Céu – Tropix
A Céu me chamou pra escrever o release do disco novo dela, o inacreditável Tropix, disco que tenho ouvido sem parar há mais de um mês e que cada vez tenho mais certeza de que é seu melhor trabalho. Tropix é um desvio inusitado via pista de dança, um disco noturno e digital, gravado com um “power trio de teclado”, formado por Lucas Martins, Pupillo e Hervé Salters (do General Eletriks), estes dois últimos produtores do álbum. Ele ainda conta com cover de Fellini (“Chico Buarque Song”, que timing!), participações de Tulipa Ruiz e Pedro Sá, timbres sintéticos, harpeggiator e tamba, além de cordas inacreditáveis em sua reta final, três músicas incríveis. “Perfume do Invisível” é só um gostinho. Um dos grandes discos do ano, maior satisfação fazer essa apresentação que vem a seguir. O disco chega ao Spotify na sexta-feira.
Céu brinca com beats. Debruçada sobre a luz do monitor, ela move o cursor de lá para cá, clicando e arrastando frases musicais traduzidas em gráficos horizontais. E por mais fluidos e quentes que sejam os sons que ela manipula, eles se traduzem em uma linguagem dura, reta, quadrada e fria. Graves encorpados, vocais sussurrados, ritmos malemolentes – todo calor humano desaparece quando visualizado por gráficos de programas de edição de áudio. Foi quando ela percebeu a constância do ritmo na sequência de picos de uma determinada onda sonora e um clique soou – dentro dela.
Foi a partir deste insight que ela começou a mais ousada reinvenção de sua carreira. Tropix é um disco sintético, noturno, reluzente. “Perfume do Invisível”, a faixa de abertura, começa com a cadência mole e vocais de apoio que remetem diretamente à faixa-título de seu segundo disco, Vagarosa. Mas logo em seguida entra a guitarra disco music e o beat de pista de dança. De repente ela se desvencilha das diferentes camadas orgânicas que compunham seu universo musical para entrar num mundo de timbres frios, linhas de baixos pontiagudas, viço robótico, ciclos repetitivos, eletrônica vintage.
Tropix é um mergulho neste universo de texturas artificiais que atravessa diferentes experimentos sônicos da segunda metade do século passado: o trip hop dos anos 90, a discoteca do final dos anos 70, o R&B dos anos 80, o casamento do hip hop com a música eletrônica. No entanto, não é uma viagem no tempo. O novo disco de Céu é um olhar do século 21 e traça uma genealogia pessoal de um mundo musical específico, um processo semelhante à viagem jamaicana feita em seu disco-irmão Vagarosa. Mas este era um disco que habitava o vasto e imponente cânone do reggae, e sua conexão com o sotaque brasileiro da musicalidade de Céu fazia um sentido sentimental lógico, devido à conexão entre as tradições musicais dos dois países.
Já este disco de 2016 é uma incógnita. Mais um desafio autoproposto como todos seus discos, Tropix é um salto num escuro que Céu sequer havia flertado anteriormente. E em vez de cercar-se diferentes músicos e produtores para lhe auxiliar nessa jornada, ela preferiu liderar trabalhar com a banda enxuta como a que vinha excursionando após o lançamento de seu DVD ao vivo, em 2014, com apenas três músicos. A cozinha deste grupo era a mesma que a acompanhou neste período, com Pupillo, o maestro do ritmo da Nação Zumbi, e o seu fiel escudeiro, o baixista Lucas Martins. Mas em vez da guitarra, Céu queria um power trio com teclado – e chamou o francês Hervé Salters, com quem já haviam tocado em outras oportunidades, para assumir esse papel.
Líder do grupo de funk eletrônico General Eletriks, Hervé tocou com Femi Kuti, Mayer Hawthorne e DJ Mehdi e passou por São Francisco na virada do século, quando começou a trabalhar com a cena de hip hop local (com nomes como Lyrics Born, Blackalicious e outros integrantes do coletivo Quannum). Sua sensibilidade sintética – e notória compulsão por colecionar teclados e instrumentos eletrônicos antigos – já lhe rendeu o rótulo de “o Ennio Morricone do século 21” e encaixou-se perfeitamente como na nau vislumbrada por ela. Os dois começaram a falar em trabalhar juntos depois que ela o convidou para tocar teclados em “Rainha” num show que fez em Berlim (onde Hervé mora atualmente) em novembro de 2014.
