Como a maioria das pessoas que passaram por isso, também arregalei os olhos quando a Susan me disse que “tinha umas músicas”. Afinal, Susan Souza é jornalista e estava sempre ali no meio da galera trocando ideia, nos shows, nas festas, conversando sobre música e eventualmente discotecando – mas nada dava a enteder que ela tinha um trabalho artístico autoral (embora ela já tivesse tocado em algumas bandas antes, até cover). O mais próximo disso era sua ligação com a dança flamenca – que mais tarde, fui entender, também com a música flamenca. Mas há uns três anos ela vem trabalhando essa nova faceta, batizada de Cinnamon Tapes, em que ela compõe, canta e toca suas próprias músicas, muito como uma forma de exorcizar dores e fantasmas pessoais, lapidando lentamente até que o destino lhe deu a oportunidade de gravar com o baterista do Sonic Youth, Steve Shelley, que também produziu seu primeiro disco. O primeiro gostinho de sua nova personalidade vem agora na próxima segunda, dia 15, quando ela abre o show da dupla norte-americana Widowspeak no Breve, como parte das comemorações do aniversário de cinco anos da Balaclava Records (mais informações aqui), que irá lançar seu disco. Ela não quer liberar nem um single antes de estar 100% pronto, por isso o trecho que foi utilizado no teaser do show, abaixo, pode dar a entender que ela trilha exatamente o mesmo caminho que Chan Marshall traçou com seu nome Cat Power. Batizado de Nabia, o disco é tão influenciado por indie rock e folk quanto por música brasileira (inclusive com letras em português) e música flamenca – e ela conta como foi sua iniciação musical neste papo que tivemos.
Desde quando você compõe? E como tomou coragem pra começar a mostrar suas músicas?
Quando criança, eu brincava de solfejar melodias. Gravava em fita cassete e ia cantando por cima umas letras que inventava na hora. Por isso Cinnamon Tapes é meu nome artístico: “Tapes” vem dessas fitas que eu gravava naquela época e “Cinnamon”, a canela, é um sabor/essência que me fortalece, é como uma poção mágica para mim. Infelizmente, perdi essas fitas da infância em mudanças de casa. Comecei a explorar o violão de náilon por volta dos 12 anos e a guitarra aos 19. A coragem para mostrar meu trabalho só veio há três anos quando percebi, em terapia, que eu boicotava minhas habilidades. Por ter vivenciado situações difíceis e quadros de depressão, eu tinha dificuldade de me validar como artista. Esse disco marca um processo sincero de autoaceitação, além de ser um tratado feminista que assinei comigo mesma. Por muito tempo, alguns homens me influenciaram a achar que minhas poesias, minha voz ou meu jeito de tocar não eram bons o bastante.
Como esse processo evoluiu para um disco?
Muitas amigas e amigos contribuíram para que eu investisse na carreira. Meu processo terapêutico também foi fundamental para que eu cortasse vínculos ruins, dentro e fora de mim, que atrapalhavam a concretização do disco. Fiquei muito mais focada e aproveitei as férias do meu trabalho paralelo como produtora de vídeo para fazer as gravações do disco no meu tempo livre, mantendo sempre essa jornada múltipla de trabalhos. Por isso demorou tanto tempo para ficar pronto, pois preciso ter outro emprego para manter as contas em dia.
Quais são as suas inspirações e influências?
O disco se chama Nabia, que é o nome dessa personagem que veio das águas e que atua como um alter ego meu. Ela é um tipo de sereia mística que se permite viver em terra firme e suas vivências são contadas nas músicas. Acho que foi fácil desenvolver essa personagem porque também sou atriz de formação. Na sonoridade fui muito influenciada por Nara Leão, PJ Harvey, Cat Power, Baden Powell, Radiohead, Maria Bethânia, Nina Simone, Gal Costa, Neil Young, Sonic Youth, Paco de Lucia e La Niña de Los Peines. Em resumo: artistas indies, brasilidades e flamenco.
Você sempre soube que deveria trabalhar com essa sonoridade, com esse formato?
Tudo é propositalmente muito sutil, minha guitarra é quase toda dedilhada e aproveitamos muito as pausas, os silêncios. Eu queria climas etéreos e que remetessem aos ambientes da personagem. Além do Steve Shelley, também contei com colaborações do Emil Amos e do Paulo Kishimoto. Todos entenderam que eu queria gravar de um jeito simples e extrair beleza dos detalhes. Estou bem feliz com o resultado, foi registrado com muita harmonia e respeito.
