidade de transmitirmos os próximos) mas dá pra acompanhar a discussão com o pessoal do Update or Die.

Vida Fodona #532: Baixas temperaturas

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Segue o frio – e que frio!

Clash – “Should I Stay or Should I Go?”
Stooges – “T.V. Eye”
Inocentes – “Ele Disse Não”
Smack – “Rádio Smack”
The Fall – “Living Too Late”
New Order – “Every Little Counts”
LCD Soundsystem – “Dance Yrself Clean”
You Can’t Win, Charlie Brown – “Above the Wall”
Konk – “Konk Party”
Painel de Controle – “Relax (Extended Waxist Version)”
Sequence – “Funk You Up (Long Version)”
Daft Punk + Julian Casablancas – “Instant Crush”
Paul Simon – “The Werewolf”
Talking Heads – “Papa Legba”
John Carpenter – “This is Not a Dream”
Giorgio Moroder – “74 is the New 24”
Hot Chip – “Flutes”
Céu – “Varanda Suspensa”
Hurts – “Lights”
Radiohead – “Identikit”
Tatá Aeroplano – “Cadente”
Michael Kiwanuka – “Love & Hate”
Wilco – “If I Ever Was a Child”

Tudo Tanto #017: A volta do protesto

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Fiquei sem atualizar minhas colunas da Caros Amigos desde o início do ano, por isso vou começar a compartilhá-las aqui. A primeira do ano foi sobre a aproximação da nova música brasileira a um novo protesto, que começava a surgir nas ocupações das escolas que aconteceram no ano passado e que anteciparam os protestos deste tenso 2016.

A volta do protesto

Há um tempo que a música brasileira não protesta. Uma conjunção de fatores diferentes fez a voz dos descontentes perder eco na música no início deste século. A derrocada das gravadoras fez que boa parte dos artistas passassem a depender de empresas e do poder público para gravar discos e fazer shows e, com isso, temáticas como provocação, cobrança e vingança desapareceram do cancioneiro nacional no início do século. A ótima fase econômica que o país atravessou na década passada ativou o sempre alerta otimismo brasileiro, que também ajudou a desligar as ganas da contestação. O rock deixou de ser a voz do contra e mesmo bandas de hardcore começaram a falar de amor. E a crise que o hip hop nacional enfrentou após incidentes violentos no meio dos anos 00 o fez repensar todo aquele sangue nos olhos.

Tudo isso transformou a temática da música brasileira do início do século em algo menos agressivo, incisivo, contestador. O amor assumiu de vez o papel de principal tema, abrindo espaços para outras platitudes – e os artistas que antes falavam apenas de amor começaram a falar de sexo no lugar. E logo a música brasileira para as massas se referia mais à pegação, balada e vida noturna, tanto em gêneros que sempre apostaram nestes temas (como a axé music e o funk carioca) até em estilos mais tradicionais (como o sertanejo e o samba).

Mas do mesmo jeito que essa conjunção de fatores fez diminuir o clima de contestação na década passada, ela foi se desfazendo à medida em que entramos na década atual. As chamadas jornadas de junho de 2013, a crise econômica no País, a insatisfação com o governo Dilma, os protestos contra a Copa do Mundo e os nervos à flor da pele nas redes sociais tornaram o país mais belicoso e agressivo. O brasileiro voltou a tomar às ruas como não acontecia há muito tempo e as pautas destes protestos eram – e são – as mais díspares possíveis.

E aí que parte daquela geração que cresceu à sombra dos artistas que falavam de amor e outros assuntos menos sérios começou a botar suas manguinhas de fora. Artistas que já vinham falando de temas menos óbvios e mais interessantes, buscando horizontes musicais mais amplos e desafios pessoais através da arte. Foi justamente a safra que culminou no ótimo 2015 que eu comentei na coluna anterior. Uma rápida audição em cada um daqueles álbuns deixam claro um clima de descontentamento, de não aceitação, de exigência – cada um à sua maneira, cada um do seu ponto de vista.

