Transcendental o Anganga que Cadu Tenório e Juçara Marçal fizeram nesta terça-feira no Centro da Terra. Trazendo cânticos de trabalhadores escravizados que foram recuperados no início do século passado, os dois atualizaram melodias e versos seculares para a cacofonia do século 21, com Cadu disparando bases industriais para Juçara soltar sua voz de forma lírica e abstrata, conversando com a luz detalhista, por vezes quase impressionista e outras quase na penumbra, desenhada por Cristina Souto. Fisgando o público na veia, era possível ouvir um silêncio quase milenar, que parecia pairar sobre aquele ritual.
Enorme satisfação de receber pela primeira vez a dupla formada por Juçara Marçal e Cadu Tenório, que apresentam sua obra Anganga nesta terça-feira no Centro da Terra. O espetáculo foi inspirado nos vissungos (cantos de trabalho) resgatados pelo linguista Aires da Mata Machado Filho nos anos 1920 em São João da Chapada, município de Diamantina em Minas Gerais, em 65 partituras publicadas no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais. Essas partituras transformaram-se num disco chamado O Canto dos Escravos, gravado em 1982 por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e tia Doca da Portela. São esses cantos que Juçara e Cadu revisitam desconstruindo-os eletronicamente em uma versão ainda mais pesada do que suas versões originais. O espetáculo começa pontualmente às 20h e ainda há ingressos disponíveis neste link.
O ano aos poucos chega ao fim e com ele a temporada de música do Centro da Terra. Como temos menos datas que os meses recorrentes em dezembro, este é o último mês cheio de apresentações no nosso querido teatro do Sumaré. E quem toma conta das segundas-feiras deste mês é o maestro Chicão Montorfano, mestre das teclas do Quartabê que também já tocou com Gal Costa, Ava Rocha, Silvia Machete, André Abujamra, Negro Léo, entre outros, e aos poucos prepara o lançamento de sua carreira solo, com um disco que gravou há tempos, chamado Mistura, e finalmente prepara-se para lançar. Por isso batizou sua temporada de Prémistura, justamente para antecipar este seu primeiro álbum. Em quatro segundas, ele atravessa diferentes formações para mostrar o futuro trabalho e rever o próprio passado musical com a presença de pessoas queridas com quem trabalhou nestes anos. Na primeira segunda (6), ele mostra suas novas canções ao lado da companheira cantora e percussionista Marcela Sgavioli na formação Mar & Chicão, além de convidar a cantora e cavaquinhista Letícia Coura para passear pelas canções da peça Bacantes, do Teatro Oficina, do qual o compositor também foi diretor musical. Na outra segunda (13), ele chama dois ídolos e amigos – Alzira E. e Yantó – para acompanhá-los ao piano. Na segunda (27), ele promove a Prógui Náiti mostrando as músicas de seu novo disco ao lado de uma banda composta por Gabriel Falcão (guitarra) e voz, André Bordinhon (guitarra), Fernando Junqueira (bateria), Filipe Wesley (baixo) e mais uma vez Marcela Sgavioli (voz e percussão), que visita também clássicos do rock progressivo mundial. A temporada encerra na primeira segunda de dezembro (4), quando ele se reúne com os músicos Barulhista, Bernardo Pacheco e Wanessa Dourado para um concerto de improvisação livre. E a programação segue intensa às terças. A primeira delas (7) marca estreia do supeergrupo nordestino Ondas de Calor, formado pelos cearenses Davi Serrano (voz, guitarra, baixo e teclas), Xavier (voz, bateria, baixo e guitarra) e Igor Caracas (voz, bateria e guitarra) e o sergipano Allen Alencar (voz, guitarra, baixo e teclas), músicos que se conheceram ao acompanhar a cantora Soledad e que perceberam que juntos poderiam dar mais luz às canções que compunham como artistas solo. Neste primeiro show, são acompanhados das cantoras Anais Sylla e Julia Valiengo. Na terça seguinte (14), Juçara Marçal e Cadu Tenório se encontram mais uma vez para dar continuidade ao seu projeto Anganga, em que revisitam vissungos (cantos de trabalho) recolhidos pelo linguista Aires da Mata Machado Filho há cem anos em São João da Chapada, município de Diamantina (MG), em 65 partituras no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, que foram regravados por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e tia Doca da Portela no álbum O Canto dos Escravos, em 1982. Na outra terça (21) é a vez do paraibano Vieira mostrar como está preparando seu próximo trabalho, continuação de Crise dos 20, disco que produziu ao lado de Benke Ferraz, dos Boogarins, em 2021. O mês fecha na última terça do mês (28), quando Bruno Berle mostra uma versão completa de seu álbum No Reino dos Afetos com a participação de boa parte dos artistas que estiveram no disco, incluindo canções que nunca tocou ao vivo. Os espetáculos começam sempre às 20h e os ingressos já podem ser comprados neste link.