E como foi que o Steve Shelley entrou nessa história?
Estava em um bar com meu amigo André Palugan quando falei que acharia muito legal se tivesse um baterista como o Steve Shelley no disco, porque sempre gostei do Sonic Youth, é uma banda que me conectou a muita gente. Meu amigo então me convenceu a escrever uma mensagem para o Steve pelo Instagram, naquele mesmo momento, perguntando se ele tocaria no meu disco! Steve respondeu uns meses depois pedindo para ouvir minhas demos. Isso foi no final de 2015. Nós não nos conhecíamos até então e eu nem de longe imaginava que essa abordagem teria esse desfecho. Enviei três canções só voz e violão, ele gostou e, para a minha surpresa, não apenas gravou as baterias como fez a produção. Ele me incentivou a compor mais músicas para que completasse um álbum. Fui para Hoboken, New Jersey, em abril de 2016 e fevereiro de 2017. Gravamos e mixamos no estúdio para onde o Sonic Youth migrou depois que fecharam o estúdio da Murray Street.
Disco gravado, agora o próximo passo é lançá-lo. Em que pé está isso?
Vai ser finalizado nos Estados Unidos agora em maio ainda e espero que esteja disponível o quanto antes. O lançamento será pela Balaclava Records.
E o show, quando é o primeiro show e qual vai ser o formato?
Será no dia 15 de maio, no Breve. Vamos tocar antes do Widowspeak e estou muito feliz por isso! Será um show mais curto para nos apresentar de leve, uma degustação. Serei acompanhada por Caca Amaral (bateria), Guilherme Braga (guitarra) e Martim Batista (baixo), que estão me ajudando a recriar os arranjos para deixar o show ainda mais encorpado.
É bem interessante perceber que, nesta nova fase da música independente brasileira (autogerida, estruturada, sem preconceitos estéticos e ávida por conexões), o fluxo criativo começa a sair das capitais e aparecer em cidades menores que, mesmo sem a vida agitada dos grandes centros, consegue estar perfeitamente sintonizada com tudo que vem acontecendo no Brasil e no mundo – não apenas informada, mas agilizada. Um dos melhores exemplos desta etapa é a gravadora gaúcha Honey Bomb Records, que chega em São Paulo com seu primeiro minifestival nos dias 8 e 9 de de dezembro, trazendo duas bandas de seu elenco (Bike e Catavento) além de duas atrações internacionais (a norte-americana Winter e a dupla chilena Holydrug Couple) – mais informações aqui.
Com base em Caxias do Sul, a gravadora possui em seu elenco artistas locais (como a Catavento, a Cuscobayo, a Mingarden – todos de Caxias – e Supervão – de São Leopoldo), de outros estados (os capixabas My Magical Glowing Lens, os paulistanos Bike e os curitibanos do Marrakesh) e até uma banda norte-americana (Blank Tapes, da Califórnia) e aos poucos vem se especializando em rock psicodélico, além de mexer na cena local. Conversei com o Jonas Bender Bustince, um dos capos do selo, sobre o momento que a Honey Bomb tem passado.
Conte o começo da história do selo.
A ideia de se criar um selo na cidade já pairava no ar entre as bandas que criavam som autoral independente aqui em Caxias do Sul. Em 2012, eu participei do primeiro lançamento da minha vida como músico, baterista, e ao mesmo tempo produtor executivo. A banda se chamava Slow Bricker – pegamos o último suspiro da era Trama e organizamos nosso próprio show de lançamento convidando a Loomer de Porto Alegre. Isso já era um sinal de que podíamos movimentar a cena alternativa ali na cidade por nossa conta e esse lance da autogestão tava em todas as bandas! O que rolou foi que com a pausa na minha banda eu foquei todas as energias nas outras bandas que também seguiam acreditando no próprio som, como a Catavento, banda na qual meu irmão é baterista, uma geração mais nova que a minha. Eles começaram a ensaiar no quartinho dos fundos da onde eu morava com a minha família. Eu acompanhei a banda desde o início e a amizade com eles começou a aumentar e eu decidi seguir essa fagulha mais um pouco.
