O curta metragem francês La Télévision, œil de demain, feito em 1947, por J.K Raymond-Millet mirou na televisão ao tentar prever os efeitos do novo aparelho na sociedade e acertou que no futuro andaríamos enfiados com as caras em nossos celulares, esbarrando uns nos outros e até causando acidentes de trânsito por isso.
Não lembro quem foi que falou que nem o pior pesadelo de George Orwell cogitaria uma população inteira carregando localizadores que registram a maior parte dos seus movimentos no bolso que espontaneamente filma-se e fotografa-se por puro prazer narcisista. Mas o fato é que os smartphones se tornaram um acessório inseparável da vida no século 21, como esta galeria de fotos reunida pela Atlantic explicita. Nenhuma novidade aqui: é apenas o choque da onipresença de telas e câmeras portáteis em todos os cantos do mundo.
Você lê uma coisa, mas sabe que ela quer dizer outra… Não era isso que o George Orwell chamava de newspeak?
Tem outros aqui.
Phone Lovers, a nova obra de Banksy, foi disposta no fim de semana passado quando o artista e um colega afixaram-na em um clube de boxe infantil de sua cidade-natal, em Bristol (as imagens foram registradas em vídeo e podem ser vistas no vídeo da BBC, abaixo). A obra foi retirada da parede e o dono do clube irá vendê-la para salvar seu negócio – ele acredita que tenha sido esta a intenção de Banksy ao deixar a obra ali.
Há um ano terminei minha última coluna no Link em 2012 com a seguinte previsão:
Eis a minha aposta para 2013: menos olhos na telona, mais olhos na telinha. Menos tempo sentado, mais tempo em pé. Menos escritório, mais rua. É claro que temos que esperar melhorias drásticas no nosso parco 3G e num utópico 4G que nem sequer é realidade. Mas, com certeza, usaremos mais celulares que computadores. Se é que já fazemos isso hoje, sem nos dar conta.
Um exercício de futurologia bem fácil de ser acertado – a chave está na última frase, que cogita a possibilidade de que a previsão já esteja acontecendo. E é uma realidade: estamos usando cada vez menos o computador e cada vez mais o celular.
A onipresença da internet em nossas vidas finalmente tornou-se fato a partir do momento em que não precisamos ir para um lugar específico para acessar a rede. Lembram-se que, antigamente, em vez de ligarmos diretamente para uma pessoa, ligávamos para os lugares mais prováveis em que ela estivesse? E os números “de casa” e “do trabalho” eram anotados à mão (e muitas vezes rasurados) em um volume de papel que simplesmente saiu de nosso dia-a-dia, a “agenda telefônica”? O celular extinguiu esses conceitos, na medida em que foi se popularizando pela metade dos anos anos 90 em direção a este século 21. Ele expandiu os horizontes de uma das últimas novidades da telefonia fixa, o telefone sem fio, para o infinito (ou ao menos até onde o sinal aguentar).
Telefone portátil uma excentricidade que só parecia fazer sentido para pessoas que viviam trabalhando com o novíssimo mercado global, quando você precisava saber o que estava acontecendo do outro lado do mundo exatamente quando estivesse acontecendo, algo que parece trivial atualmente mas era uma novidade restrita a um círculo de poucos convidados há menos de duas décadas. Telefonia celular era um conceito tão fora do comum quanto ter telefone no carro ou poder fazer uma ligação de dentro de um avião (algo que ainda é meio alienígena, mas que se tornará rotina ainda nessa década, outra profecia fácil de ser arriscada). Em pouco tempo, esse mesmo tipo de aparelho nos apresentaria a uma forma de conversar pelo telefone que não requeria nem mesmo a voz, com as mensagens de texto. Aí veio o smartphone e aposentou a pré-histórica internet wap e a rede de fato chegou aos telefones.
Da mesma forma que aconteceu antes com o telefone, ocorreu com a internet: tínhamos que estar em um determinado ponto geográfico pré-definido se quiséssemos ter acesso à rede. Eram os tempos do “computador da casa”, do “quarto do computador”, em que o desktop bege era o centro de um cômodo em apartamentos pelo planeta. Com o notebook e a popularização da tecnologia Wi-Fi isso mudou de repente e videochats começaram a acontecer na cozinha, a mesa de jantar poderia servir de escritório fora das refeições, dava pra assistir filme na cama ou mandar emails deitado numa rede. O smartphone com tela touchscreen, representado iconicamente pelo iPhone que a Apple revelou em 2007, se tornaria o dispositivo móvel de acesso à internet definitivo (e não o tablet, um smartphone feito para pessoas mais velhas acertarem as teclas), mas foi preciso que meia década se passasse para que parássemos de pensar no celular como uma forma de nos conectar a rede – e sim para que a rede começasse a ser desenvolvida para também o celular. O boom da economia dos aplicativos deu origem a uma nova série de softwares e redes sociais pensados especificamente para o telefone móvel, além de fazer todo desenvolvedor tradicional a pensar em versões paralelas para seus serviços funcionar melhor via celular.
E em 2013 pudemos usar essa nova rede à exaustão, a ponto de deixarmos o computador em segundo plano. Comprar ingressos? Pedir táxi? Jogar videogame? Pedir comida? Ir ao banco? Os aplicativos feitos para o Brasil já estão funcionando bem e nossa internet 3G tem melhorado (ainda está longe do ideal) a ponto de conseguirmos finalmente usar o smartphone de forma mais plena – e isso tem nos deixado mais distante do computador, que nos deixa encurvados em frente à tela, costas arqueadas, luz branca fritando os olhos full-time. Com o celular, podemos fazer quase tudo que fazemos no computador deitados, enquanto estamos cozinhando, a caminho de algum lugar, à espera de alguma coisa, em movimento.