A comissão de música da Associação Paulista dos Críticos de Arte, da qual faço parte, revelou nesta semana, os indicados às principais categorias da premiação neste ano. Devido ao ano estranho que atravessamos, reduzimos a quantidade de premiados, focando nas categorias Artista do Ano, Revelação, Melhor Live e Disco do Ano. Além de mim, também fazem parte da comissão Adriana de Barros (editora do site da TV Cultura e colunista do Terra), José Norberto Flesch (do canal JoseNorbertoFlesch), Marcelo Costa (Scream & Yell), Pedro Antunes (colunista do UOL e Tem um Gato na Minha Vitrola) e Roberta Martinelli (Radio Eldorado e TV Cultura). A escolha dos vencedores deve acontecer de forma virtual no dia 18 de janeiro. Eis os indicados às quatro principais categorias:
Os 5 artistas do ano
Caetano Veloso
Emicida
Luedji Luna
Mateus Aleluia
Teresa Cristina
Os 5 artistas revelação
Flora – A Emocionante Fraqueza dos Fortes
Gilsons – Várias Queixas
Guilherme Held – Corpo Nós
Jadsa e João Milet Meirelles – Taxidermia vol 1
Jup do Bairro – Corpo sem Juízo
As 5 melhores lives
Arnaldo Antunes e Vitor Araujo (03/10)
Caetano Veloso (07/08)
Emicida (10/05)
Festival Coala – Coala.VRTL 2020 (12 e 13/09)
Teresa Cristina (Todas as Noites)
Os 50 melhores discos
Àiyé – Gratitrevas
André Abujamra – Emidoinã – a Alma de Fogo
André Abujamra e John Ulhoa – ABCYÇWÖK
Arnaldo Antunes – O Real Resiste
Baco Exu do Blues – Não Tem Bacanal na Quarentena
Beto Só – Pra Toda Superquadra Ouvir
BK – O Líder Em Movimento
Bruno Capinam – Leão Alado Sem Juba
Bruno Schiavo – A vida Só Começou
Cadu Tenório – Monument for Nothing
Carabobina – Carabobina
Cícero – Cosmo
Daniela Mercury – Perfume
Deafkids – Ritos do Colapso 1 & 2
Djonga – Histórias da Minha Área
Fabiana Cozza – Dos Santos
Fernanda Takai – Será Que Você Vai Acreditar?
Fran e Chico Chico – Onde?
