Mítico vocalista do grupo punk pernambucano Devotos, Cannibal ataca em duas frentes neste final de 2018: lançando o livro Música Para Quem Não Ouve, que reúne as letras de sua histórica banda, e o disco novo do grupo de dub Café Preto, batizado de Oferenda. “Café Preto é minha valvula de escape depois do futebol”, explica Cannibal por email. “Adoro música, sou criado no Alto José do Pinho, esse bairro é uma rádio ligada em varias estações onde tudo rola, você sai andando pela comunidade e escuta tudo: samba, brega, rock, reggae, música cubana, afoxé, maracatu, de tudo… Sendo assim não tem como você ser bitolado a um estilo. Fiz a Café Preto no pensamento de musicar as letras que não entraram na Devotos”. Ele antecipa o primeiro single do disco, “120 Km” que tem a participação de Spok da Spok Frevo Orquestra, em primeira mão para o Trabalho Sujo.
https://www.youtube.com/watch?v=7tnonblNV8E&feature=youtu.be
“Não queria fazer uma banda, a ideia era só mostrar um lado meu que as pessoas não conheciam, mostrando as músicas as pessoas ficavam perguntando quando ia ter show e eu falava que não ia rolar porque a ideia era só gravar um disco com influencia na música jamaicana”, ele continua. “Foi tanto incentivo que resolvi montar a banda mas resolvi que teria um conceito, a Café Preto não é só musica. Então convidei um amigo estilista chamado Eduardo Ferreira para fazer o figurino, gosto muito dos cantores que se vestem para cantar: Marvin Gaye, David Bowie, Gregory Isaacs, Grace Jones, todos uma elegância impecável. O novo figurino é feito por Chico Marinho, os sapatos por Jaison Marcos e as fotos de Renato Filho.” A banda fez parte da geração que revelei como curador do Prata da Casa do Sesc Pompéia em 2012.
“O primeiro disco foi lançando em 2012 e teve como carro-chefe a música ‘Dandara’, que virou clipe, e a mixagem ficou por conta do mestre Victor Rice. O novo disco se chama Oferenda, o disco tem a mixagem e masterizarão de Pierre Leite, que é tecladista e efeitos na Café Preto. Oferenda tem as participações de Lucas dos Prazeres, Maestro Spok, Céu, Claudio Negrão no contrabaixo, poeta Miró da muribeca e Maria Vitória e Marina, minha filha e a de Pierre. É um disco com sonoridade diferente, apesar de também tem reggae, não sei rotular, mas é um disco com muitas músicas para dançar. As letras ao contrário da Devotos, na sua maioria são temas fictícios relacionadas ao cotidiano afetivo, relacionamentos e etc, só a música ‘O Samba’ que tem uma temática social. A capa foi feita por Mabuse e Haidde e o desenho por Ganjja”, ele conta, explicando que apesar das referências a orixás do candomblé, não é frequentador. “Respeito todas as religiões, mas tenho grande admiração pela umbanda e pelo candomblé.” Ele conta que nos shows também canta “Preciso Me Encontrar” e “Gostoso Demais”, imortalizadas respectivamente por Cartola e Dominguinhos – e o show de lançamento do disco em São Paulo vai acontecer no Sesc Carmo, dia 29 deste mês, com participação de Alessandra Leão (mais informações aqui).
Sobre o livro, ele diz que a ideia surgiu porque muitos o abordavam na rua elogiam sua música mas dizendo que não entendiam as letras. “É engraçado, mas preocupante. Formamos a banda para mudar um quadro social através da música, conseguimos isso aqui na comunidade o Alto José do Pinho, que hoje é conhecida pela sua eferverscência cultural. Muitos problemas ainda precisam ser resolvidos, mas conseguimos resgatar a auto estima da comunidade.” A ideia do livro era ter a cara de fanzine dos anos 80, como se tivesse sido feito com máquina de escrever e fotos chapadas como se fossem xerox. “Os fanzines dos anos 80 eram nossa rede de informação, temos o maior respeito e consideração pelos fanzineiros, até hoje damos entrevista para fanzines”, continua. O livro também tem trabalhos de artistas plásticos convidados pelo grupo, como Darlon, Ganjah e Caio Cezar. “Todos maravilhosos. É bom trabalhar com pessoas que são fãs das banda, elas acompanham e sabem sua história, aí o trabalho flui positivamente.”