Sempre fui arredio à telefonia móvel pois não queria ser encontrado, mas abri mão dessa inconveniência graças à série de benefícios que não consigo imaginar deixando de lado hoje em dia. O contato com a minha família ficou muito mais frequente via Whatsapp (meus pais e irmãos usam mais o aplicativo do que mandam email, ligam pelo telefone ou atualizam o Facebook), qualquer situação pode ser registrada e publicada quase que instantaneamente (que vão de motivos nobres como a cobertura cidadã dos protestos de junho desse ano ou vis como a publicação de vídeos ou fotos tiradas durante trepadas como motivo de vingança), as notícias chegam mais rápidamente, boas ou ruins. Fora aquela foto tirada (ou publicada) naquele momento certo, o acesso a todo acervo de vídeos e músicas do mundo (pagas via streaming ou baixadas por download) e softwares que nos ajudam a medir tudo sobre o que fazemos, transformando atividades antes monótonas (programar uma viagem, seguir uma dieta, lembrar de tomar remédios) em equivalente a jogos.
Mas ainda não é o fim da história: falta alguém inventar uma ferramenta de interface tão boa quanto o conceito de mouse e um substituto decente para o teclado (de preferência que não use a voz). E, claro, deixarmos de se referir a este aparelho como “telefone” – afinal, usá-lo para conversar é uma das coisas que menos fazemos através dele… Mas isso é questão de tempo.
Filosofia fingido-se de humor.
Quantas horas em filas de banco eu não passei jogando isso… Aí vem um russo e zera o jogo de maneira hipnoticamente monumental:
Via Savage Chickens.
Minha coluna desta edição de segunda-feira do Link (a primeira em que deixo o cargo de editor para assinar apenas como colunista) pega o gancho do título do seriado de Charlie Brooker para comentar nossa relação com as telas que nos cercam…
Como desligar o espelho preto que carregamos no bolso
Fixados à tela, fingimos que nada mais importa
O jornalista, diretor e comentarista inglês Charlie Brooker é uma das melhores cabeças do Reino Unido no século 21. Conhecido por seus comentários ácidos sobre mídia, ele ataca principalmente a televisão em séries produzidas pelos diferentes braços da emissora estatal BBC. No fim da década passada, os episódios de Newswipe, Screenswipe e Gameswipe (sobre, respectivamente, notícias, cinema e videogame) culminaram na série How TV Ruined Your Life (Como a TV Arruinou a Sua Vida, com episódios sobre medo, amor, conhecimento, progresso, aspirações e o ciclo da vida), de 2010. Em 2008, ironizou os reality shows e a mania de zumbis com Dead Set e no fim do ano passado dedicou-se à ridicularizar nossa obsessão pela tecnologia em Black Mirror.
São três histórias independentes que abordam os efeitos que a tecnologia causa ao comportamento humano se a compararmos com uma droga. “Black mirror” é o espelho preto que nos observa e observamos toda vez que uma tela é desligada. Desligamos a TV, o celular, o computador e vemos o nosso próprio rosto em diferentes dimensões, em molduras escurecidas que parecem espelhos em negativo do eu de cada um, como uma espécie de retrato de Dorian Gray de nossos sentimentos.
Desligamos aparelhos e nos vemos mirando para um vazio emocional que parece um abismo, anseios e esperanças refletidos do avesso, mas, ao contrário não é o monstro nietzscheano nos olhando de volta, o desconhecido consciente. É apenas um vazio, como se estivéssemos nos tornando robôs, fazendo o caminho inverso de Roy Batty em Blade Runner.
Não culpe o digital: a tela preta já nos hipnotizava desde os primórdios do cinema e passou a nos refletir a partir da televisão. O computador funcionou como um grilhão da mesa de escritório, uma prisão em forma de horas de trabalho, cuja ilusão de liberdade veio com a chegada dos smartphones.
E chegamos à segunda década do século sem nem sequer olharmos na cara um do outro. Se antes do smartphone uma mesa de bar já poderia criar círculos paralelos de conversa graças à telefonia móvel, com a internet à mão reuniões, encontros e refeições são celebrações de um individualismo autista, em que os presentes fingem presença mas fogem momentaneamente para a porta de entrada de seu umbigo, na palma de sua mão. Fingimos checar as horas e responder um SMS quando, na verdade, estamos vendo reações ao que fizemos nas redes sociais. O espelho negro só reflete aquilo que consideramos “vida” – todo o resto fingimos que não importa não existe, não está lá.
Por isso sonho com um restaurante cujo luxo é não ser interferido por ninguém mexendo no celular. Da mesma forma como deixamos o carro no manobrista ou os sapatos na porta de entrada, poderíamos ter a opção – mesmo que na marra – de deixarmos nossos celulares antes de comer. O restaurante me parece a opção mais viável, mas poderia ser uma academia de ginástica ou uma casa de shows. Nada de fotos, SMS, ligações, redes sociais, notícias, vídeos ou jogos – ficaríamos à disposição daquilo que é nos oferecido. Que, por isso, receberia maior cuidado e atenção.
Acho que isso é uma utopia possível, mas não vejo como regra. Da mesma forma que há restaurantes que não contam com TVs em suas paredes (ainda bem!), cogito a possibilidade de que haja outros que nos despluguem da matrix, mesmo que por algumas horas, para nos conectarmos à vida de fato.
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Esta é a primeira coluna que assino depois de deixar o Link – a partir de hoje, começo uma nova jornada, no comando da redação da revista Galileu, da editora Globo. Troco de pontes (do Limão para o Jaguaré), de marginais (do Tietê para o Pinheiros) e de foco (de tecnologia para ciência), por isso deixo a análise das notícias em segundo plano e passo a dar ênfase à forma como a tecnologia mexe em nossa cultura.