Carlos Eduardo Miranda (1962-2018)
Era uma longa conversa. Miranda ligava e continuava o papo como se não tivéssemos ficado horas, dias ou meses sem se falar. “Matias, velhinho, a gente tem que…” e disparava falando sobre o que estava lhe incomodando e seu plano para contornar esse incômodo, recheando o papo de causos, opiniões e notícias que lhe vinham à cabeça. Conheci Miranda quando ele havia acabado de dar o principal golpe de sua vida – sua transformação de jornalista em produtor musical, no começo dos anos 90, é um dos capítulos mais divertidos tanto do jornalismo quanto da indústria fonográfica brasileira. E apesar de ter se tornado um dos principais produtores do país, nunca deixei de vê-lo – e tratá-lo – como jornalista. Ele fazia pouco, ironizava, mas dava aquela olhadinha de baixo pra cima, apertando os olhos como se estivesse sorrindo, conformado com a vocação de uma das profissões que exerceu em seus longos e bem-vividos 56 anos.
Miranda sabia de tudo que lhe interessava – e sabia da importância da troca, da doação, do contato próximo, dos vínculos afetivos, dos relacionamentos pessoais. Era assim que as notícias e as novidades chegavam para ele: através de uma intensa rede de amigos e contatos, ele era um para-raio de maluquices e de boas vibrações, captando frequências invisíveis ao olho nu e as retransmitindo para o mundo. Sabia que o segredo da vida residia nisso – e o camuflava (ou o cobria) – de cultura, arte, música, cinema, programas de TV, revistas em quadrinhos, bonequinhos, equipamentos, camisas floridas e histórias inacreditáveis. Sorte nossa.
Ele não era só um olheiro de novos artistas, puxando para o holofote bizarrices, maravilhas, estranhezas e talentos inusitados, mas também um sábio dos bastidores, se apropriando de brechas, reinventando a norma, desafiando o consenso, desdenhando dinheiro. Tinha raros desafetos e, mesmo sobre esses, raramente gastava saliva ou neurônio. Preferia espalhar boas novas. Não que gostasse de tudo e não criticasse nada. Miranda guardava seu lado ferino e maldoso para os poucos amigos próximos, destilando um delicioso fel em histórias que rendiam gargalhadas altas. Dois dos milhares de ensinamentos que tive com ele se confundiam numa lógica bem particular: “bata no forte e ajude o fraco” era uma linha de raciocínio irmã de “elogie para todos, critique para poucos”, um credo que deveria ser seguido por todos em um país que não sabe a diferença entre opinião e fato, em que a maioria das pessoas confunde “é bom/é ruim” com “eu gosto/eu não gosto”.
Sabia que ele andava mal de saúde mas não tinha a noção da gravidade. “Vi que tu tinha me ligado, mas naquele dia não dava”, continuou a conversa na manhã desta quinta-feira, quando passamos mais de uma hora ao telefone. Passei-lhe um considerável sabão sobre o péssimo hábito que tinha de sumir quando estava mal e ele dissecou todo o processo que culminaria com sua morte súbita, no fim daquele mesmo dia. “Mas agora tá tudo bem, ontem pela primeira vez saí sozinho, fui cortar o cabelo, aparar a barba”, contava feliz, depois de falar que passou semanas sem conseguir levantar da cama ou mudar de posição no sofá. Tinha sido seu aniversário e ele comemorava a liberdade do dia anterior como um novo começo. “Agora passou a má fase, sempre passa”, disse, pouco antes de eu perguntar se não dava para a gente se encontrar logo – aquelas lorotas deliciosas e o abismo da morte abrindo-se à sua frente me deu uma saudade braba de vê-lo pessoalmente. “Espera passar a Páscoa, eu vou renascer com o Cristo”, ironizou.
Naquele instante, senti a vontade de agradecer-lhe por tudo, uma sensação que me veio logo após a morte de outro mestre e amigo, Kid Vinil. Quando Kid morreu no ano passado vi todos derramando lágrimas e louvando sua importância pelas redes sociais e fiquei pensando em como ele gostaria de ter sabido daquilo tudo. Lamentei não ter dito para ele pessoalmente isso e a sensação de fazer o mesmo com Miranda veio no instante em que ele falou sobre a possibilidade de morrer. Mas pensei que poderia causar uma má sensação, dar ideia de despedida (que eu nem cogitava, tamanha felicidade em sua voz), e deixei pra lá. Só não me arrependo mais porque pude dizer isso pessoalmente quando passei a conviver com ele diariamente no tempo em que trabalhei na Trama. Foi por essa época que Miranda deixou de ser um amigo e virou um irmão – foi por essa época em que a conversa deixou de ser pontual e virou um imenso diálogo, interminável, que não para de ecoar na minha cabeça e nunca terminará. Saíamos para banquetes que duravam horas, passeios de carro por todos os cantos de São Paulo e a pé por diversas cidades do Brasil, sempre puxando um disco, uma HQ, um filme e comentando como se tivesse descoberto a pólvora.
“Matias, velhinho, eu preciso escrever esse livro”, lamentou para mim inúmeras vezes, depois de lembrar, sempre às gargalhadas, de todas as merdas que fazia. “Escreve, porra!”, brigava. “Eu começo a escrever, paro pra ler e fico pensando: ‘mas esse cara se acha!’, se criticava. “Mas Miranda, tu se acha!”, brigava de novo. “Não, cara, você que tem que escrever esse livro, tu escreve bem melhor que eu, fora que tudo que tu escreve fica bonito, parece que aconteceu de verdade. Se eu escrever todo mundo vai ficar achando que é mentira”, gargalhava.
Tá bom, Miranda. Eu escrevo – um dia. Por enquanto vamos deixar a tristeza de lado e o vazio de ter perdido uma figura tão importante num outro plano e nos concentrar em fazer o que ele mais gostava: fazer coisas que se gosta. Essa simples regra pode ter tirado-lhe a vida mais cedo pois era afeito a excessos, mas ajudou-o a reinventar a cultura brasileira, que hoje é o que é muito por seu atrevimento, ousadia e alto astral. É a lição que devemos carregar.
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