Giovani Cidreira e Mahau Pita – Manomago
Guilherme Held – Corpo Nós
Hiran – Galinheiro
Hot e Oreia – Crianças Selvagens
Ira! – Ira
Joana Queiroz – Tempo Sem Tempo
Jonathan Tadeu – Intermitências
Josyara e Giovani Cidreira – Estreite
Julico – Ikê Maré
Jup do Bairro – Corpo sem Juízo
Kiko Dinucci – Rastilho
Letrux – Letrux aos Prantos
Luedji Luna – Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água
Mahmundi – Mundo Novo
Marcelo Cabral – Naunyn
Marcelo D2 – Assim Tocam Meus Tambores
Marcelo Perdido – Não Tô Aqui Pra Te Influenciar
Mateus Aleluia – Olorum
Negro Leo – Desejo de Lacrar
Orquestra Frevo do Mundo – Orquestra Frevo do Mundo
Pedro Pastoriz – Pingue-Pongue com o Abismo
Rico Dalasam – Dolores Dala Guardião do Alívio
Sepultura – Quadra
Seu Jorge & Rogê – Seu Jorge & Rogê
Silvia Machete – Rhonda
Tagua Tagua – Inteiro Metade
Tantão e os Fita – Piorou
Tatá Aeroplano – Delírios Líricos
Thiago França – KD VCS
Wado – A Beleza que Deriva do Mundo, mas a Ele Escapa
Zé Manoel – Do Meu Coração Nu
O produtor carioca Cadu Tenório embarcou numa viagem introspectiva muito antes da quarentena, quando, na metade do ano passado, decidiu dissecar diferentes áreas de sua musicalidade num mesmo disco. “O estalo foi a minha peça ‘No Longer Human’, depois que ela ficou pronta comecei a imaginar a possibilidade de um trabalho, um disco, que fosse uma espécie de jornada, onde exploraria os limites de todo meu corpo de produção mantendo tudo costurado por um fio, numa narrativa, a meu ver, cinematográfica”, me explica em entrevista por email. Assim é Monument for Nothing, que o músico experimental lança nesta quinta-feira pelo selo QTV, que antecipa em primeira mão a segunda faixa, “Garden”, para o Trabalho Sujo. O músico também disseca o disco faixa-a-faixa ao final desta entrevista.
Outra característica de Monument for Nothing é o número de os convidados que Cadu chamou para o disco: Juçara Marçal, Carla Boregas, Maurício Takara, Sara Não Tem Nome, Emygdio, Lucindo, Rogério Skylab e Vitor Brauer. “A única participação que já tinha em mente desde o ano passado, era a da Juçara”, ele explica, citando a cantora com quem gravou o festejado Anganga, em 2015. “Todos os outros participantes foram surgindo agora no processo final do disco quando eu já estava com toda a direção meio que tomada e não resisti a convida-los já no início do período de quarentena”, ele explica, mencionando que só não havia colaborado com Sara e Lucindo, além de Daniel Semanas, responsável pela arte do disco. “Tivemos uma troca de emails gigantesca na produção da arte do disco trocando um sem fim de referências. Sou fã do cara, foi outra realização que achei que precisaria tentar, mandei um email descompromissado e acabou rolando”, festeja.
A chegada da quarentena foi crucial para a entrada destes novos integrantes, bem como a uma nova abordagem do que o disco estava se tornando. “Ele ganhou uma certa urgência”, explica. “É um trabalho gigante pra mim, meu ano todo seria baseado nele, fui percebendo que qualquer possibilidade de trilhar caminhos normais ao lançamento de um disco, shows, etc., estava inviabilizada. E inclusive a peça, ‘Monument for Nothing’, que eu queria que tivesse participação da Ju, ainda estava sem voz. Nesse contexto passei a ficar ouvindo tudo que tinha e a pensar a respeito. Por ironia do destino durante esse período, logo no iniciozinho, surgiu um freela de trilha sonora que Ju e eu fomos convidados a fazer. Dei maior força pra gente topar e com isso ela começou a desenvolver métodos de gravar em casa. Conforme vi que estava dando bastante certo resolvi finalmente enviar a ‘Monument for Nothing’ pra ela e no processo acabamos compondo ‘Breeze ASMR’ também, que foi a última peça do disco a surgir.”
“Daí, ouvindo tudo que tinha comecei a pensar que valeria muito a pena ter outras pessoas comigo nesse momento também, botei na cabeça que produziria esse disco como se fosse meu último, até porque, dado o contexto do que consigo imaginar que venha a ser um novo normal, me parece que será muito difícil produzir algo desse tamanho novamente”, prossegue. “E foi aí que vieram as outras participações, fui procurando saber se o que fiz com Ju não daria certo com outras pessoas que já tinha em mente, entre elas pessoas com quem já havia trabalhado e significaram muito na minha história e outras com quem já tinha o desejo de trabalhar há muito tempo – e essa poderia ser a última oportunidade. E isso foi o momento final e mais trabalhoso da produção mas acho que valeu muito a pena, consigo ver minha história toda nesse disco, tudo que já fui e sou. E acho que foi muito legal narrativamente ter as participações surgindo na metade final do disco.”
