Escrevi lá no meu blog do UOL sobre o disco novo dos Tribalistas, que parece um disco de música infantil para perpetuar a ideia engessada de MPB.
Você já parou para se perguntar o que é MPB? Três letrinhas que pairam sobre nossa música brasileira como uma espécie de rótulo oficial para “música séria”: tudo que não é MPB é tido como menor, desprezível, descartável, pop, juvenil. Criada na virada dos anos 60 para os anos 70, a sigla é parente da sigla do partido que agora ocupa a presidência da república, que naquele período era a oposição formal à situação dos generais de nossa mambembe ditadura militar. Naquele tempo, o PMDB ainda se chamava MDB e a sigla irmã funcionava para formalizar uma nova elite musical ao reunir uma geração de artistas influenciados pela bossa nova, consagrada nos festivais da canção daquela época, como a cara do que deveríamos conhecer por música popular brasileira.
Assim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Elis Regina, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão e tantos outros passaram a ser referidos desta forma, consolidando um gênero musical que não é propriamente um gênero musical: o que une os artistas de MPB não é uma musicalidade específica, mas a negação de uma outra musicalidade, ainda mais popular. Enquanto o Olimpo do banquinho e do violão recebia novatos que em pouco tempo seriam reconhecidos apenas pelo prenome, fora dele multidões movimentavam-se ouvindo artistas que não eram bons o suficiente para serem tachados com o carimbo da nova elite cultural. De Roberto Carlos a Luan Santana, passando por todos os egressos da Jovem Guarda, Nelson Ned, Waldick Soriano, Odair José, Fábio Júnior, os luminares do sambão-jóia e do pagode, os roqueiros dos anos 70 e 80, toda a música sertaneja, a geração criada no Chacrinha, a axé music, o mangue beat, o rock gaúcho e os Mamonas Assassinas. A verdadeira música popular brasileira não era boa o suficiente para receber o aval da MPB.
Mas à medida em que seus primeiros bastiões foram envelhecendo, poucos novos artistas foram sendo aceitos neste seleto grupo. Embora haja uma massa gigantesca de artistas que se dispõem a entrar nesse clubinho seguindo todas as regras ditadas pelo rótulo nos últimos cinquenta anos, pouquíssimos conseguem a carteirinha de sócio. Por isso é natural que seu público também tenha diminuído – além de não se renovar em termos etários, os velhos fãs de MPB estão lentamente morrendo. Talvez por isso seja importante retomar o fio da meada – largado em algum lugar da última década do século passado – e é aí que entram os Tribalistas.
Supergrupo de MPB, o trio reúne alguns dos poucos nomes que conseguiram a adesão oficial à sigla. Carlinhos Brown veio via Caetano Veloso, Marisa Monte chegou através de Nelson Motta e Arnaldo Antunes renegou os Titãs. Separados, traçaram carreiras distintas que sempre miravam em públicos adultos, buscando referências na história da música brasileira ao mesmo tempo que as atualizavam para seus universos particulares. Juntos pela primeira vez em 2004, corroboraram a tradição emepebista num disco cheio de violões mas puxado por um hit de axé music gentrificado para esta tradição (“Já Sei Namorar”).
Treze anos depois do primeiro disco, o grupo volta à ativa com um desafio maior: retomar esta tradição num momento em que ela vem se desfazendo. Sem acalentar a MPB como sempre fez, a indústria fonográfica preferiu voltar-se para os campeões de audiência e aos poucos o público foi deixando aquela elite musical de lado. E por mais que Gil e Caetano tenham feito uma bem sucedida turnê de cinquenta anos de carreira, que Chico ainda consiga se manter relevante e que Gal tenha gravado um disco saudando uma nova geração de compositores, pouquíssimos novos nomes conseguiram surgir e se estabelecer neste período como artistas de MPB. Dá pra contar nos dedos, uma Ana Carolina aqui, um Jorge Vercilo ali, um Seu Jorge acolá. Tudo muito genérico, tudo sem personalidade. E por mais que tentem não dá para encaixar nomes como Céu, Tulipa Ruiz, Emicida, Tiê, Karina Buhr, Siba, Mariana Aydar, Lucas Santtana e Ava Rocha (entre inúmeros outros) neste rótulo pelo simples de eles quebrarem as regras pétreas da sigla: não são filhotes da bossa nova, amam rock e música pop, transitam entre diferentes nichos de artistas, ultrapassaram o violão e os poucos que tiveram padrinhos musicais logo saíram de sua sombra.