Aí em 2013 fizemos uma reunião em 3 bandas – Slow Bricker, Catavento e Descartes – e decidimos juntarmos tudo num mesmo guarda-chuva. Eu tava formado em Comunicação – morrendo numa agência de Publicidade atrasadíssima como redator – e o Leonardo Lucena – da Catavento e Descartes, com 24 anos – e Eduardo Panozzo – da Catavento, 24 anos – também trabalhavam em agências e são artistas visuais incríveis.
Aí vieram os lançamentos, as validações que vamos recebendo da mídia independente e do público apreciador desse nicho. Começamos a circular e conhecer membros de outras bandas em festivais, lançar e trazer artistas de fora da nossa cidade, do nosso estado, do nosso país graças à bendita rede mundial de computadores, fazemos conexões e um grande remix começa: viajamos e conhecemos gente que faz isso há muito mais tempo do que você e pessoas mais novas que se inspiram e começam a fazer isso e aí a vontade de largar os trampos fixos aumenta, todos se suicidam socialmente perante a estabilidade tão apreciada pelos seres industriais que aqui habitam Caxias do Sul e começamos a viver de freelas, com produção, criação, som, shows, festas, eventos e aí seguimos nesse fluxo até agora, aprendendo a cada instante nesse caos guiado pela vibração da música. Abrimos mão de muita coisa do ponto de vista “padrão da sociedade classe média de curso superior completo”, mas fazemos o que gostamos e temos vontade de seguir nesse fluxo por mais tempo. A música é o que nos move, sendo no palco ou na produção.
A Honey Bomb está se especializando em psicodelia?
A gente realmente se aprofundou na psicodelia desde o primeiro lançamento, mas foi de uma forma natural na criação estética e contemporânea. A ideia nunca foi delimitar, tanto que nesse ano lançamos Cuscobayo, uma banda que finca os pés nas raízes da região do Prata, te manda uma mensagem política forte, mas com a animação frenética tipicamente esperançosa do sulamericano. Não é lisérgico, mas te faz viajar! A curadoria segue num padrão muito espontaneamente também. Já passamos por folk, surf, garage, “grunge”, post-hardcore, trip hop, dream pop, indie pop, space, post-rock e por aí vai e acredito que a psicodelia pode estar presente em todos esses gêneros e sub-gêneros do rock alternativo. Ano que vem queremos apostar mais em gente que faz beats, mais rap, muito mais groove, muito mais minas, muito mais raízes e ao mesmo macro, mas que transporte para um pequeno universo singular que é o momento eterno de ouvir música em casa, numa festa ou num show ou em qualquer momento que ela te acompanhe e te envie pingos de esperança pra manter a chama viva no peito. Acho que a gente assistiu muito Cosmos, tomou muito banho de cachoeira e acabou soltando isso dessa forma mesmo.
Como você vê a atual fase do rock psicodélico no Brasil?
Acho que a cena independente do Brasil vem desde 2012 recebendo uma vibe lisérgica poderosa parecida com a de artistas clássicos da MPB dos anos 70 mais o fator globalização e acesso infinito a informação e muito mais referências fizeram surgir essa nova onda, mas acredito que é cíclico. Eu mesmo ouvi o Piper at the Gates of Dawn pela primeira vez com 12 anos, meu pai, também músico, tinha esse CD na sua coleção e desde então minha vida não mais a mesma. Acho que esses momentos que nos conectam com a música em cada fase da vida são ciclos. Eu ouço o Moon Safari hoje em dia de uma outro jeito, daí veio o Tame Impala e o Pond e renovaram isso e respigaram em bandas latinas também, o Flaming Lips sempre renovando essa vibe, enfim.
Aqui no sul temos o Júpiter Maçã que fez isso à sua maneira. Atualmente bandas como Catavento, Boogarins, Bike, Tagore, Supercordas, Frabin, Van der Vouz, Supervão tem psicodelia na sua música mas de um jeito único também, não existe uma cartilha, acho que é uma espécie de olhar contextual. Acredito que esse ciclo está sempre começando e terminando, vejo que os momentos atuais de ódio e transição para dentro do buraco negro da incerteza do mundo estão tomando conta das as cores e isso também faz parte do processo, vamos ver pra onde vai isso tudo dentro da criação desses artistas brasileiros que chamaram a atenção em inserir isso no som. Vai ficar mais sujo, mais limpo, mais eletrônico, mais grooveado, mais raíz, mais “pagão”? Não faço ideia. Aí vai de cada banda ou artista, mas que aquela camada de imprevisibilidade do som continue viva na alma.