Mesmo com a variedade de temas musicais explorados no disco, da canção a experimentos com timbres, texturas, estruturas, trilhas, atmosferas e mixagens, Monument for Nothing tem um farol, que determina inclusive seu batismo. “Acho que a maior foi o Makoto Aida e seu TEKITO. A faixa-título já existia mas ela ainda não dava nome ao disco até eu adquirir em janeiro desse ano, depois de anos desejando, o catálogo ‘Monument for Nothing’ do artista. O livro que adquiri pertenceu ao Miranda, foi muito legal receber o livro em casa com um bilhetinho de um dos familiares dele dizendo que esse era um dos itens preferidos dele na coleção, isso me tocou profundamente e acho que no mesmo dia o nome do disco estava decidido e tudo passou a fazer muito sentido e influenciou todas as outras escolhas pra arte”.
Cético em relação ao período que está lançando o disco, ele prefere não exercer muita futurologia, quando o pergunto sobre a relação do disco com esta fase de quarentena. “Não sei, vamos descobrir. Mas pra mim faz muito sentido, não sabemos muito do que vem pela frente”, responde. Sobre desdobramentos a partir deste lançamento, Cadu também não faz ideia. “Ele vai estar no mundo, o que será feito disso eu ainda não descobri”, divaga. “Tem sido um período difícil pra gente, né… Pra todo mundo. O mundo todo tá discutindo isso agora e é seguro dizer que não temos muitas respostas que não sejam conjecturas e no Brasil a gente tem visto diariamente que o buraco é ainda mais embaixo… Eu ainda sei te dizer exatamente como eu vejo esse momento, ainda tô muito colado a coisa, no processo de adaptação. Talvez seja um momento pra nos juntarmos, mesmo, pra que possamos discutir e quem sabe já começar os preparativos pro tal do novo normal.”
Monument for Nothing faixa-a-faixa, por Cadu Tenório
“Garden”
“A ideia inicial pra essa peça nasceu da vontade que nutri por anos de criar uma trilha sonora pra acompanhar a leitura de ‘Garden’ do Yuichi Yokoyama. No decorrer fiquei convencido de que a trilha funcionaria também em outro trabalho do Yokoyama que me é muito caro, ‘Travel’, mas me mantive fiel ao nome inicial. No processo tive a de ter um ‘beat circular’ apesar de quebrado trouxesse vagamente a lembrança das rodas no trilho enquanto as texturas e o tema flutuassem e nos levassem às paisagens com formas impossíveis, distorcidas pela velocidade, vistas pela janela do trem. Nisso imaginei também as vozes dos personagens tão peculiares do Yokoyama preenchendo esse trajeto, mesmo que a gente não os veja falando nos livros, sempre foi interessante pra mim imagina-los lendo comigo as onomatopeias que preenchem as paisagens do Yuichi.”“No Longer Human”
“Essa peça começou a tomar forma quando descobri que seria traduzida e lançada no ocidente a versão em mangá do Junji Ito pro livro Ningen Shikkaku de Osamu Dazai. É um livro que marcou muito por diversos motivos e sou apaixonado pelo trabalho do Ito, fiquei bastante curioso sobre como ele adaptaria. Na euforia e ansiedade por ter o mangá que ainda demoraria meses pra ter em mãos, comecei a esboçar umas ideias enquanto ouvia as trilhas do Carpenter que ouço com frequência e enquanto rolavam minhas audições anuais de Hymnen do Stockhausen que é uma dos trabalhos favoritos da vida por aqui. Claro, sei que é muita pretensão tentar unir esses dois mundos, hahaha, e longe de mim querer acertar ou fazer literalmente isso. Mas eram parte significativa do que perambulava no ambiente enquanto compunha e acho que faz muito sentido citar. E claro, Ero-Guro, Suehiro Maruo… E eis a peça, com diversos momentos que desembocam como afluentes de rio em cada parte com a atmosfera sombria que sofre mutação gradual, mudanças microtonais em camadas de violino que te carregam até a nostalgia dos tempos que não voltam através de um arp e pesam no peito com os acordes no piano.”“Shinobu”