O novo disco dos Tribalistas, lançado subitamente nesta madrugada, é uma clara tentativa de recuperar um público jovem para a vetusta MPB. E a saída descoberta por Brown, Arnaldo e Marisa vem na contramão de outra forte tendência deste século – a da música infantil feita por artistas que se consagraram fazendo música para adultos. Diferente do que aconteceu nos anos 70 e 80 (quando, graças a especiais da Globo como A Arca de Noé, Pirlimpimpim e Plunct Plact Zum, artistas de renome gravaram músicas para crianças em antologias com vários músicos), a partir dos anos 00, artistas como Pato Fu, Adriana Calcanhotto e Mombojó abriram carreiras paralelas para tocar músicas para crianças que não tinham cara de jingles de programas infantis de TV. Sucessos de bilheteria deste novo mercado, como Palavra Cantada e Pequeno Cidadão, contam com nomes estabelecidos da música brasileira em suas formações – o Pequeno Cidadão, inclusive, contava com Arnaldo Antunes em sua formação original.
O novo disco dos Tribalistas soa como um disco de música infantil feito para adultos – os temas não são para crianças, mas a forma como eles são apresentados faz parecer – e assim eles pegam o público pela mão, ensinando as canções muito didaticamente. O disco é de uma simplicidade conceitual, seja buscando uma beleza na singeleza, seja discutindo temas sérios de forma trivial. Nesta última categoria encaixam-se músicas como “Diáspora” (sobre a questão das migrações no mundo), “Um Só” (sobre polarizações e diferenças de classes), “Aliança” (desdobramento da música “Joga Arroz”, que lançaram em 2013 para apoiar a causa do casamento gay), “Trabalivre” (sobre o mercado de trabalho) e “Lutar e Vencer” (sobre resistência política), todas elas seguindo o mesmo padrão: versos curtos, rimas fáceis, palavras que se repetem, termos de fácil apelo e que ficam na cabeça, melodias triviais.
Há um equilíbrio ousado nesta tentativa, que às vezes derrapa: “Baião do Mundo” (que rima água com água diversas vezes) tem versos que poderiam estar no programa Rá-Tim-Bum: “”Vem Cantareira / Canta na calha / Abre a torneira / E chora / Vem bebedouro, purificador / Me dê um gole agora”, “Preciosa, milagrosa/ Vem regai por nós/ Vai corrente/ Da nascente/ Até chegar na foz”, e “Os Peixinhos”, com a deliciosa voz da cantora portuguesa Carminho, fala sobre as cores refletidas nas escamas dos peixes ao som de água borbulhando. Mas o saldo final é um conjunto de canções feito para cativar um público que nem sabe o que é MPB.
Sua infantilidade, no entanto, é um ás na manga, pois não só pode conquistar um público jovem que aos poucos começa a cansar de música sobre pegação (pois está envelhecendo) mas também pode apresentar-se às crianças de hoje como os especiais da Globo nos anos 70 e 80 apresentaram Chico Buarque nos Saltimbancos e Gilberto Gil na abertura do Sítio do Picapau Amarelo às crianças daquela época. A expectativa é que o trio saia em turnê no ano que vem, inevitavelmente atraindo multidões – e preparando o terreno para a turnê de reunião dos Tribalistas em 2037, para que a MPB continue hegemônica.