O que é uma gravadora numa época em que quase ninguém mais compra discos? Como é o trabalho de vocês?
Nós criamos uma marca para validarmos e difundirmos nossa própria produção artística como um todo, como curadores, seja num show, numa festa, numa camiseta ou num pôster, num CD ou qualquer mídia física – que produzimos com cada vez menos frequência, porque as pessoas não precisam mais possuir isso, a música está na internet. As necessidades em tempos de crise fazem a diferença. Nós funcionamos atualmente mais como difusores e produtores de shows e lançamentos digitais e temos um braço forte com circulação. Tentamos cada vez mais colocar artistas em festivais e fazer a experiência rolar no ao vivo, nessa situação a venda de merchs se acentua mais, mas o selo não chega a ser algo sustentável a todos que se envolvem nele. Não nos limitamos a criar só em Caxias do Sul, somos móveis como abelhas, desculpe o trocadilho. Eu mesmo tenho que trabalhar em diferentes projetos para continuar fazendo ações com o selo. Mas ano que vem começaremos parcerias fortes com produtoras audiovisuais para que o fator “clipe” e a assinatura artística do selo siga impactando pela qualidade. Queremos ter um festival próprio na cidade também para recebermos todas as pessoas e artistas maravilhosos que conhecemos em cada viagem de uma forma mais confortável para sentirem a vibe daqui que acabou gerando algo legal pra fora daqui.
Se um artista quiser tentar entrar no selo o que ele precisa fazer?
Gostamos de ter relações próximas com os artistas que lançamos, nos engajamos e acreditamos no potencial. O artista tem que ter uma postura mais próxima do autoconhecimento constante e tem que controlar suas expectativas, além de saber autogerir sua carreira em conjunto com o selo. Um trabalho bilateral mesmo. Apostamos em artistas que se aprofundam na música de uma maneira autêntica e conceitual, mas muito bem referenciada e diversificada, tanto de passado, como de presente e de futuro. Tem que ser inquieto e surpreender, seja pela linguagem musical, visual, verbal ou pela vibe.
Como foi a aproximação com as bandas estrangeiras que vão tocar no festival? Vocês vão lançar os discos delas também?
Nós conhecemos a Samira Winter pela internet e em 2014 ela fez uma turnê aqui com seu trabalho solo, acompanhada por dois músicos americanos e um curitibano. Como ela tem essa ligação forte com Curitiba, uma cidade que também gostamos muito, fizemos três shows deles por três cidades do Rio Grande do Sul e aí quando ela voltou pros EUA a conexão seguiu. A gente distribuiu o primeiro LP deles no Brasil e também ajudamos na comunicação com a mídia local do lançamento aqui. Ela curtiu nossa vibe e indicou o selo pro The Blank Tapes, outra banda da Califórnia que lançamos dessa forma. Vamos lançar o próximo da Winter aqui sim. Essa turnê deles aqui aconteceu graças ao próprio investimento deles virem pra cá passar o fim de ano. Aí a gente começou a fechar muitos shows, incluindo esse nosso minifest em SP e o Picnik em Brasília, um festival que tem uma conexão já muito forte com o selo. Nos identificamos muito em vários aspectos com a curadoria artística desse festival.
Por que fazer um festival de um selo gaúcho em SP?
Foi algo que caiu de paraquedas e eu fui juntando as peças. Eu e a Catavento estamos indo para o Sim São Paulo, a Winter vai estar no Brasil, o Holydrug Couple é uma banda chilena que curtimos muito – e que com certeza pretendemos lançar no Brasil – que o Picnik em Brasília animou trazer, o Bike representa a psicodelia da cena local de Sampa. Surgiu a parceria com a Breve e a nova plataforma de venda de shows Mais Shows, uma iniciativa de dois amigões e parceiros nossos do estado, grandes fãs entusiastas, produtores, comunicadores e artistas visuais. Aproveitamos tudo isso e o momento e apostamos que a cidade tem muita gente que admira a música de uma forma mais curiosa, além de já ter uma pequena base de fãs que acompanham o trampo desses artistas pela internet. Somos gaúchos, da serra gaúcha, um frio do caralho, mas uma cidade emergente que se torna global a cada ano. Nós somos daqui, mas transitamos pela rede seja ela física ou virtual. Gostamos de passear pela babilônia sentir o cinza e depois voltar. Algo como um enxame barulhento que sai da colmeia para polinizar.