“Shinobu tem o fio de continuidade a partir do piano que dá um gosto na faixa anterior mas a mudança de paisagem aqui é rápida, existe uma tentativa de flerte com o city pop e o lo-fi jazz/hip hop do Nujabes MAS colocando mais em evidência algo de fusion com free jazz radical e texturas mais agressivas que desembocassem em um ápice que transformaria a peça em ambient gostoso de ouvir com várias e várias camadas e linhas de teclado sem sustain que se transformaria em uma textura meio de “taping”. Todos os meus discos nos últimos costumam ter pelo menos uma peça com um clima noir, um arranjo de sax penetrante, então podemos dizer que essa é como uma continuação natural ‘Marlowe & Spade ポリスノーツ’ e ‘Pelagea Noir Roleplay’ do Corrupted Data. Rola um lance meio AOR no tema que abre e fecha a faixa e nos meus vocais soterrados por reverb e pitch shifter nessas partes.”“Saffron Witch” e “Hazel Priestess”
“Essas duas faixas nasceram quase juntas. Digo que são um díptico. No meu trabalho sempre tive certa obsessão por camadas e detalhes, tantos detalhes que muitas vezes ninguém senão eu notam, haha. Nessas duas eu queria tornar as coisas muito mais intimistas, utilizando apenas uma linha de sintetizar e o preenchimento e acompanhamento ser apenas delay. Acho que fui bem sucedido a única coisa é que em “Hazel” eu não resisti e acabei adicionando gravações de campo que acho que engrandeceram bastante as texturas. São peças ambient que na minha cabeça tem muito Eno presente mas também Boards Of Canada, Autechre e Aphex Twin, influências minhas desde moleque. Claro ficar citando nome grande é fácil, a intenção não foi emular ninguém mas essas referências acabam vindo na cabeça quando ouço ambas.”“R’lyeh.exe”
“Essa peça nasce da puxada de textura das duas faixas anteriores começando no espectro agudo mas aqui certa ‘megalomania’ retorna, quis acrescentar nela ruídos de brinquedos de criança e objetos eletrônicos de baixo custo criando camadas de ruídinhos que se misturam a gravações de campo de cantos de passarinhos e gritos gravados por aqui e é tudo costurado por uma linha de synth meio blade runner. Já demarca uma transição pro universo lovecraftiano, Dagon já brotou no quarto no final do labirinto, que nem a mina do exorcista.”“@tekeli_li”
“Essa peça é de fato a entrada do disco em outro terreno, ela tem um arp rápido e um beat em 400 bpm algo que me ligaria direto ao digital hardcore do ATR texturizando que desemboca em uma bateria de verdade enquanto os berros parecem chamar algo que é colocado de forma literal quando as vozes digitais clamam ‘BLAAAAAACK METAARU'”“Monument for Nothing (Feat. Juçara Marçal)”
“E entra o black metal synth, blast beat, riffs, synth, a voz da Juçara costurando melodicamente quase como outra linha de synth se misturando e bifurcando, harmonizando e o arp chega pra tomar tudo de assalto e megalomania, detalhe, impacto. A bateria é tanto textura como todos os outros elementos. E é tudo ao mesmo tempo e agora mas com uma ordem muito própria, melodias estão lá dentro. catarse e tudo acaba na paz. Faixa que dá nome ao disco. extraída diretamente de Makoto Aida como a dedicatória não deixa dúvida.”“Breeze ASMR (Feat. Juçara Marçal)”
“Quase uma coda da faixa anterior, sua antítese, uma canção de ninar, pra acalmar os ânimos, relaxar. O diálogo da bocca chiusa com os synths, voz respondendo máquina, máquina respondendo voz, harmonia. A voz humana ainda com a ausência de palavras.”“Yog-Sothoth is the gate (Feat. Carla Boregas & Maurício Takara)”