Porque por mais que Céu tenha Lucas, Pupilo e Hervé (os dois últimos produzindo o disco) como integrantes de seu time, é ela quem pilota essa nave. A cantora e compositora se estabeleceu como uma das principais vozes da atual música brasileira ao quebrar uma série de paradigmas relacionados ao papel da mulher neste cenário. Ela não é a musa inspiradora, nem intérprete à mercê de produtores e compositores nem sequer uma cantora cuja escola foi a bossa nova. Ela mesma compõe suas músicas, ela mesma escolhe seus rumos musicais e as fronteiras por onde pode desbravar e sua formação musical vai do jazz ao hip hop, passando pelo samba, reggae, música caribenha, africana e nordestina.
E a cada novo disco ela ampliava o território de abrangência. No homônimo disco de estreia, cozinhou suas influências musicais num peculiar e suave caldo sonoro, temperado principalmente com samba, reggae e música africana. No disco seguinte, Vagarosa, fez a nuvem da influência jamaicana dominar o ambiente e assim aumentar sua área de atuação. No cinematográfico Caravana Sereia Bloom – uma espécie de “road movie” de som -, fez os horizontes da estrada ampliarem ainda mais seus domínios sonoros. Mas por mais que sejam universos diferentes – e concêntricos -, os três primeiros discos têm um calor sonoro que se mistura com uma textura musical de leve aspereza, que alinha o sussurro aos estalos do vinil e amplificadores valvulados.
Daí a ousadia de Tropix. Nele Céu despede-se por completo daquela estética que funcionou como porto seguro em seus primeiros passos como artista. Ao fechar esse ciclo com o lançamento do DVD ao vivo, ela viu-se pronta para explorar os universos musicais que quisesse. E escolheu a noite néon, dos beats e timbres eletrônicos antigos, da pista de dança e do pulsar de ciclos repetitivos do harpeggiator.
Não é, no entanto, negação de seu passado – muito pelo contrário. Ao trazer essa nova sonoridade para sua paleta, ela consegue equilibrar perfeitamente sua sensibilidade neste cenário plástico e conseguimos perceber cada vez mais forte quem é a autora Céu, onde está esta cabeça musical para além das camadas estéticas que a envolvem. E assim o minimalismo eletrônico que abre “Arrastar-te-ei” enrola-se no contratempo da tamba inventada pelo baterista Helcio Milito (que atravessa outras parte do disco); o lirismo inicial de “Amor Pixelado” engata num groove funk seco e sintético e o tecnopop que abre “Etílica” funde-se à guitarra disco music de Pedro Sá (um dos poucos convidados do disco) para desembocar num caleidoscópio de vocais psicodélicos num dueto cantado e falado ao lado da outra convidada, a cantora e parceira Tulipa Ruiz.
E entre os timbres frios podemos ver cores de outros gêneros, como o xaxado eletrônico de “Minhas Bics”, o bolero futurista “Sangria” e o indie ambient “Chico Buarque’s Song”, versão do obscuro grupo alternativo paulistano Fellini, um universo lo-fi dos anos 80 recém-descoberto pela cantora. Outros momentos são puramente íntimos, como a levada caribenha 8-bit de “Varanda Suspensa” que recria os nostálgicos encontros com seu avô no litoral norte de São Paulo e cujos vocais ao final foram criados por sua filha Rosa Morena. A mesma Rosa serviu de inspiração para a música de ninar “A Menina e o Monstro”, composta quando Céu começou a perceber o susto que a filha levou quando começou a aprender a ler – ao perceber que tudo ao redor dela era texto.
O disco encerra com suas três faixas mais quentes, a sinuosa “Camadas”, o jazz funk “A Nave Vai” (composta por Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi) e a borbulhante “Rapsódia Brasilis”, as três ornadas por cordas tão alheias ao universo musical de Céu quanto os timbres eletrônicos que abrem Tropix, mostrando que ela está disposta a ir muito mais além. Em sua capa, pela primeira vez, Céu encara o mundo de frente, diferente do olhar tímido do primeiro, do perfil absorto do segundo e do retrato distante do terceiro. Em Tropix ela nos olha fixamente, sem ter medo de mostrar que sabe que já está em um novo estágio – e, mais do que nunca, é ela quem decide isso.
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