“A literatura faz você viajar e ter sua própria opinião em relação ao que está lendo, não tem uma massa sonora te influenciando a ter uma visão radical pelo fato do som ser punk rock”, ele continua explicando sobre o livro. “A sonoridade pode ser pesada, mas a letra pode ser romântica, a sonoridade pode ser uma balada mas a letra pode ser politizada. E aí que o legal do livro é que é só você e a letra, vpcê viajando no que se absorve das frases, dos refrões.”
Sobre o punk rock em si, ele segue ativista. “O movimento não tem a força dos anos 80, mas continua atuante, veja por exemplo os fanzines, que continuam sendo produzidos em varias categorias, as bandas que continuam suas produções e como tem surgido novas bandas”, ele continua. “A tecnologia separou bastante o movimento punk, apesar da facilidade de se conhecer através da internet, o lado humano de se encontrar, trocar ideia, fazer os eventos não é mais o mesmo, Hoje é como se tivesse vários movimentos punk dentro do próprio movimento, a ideologia de formar uma banda para protestar ou reivindicar ficou nos anos 80. Hoje a maioria que faz uma banda quer tocar em primeiro lugar ‘não importa onde’. Se a grande mídia não tivesse fudido o movimento punk hoje ele seria referência social como é o rap!”
O assunto inevitavelmente caminha para a atual situação política do país: “Não se muda um país com ódio, até para você reivindicar causas sociais você tem que fazer com ternura, mas nunca com ódio”, prossegue. “Eu sou a favor que não perdamos a liberdade de expressão que nossos pais conquistaram com muito suor, sangue e vidas ceifadas no período da ditadura. Demos passos muito positivos socialmente falando: as mulheres estão organizadas e se auto-afirmando cada vez mais, a classe LGBT e outros segmentos também estão se afirmando, mostrando que podem pertencer à sociedade sem ter que se esconder e que existe uma indústria de entretenimentos voltada para essas pessoas e essa industria tem um retorno financeiro muito, muito grande para o Brasil. Não há como ignorar essa classe e os tratar como enfermos como algumas igrejas propõe. O princípio da educação é o respeito. Não fecho os olhos para a corrupção, mas não acredito que uma politica de ideologia fascista vá resolver nossos problemas!” É isso aí.
Não vou no Prata da Casa de hoje porque vou ao Rio acompanhar o Prêmio Multishow – mas com muita pena de não poder assistir ao show do Café Preto, projeto dub do grande Bruno Pedrosa e do Canibal dos Devotos do Ódio. Você já sabe o esquema do Prata, no Sesc Pompéia, né? A partir das 20h os ingressos, gratuitos, começam a ser distribuídos e o show começa pontualmente às 21h. Abaixo, o texto que escrevi sobre o Café Preto para o programa.
O que acontece quando um dos DJs mais promissores de Recife encontra-se com uma lenda do hardcore pernambucano? A banda Café Preto é fruto dos primeiros experimentos que o DJ e produtor Bruno Pedrosa começou a realizar no meio da década passada, quando se dedicou a levar a música de nomes da nova cena pop do Recife para o mundos dos remixes. Em 2006, lançou Transformer, disco que retrabalhava a obra de nomes familiares dos amantes da nova música pernambucana (Silvério Pessoa, Bonsucesso Samba Club, Eddie, Mombojó, Mundo Livre S/A, DJ Dolores, Erasto Vasconcellos). Foi quando encontrou Cannibal, vocalista e fundador do Devotos do Ódio, a principal banda de hardcore do estado e um dos principais nomes da cena punk brasileira desde os anos 90. Ele já vinha pensando em expandir seus horizontes para o lado da música jamaicana e em conversas com Bruno criou o Café Preto, dedicado inteiramente à vertente mais psicodélica da ilha de Bob Marley, o dub. O grupo ainda conta com a presença do produtor e músico Pi-R, que fazia parte da banda experimental eletrônica Chambaril, entre outros instrumentistas, e teve o primeiro disco mixado por Victor Rice, talvez o principal produtor do gênero no Brasil. O primeiro disco, já disponível para download no site da banda, conta com participações especiais e a capa assinada por Jorge du Peixe, da Nação Zumbi, e H.D. Mabuse, o “ministro da tecnologia do mangue beat”.