“Peça que faz a transição pra última parte do disco, pegando o clima mínimo e sutil instaurado pela faixa anterior mas levando a frequência pro espectro mais grave. Minha voz totalmente processada balbuciando lentamente antevendo uma mudança de cena com a entrada de Boregas e Takara, mais uma faixa referencial à Carpenter. ”“Nublado (ft. Sara Não Tem Nome)”
“Aproveitando a deixa das frequências graves “Nublado” é a primeira peça da parte final do disco, a voz humana clara e com palavras aparece pela primeira vez aqui apesar de rapidamente com a participação da Sara no final.”“Conchas (ft. Sara Não Tem Nome)”
“Essa é uma canção que me puxa muito pras minhas influências primordiais, quis que ela entrasse aqui como um traço de humanidade forte, a letra que pedi pra Sara encaixar na melodia expõe sentimento e dialoga com Innsmouth. A voz humana clara, no meio do caos adocicado. O arranjo intimista, soturno e direto, distorção e melodia, muito do que gosto da música dos anos 80 ainda mantendo a identidade de timbres do disco, no fim a faixa mais pop talvez seja o lado de experimentalismo mais ousado do disco. ”“Astral Clocktower (ft. Lucindo)”
“Peça que leva diretamente pra DLC de Bloodborne, Cocteau Twins, maré cheia, canto de ‘sereias’ vindo do farol ou seria das pedras. Os agudos aqui rasgam a alma, é a viagem astral através das frequências.”“Entreportas (ft. Rogério Skylab)”
“Rogério está no limbo, acordou lá, existe redenção e muitas portas. Pós-punk. Silent Hill ou Innsmouth?”“Mãos (ft. Vitor Bauer)”
“Lampejo de memória, synth rock, urgência, sintetizadores com fuzz, Vitor Brauer acordou de um sonho ruim, sangue nos travesseiros. Quarentena, culpa.”“Gatos de Ulthar na Rua dos Quatro Ventos (Feat. Emygdio)”
“No fim só restarão os gatos, são eles que vão contar nossas histórias, são eles que vão trazer os outros seres até nós. São eles que mandam. Chambers os entendeu como ninguém. “
“Tomei conhecimento da existência desse filme mais ou menos em 95, 96, por causa da foto de uma matéria de revista que minha irmã tinha em casa”, o guitarrista Kiko Dinucci lembra como conheceu o clássico cult Imperador Ketchup (Tomato Kecchappu Kōtei), do cineasta japonês Shūji Terayama, que faz a trilha sonora ao vivo nesta terça-feira, no Centro da Terra, ao lado do experimentalista carioca Cadu Tenório (mais informações aqui). “Era um texto sobre a nouvelle vague japonesa e falava Nagisa Oshima, Imamura, esses diretores maravilhosos – se não me engano, o texto tinha algo a ver com a Lucia Nagib, especialista em cinema japonês e brasileiro. Eu tinha uma banda chamada Nitrate Kid, o Wash, da banda Eu Serei a Hiena, que tocava baixo, estava indo morar no Japão e me deixou encarregado de fazer uma capa para a demo. Peguei algumas revistas para fazer colagem e me deparei com uma foto do filme nessa revista da minha irmã, eram umas crianças com umas maquiagens bizarras e acabei usando. Me lembro da legenda: cena do filme Imperador Ketchup. A foto e o título do filme me causaram estranhamento e atração, pensei: ‘esse filme deve ser demente’. No mesmo ano o Stereolab gravava um disco com o mesmo nome do filme Emperor Tomato Ketchup, mas só fui conhecê-los no ano seguinte.”
“Esqueci que esse filme existia e um dia, 20 anos depois, lembrei dele, baixei e assisti. Fiquei chapado. Achei que ele dialogava diretamente com filmes do cinema marginal brasileiro como Rogério Sganzerla, José Agrippino de Paula e Andrea Tonacci. Ele é assustadoramente moderno e contemporâneo até hoje, dialoga diretamente com esse tempo demente no qual estamos vivendo, de tanto delírio fascista e autoritarismo”, continua Kiko. “Muita pouca gente conhece esse filme no Brasil, gostaria que mais gente conhecesse. Já que não sou programador ou curador de cinema, arrumei um jeito de exibir o filme que é tocar por cima dele, é mais uma desculpa pra ver e mostrar o filme e me reencontrar com o Cadu.” O filme é indicado para maiores de 16 anos.