Assim, o Fortaleza do grupo cearense Cidadão Instigado é um desabafo agoniado sobre a forma como sua cidade-natal foi consumida pela violência, pelo consumismo e pela especulação imobiliária, usando-a como metáfora para esse estilo de vida de jecas brasileiros se sentindo melhores que seus conterrâneos porque falam inglês errado. O mesmo sentimento atravessa o fantástico De Baile Solto do pernambucano Siba, um disco feito em protesto contra a lei de segurança pública que proibiu o maracatu de tocar até o sol raiar – quando a própria definição de maracatu pressupõe a noite virada e o sol raiando. Dois discos feitos às próprias custas, sem gravadora, incentivo fiscal, apoio cultural, nada – justamente para não ser acusado de ter o rabo preso com alguém.

Os discos de Emicida e Karina Buhr são bombas-relógio que partem de dois temas – racismo e feminismo, respectivamente – mas que vão aos poucos mostrando a presença de ambos em diferentes aspectos de nossas rotinas. Outros discos abordam a política em nossos gestos, hábitos e comportamento, longe de siglas, ideologias e líderes – TransmutAção de BNegão e seus Seletores de Frequência fala sobre a mudança interior, o autoestranhamento de Rodrigo Campos em Conversas com Toshiro, A Terceira Terra dos Supercordas é sobre como passar para o próximo estágio da vida em sociedade, Estilhaça do Letuce transforma problematiza a vida a dois como uma tensão em busca de um equilíbrio e o Violar do Instituto pressupõe um incômodo, algo que destoa e desarmoniza. Até o instrumental do Bixiga 70 também “fala” isso, seja nos títulos de suas músicas ou no andamento mais pesado de seu terceiro disco.

Até os trabalhos mais experimentais do ano passado carregam esse tom. Discos como Niños Heroes de Negro Léo, o improviso interminável de Abismu de Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thomas Harres, o encontro de tirar o fôlego entre a mesma Juçara e Cadu Tenório, a alma livre e torta do Voo do Dragão do trompetista Guizado e até o transe telúrico de Ava Rocha em seu disco de estreia Ava Patrya Yndia Yracema – estão todos alinhando-se com o coro dos contrários, cada um vindo de uma direção diferente. Bárbara Eugenia e Tulipa Ruiz vão pelo caminho oposto, fingindo-se de pop em seus respectivos Frou Frou e Dancê para falar sério sem que a gente perceba.

Essa produção artística toda culmina no instigante Mulher do Fim do Mundo, que Elza Soares gravou com alguns dos músicos acima citados e que parece sintetizar o clima de descontentamento atual que todos os discos acima sublinham. Mas mais do que celebrar o encontro de Elza com uma geração mais nova, 2015 talvez tenha sido importante por mostrar para essa geração mais nova que uma geração ainda mais nova pode ser seu novo público.

Foi o que se viu no início do mês de dezembro do ano passado, quando a atual geração da música brasileira resolveu entrar de cabeça na luta das ocupações das escolas públicas de São Paulo, realizadas por adolescentes alunos das mesmas. Revoltados contra a decisão unilateral do governador Geraldo Alckmin de fechar escolas, os alunos foram lá e tomaram conta das instituições, assumindo a gestão e a rotina de mais de 200 escolas em todo o estado. E os artistas mais velhos se reuniram para fazer shows para arrecadar mantimentos para essa nova geração rebelde.

Pude assistir a uma de várias destas apresentações ao ar livre e gratuitas que aconteceram na cidade. Artistas como Céu, Cidadão Instigado, Bárbara Eugênia, Vanguart, Criolo, Maria Gadu, Tiê e até veteranos como Paulo Miklos e Arnaldo Antunes se reuniram num domingo em uma praça no Sumaré para celebrar esse novo momento de resistência – e aos poucos criava-se uma conexão improvável entre adolescentes que não conheciam uma geração mais velha de artistas que se dispunha a fazer shows de graça para eles. Um elo que parece ingênuo e frágil à primeira instância, mas que pode fazer com que estas duas gerações cresçam juntas, se respeitando e construindo um país melhor do que esse que tentam nos empurrar entre anúncios comerciais.

“Fora Temer” foi o hit da Virada Cultural 2016

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Passeei pelo centro de São Paulo na Virada Cultural e presenciei que a motivação política da festa não brigava com a animação do público – e relatei o que vi, com vídeos, lá no meu blog no UOL.