A trilha ao vivo não é o primeiro trabalho de Kiko com Cadu Tenório. “Já tinha ouvido a falar no Cadu por conta da cena da cena carioca que se apresentava quase exclusivamente na Audio Rebel dentro da programação do Quintavant. Depois ouvi as coisas que ele fez em parceria com o Marcio Bulk e gostei bastante. Em seguida, ele gravou o Anganga com a Juçara Marçal, e de lá pra cá criou-se uma amizade e admiração mutua. Tocamos juntos a primeira vez numa programação chamada Nós da Voz, idealizada pela Juçara no qual cantoras e cantores faziam improvisação livre ao lado de instrumentistas, mas tudo com ênfase na voz como instrumento. Nesse dia o time era a Juçara, Ava Rocha, eu e Cadu – e ali percebemos que havia uma sintonia sonora. Posteriormente a Juçara e Cadu me chamaram pra fazer alguns shows do Anganga e ela também convidou Cadu pra participar do show Encarnado. Desde então nos encontramos em diversas ocasiões. Fizemos no ano passado uma pequena residência no Sesc Paulista ao lado da cantora moçambicana Lenna Bahule. Estamos sempre inventando alguma história.”
Os dois inclusive já fizeram trilha de filmes ao vivo. “O Cadu toca sampler e eu toco guitarra, sintetizadores e sampler. Ficaremos ao lado do palco, dialogando com o filme que terá seu som original, trabalhamos por cima da trilha do filme. Já fizemos também a trilha do filme Hitler III Mundo, de José Agrippino de Paula e foi fantástico. Temos em mente fazer outras trilhas ao vivo. Cadu tem uma trilha original para o filme mudo experimental de terror gore Begotten.”
O próprio Kiko tem sua carreira cinematográfica paralela: “Às vezes faço trilha de cinema pra me aproximar desse universo, mas me divirto mais com trilha ao vivo de filmes clássicos, me dão mais liberdade, dá pra tirar mais onda. Gosto de fazer cinema também, dirigir… Estou escrevendo um novo roteiro ao lado do Clima (o compositor Eduardo Climashauska) que foi ator do meu filme mais recente, Breve Em Nenhum Cinema – dá pra ver ele no Vimeo, viu?”
Projetos paralelos do Metá Metá e do Hurtmold encontram-se num show de domingo, em mais uma atividade do Bicho de Quatro Cabeças. O Anganga reúne Juçara Marçal e o músico Cadu Tenório reinterpretando antigos cânticos afro-mineiros em roupagem de improviso contemporâneo, enquanto o MdMduo reúne os dois irmãos guitarristas do Hurtmold – Fernando e Mário Cappi – em um projeto voltado para a canção que mistura rock, música regional brasileira e africana, além de improvisos e bases eletrônicas. Os shows são gratuitos e começam a partir das 18h – os ingressos podem ser retirados duas horas antes (mais informações aqui).
Na edição de janeiro da minha coluna na revista Caros Amigos, eu escrevi sobre o grande ano que foi 2015 para a música brasileira.
A consagração de 2015
O ano firmou toda uma safra de artistas que lançou discos que reverberarão pelos próximos anos
Alguma coisa aconteceu na música brasileira em 2015. Uma conjunção de fatores diferentes fez que vários artistas, cenas musicais, produtores e ouvintes se unissem para tornar públicos trabalhos de diferentes tempos de gestação que desembocaram coincidentemente neste mesmo período de doze meses e é fácil notar que esta produção terá um impacto duradouro pelos próximos anos. O melhor termômetro para estas transformações são os discos lançados durante este ano.
Os treze anos de espera do disco novo do Instituto, o terceiro disco pelo terceiro ano seguido do Bixiga 70, os seis anos de espera do disco novo do Cidadão Instigado, o disco que Emicida gravou na África, um disco que BNegão e seus Seletores de Frequência nem estavam pensando em fazer, o surgimento inesperado da carreira solo de Ava Rocha, o disco mais político de Siba, o espetacular segundo disco do grupo goiano Boogarins, os discos pop de Tulipa Ruiz e Barbara Eugênia, a década à espera do segundo disco solo de Black Alien, o majestoso disco primeiro disco de inéditas de Elza Soares, os quase seis anos de espera pelo disco novo do rapper Rodrigo Ogi, dos Supercordas e do grupo Letuce e um projeto paralelo de Mariana Aydar que tornou-se seu melhor disco. Mais que um ano de revelação de novos talentos (o que também aconteceu), 2015 marcou a consolidação de uma nova cara da música brasileira, bem típica desta década.
São álbuns lançados às dezenas, semanalmente, que deixam até o mais empenhado completista atordoado de tanta produção. É inevitável que entre as centenas de discos lançados no Brasil este ano haja uma enorme quantidade de material irrelevante, genérico, sem graça ou simplesmente ruim. Mas também impressiona a enorme quantidade de discos que são pelo menos bons – consigo citar quase uma centena sem me esforçar demais – e que foram feitos por artistas jovens, ainda buscando seu lugar no cenário, o que apenas é uma tradução desta que talvez seja a geração mais rica da música brasileira. A quantidade de produção – reflexo da qualidade das novas tecnologias tanto para gravação e divulgação dos trabalhos – não é mais meramente quantitativa. O salto de qualidade aos poucos vem acompanhando a curva de ascensão dos números de produção.
Outro diferencial desta nova geração é sua transversalidade. São músicos, compositores, intérpretes e produtores que atravessam diferentes gêneros, colaboram entre si, dialogam, trocam experiências. Não é apenas uma cena local, um encontro geográfico num bar, numa garagem, numa casa noturna, num apartamento. É uma troca constante de informações e ideias que, graças à internet, transforma os bastidores da vida de cada um em um imenso reality show divulgado pelas redes sociais, em clipes feitos para web, registros amadores de shows, MP3 inéditos, discussões e textões posts dos outros.
A lista de melhores discos que acompanha este texto não é, de forma alguma, uma lista definitiva, mesmo porque ela passa pelo meu recorte editorial, humano, que contempla uma série de fatores e dispensa outros. Qualquer outro observador da produção nacional pode criar uma lista de discos tão importantes e variada quanto estes 25 que separei no meu recorte. Dezenas de ótimos discos ficaram de fora, fora artistas que não chegaram a lançar discos de fato – e sim existem na internet apenas pelo registros dos outros de seus próprios trabalhos. E em qualquer recorte feito é inevitável perceber a teia de contatos e referências pessoais que todo artista cria hoje em dia. Poucos trabalham sozinhos ou num núcleo muito fechado. A maioria abre sua obra em movimento para parcerias, colaborações, participações especiais, duetos, jam sessions.
E não é uma panelinha. Não são poucos amigos que se conhecem faz tempo e podem se dar ao luxo de fazer isso por serem bem nascidos. É gente que vem de todos os extratos sociais e luta ferrenhamente para sobreviver fazendo apenas música. Gente que conhece cada vez mais gente que está do seu lado – e quer materializar essa aliança num palco, numa faixa, num mesmo momento. Esse é o diferencial desta geração: ela vai lá e faz.
Desligue o rádio e a TV para procurar o que há de melhor na música brasileira deste ano.
Ava Rocha – Ava Patrya Yndia Yracema
BNegão e os Seletores de Frequência – TransmutAção
Barbara Eugênia – Frou Frou
Bixiga 70 – III
Boogarins – Manual ou Guia Prático de Livre Dissolução de Sonhos
Cidadão Instigado – Fortaleza
Diogo Strauss – Spectrum
Elza Soares – Mulher do Fim do Mundo
Emicida – Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa
Guizado – O Vôo do Dragão
Ian Ramil – Derivacivilização
Instituto – Violar
Juçara Marçal & Cadu Tenório – Anganga
Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thomas Harres – Abismu
Karina Buhr – Selvática
Letuce – Estilhaça
Mariana Aydar – Pedaço Duma Asa
Negro Leo – Niños Heroes
Passo Torto e Ná Ozzeti – Thiago França
Rodrigo Campos – Conversas com Toshiro
Rodrigo Ogi – Rá!
Siba – De Baile Solto
Space Charanga – R.A.N.
Supercordas – A Terceira Terra
Tulipa Ruiz – Dancê