Bom como eu tenho sido contigo
Essa saiu na Folha de ontem, mesqueci de linkar.
Bob Dylan recria seus “tempos modernos”
Compositor lança seu 32º disco de estúdio e encerra trilogia iniciada em 97
Sonoridade de novo CD do compositor norte-americano oscila entre o country e o rhythm’n’blues e revisita legado do século 20
Nem sempre houve cidades, carros, asfalto, publicidade, poluição, fábricas, multidões engarrafadas em rotinas vazias de sentido, crises permanentes, neuroses coletivas. É difícil lembrar que a paisagem que nos acostumamos era bem diferente nos últimos cem anos. A mudança que o século vinte proporcionou ao planeta criou um presente contínuo que faz com que nós esqueçamos de onde – a raça humana – viemos.
“Tempos Modernos”, resume Bob Dylan, 65, ao batizar seu 32º disco de estúdio com o mesmo título do clássico filme de Charles Chaplin, lançado em 1936, cinco anos antes do próprio Dylan nascer. O disco é o item de número 50 em sua discografia, entre discos ao vivo, coletâneas e reedições e é o terceiro capítulo de uma trilogia de obras-primas inaugurada com “Time Out of Mind” de 1997 e seguida de “Love & Theft”, cujo lançamento coincidiu exatamente com o dia em que aqueles aviões derrubaram o World Trade Center em Nova York. De propósito (e o que é sem querer em sua biografia?), Dylan se equivale a Chaplin na tentativa de resumir seu século de criação a partir de seu principal legado: a modernidade.
É ela quem arruma o mundo a partir das deformações demográficas criadas pela era industrial. É ela quem organiza o mundo a partir de uma estética prática, casual e confortável, e cria toda uma harmonia a partir do caos inicial. Como se pudesse voltar no tempo, Dylan recria a música contemporânea do meio do século como se fosse possível prever que, graças aos Beatles – que, uma década depois, absorveram a fragmentada música americana dos anos 40 e 50 como uma única manifestação cultural e a explodiu para o resto do planeta – , aquela seria a trilha sonora do século.
Não é exatamente rock’n’roll, pois na contemporaneidade de “Modern Times” (Columbia), o rock ainda não existe. Há apenas uma variedade de ritmos musicais, uns vindo da música country, outros do rhythm’n’blues, que fingem não se freqüentarem ou se parecerem, mas que, como veríamos mais tarde com os Beatles, e como Dylan nos apresenta em seu novo disco, é tudo farinha do mesmo saco.
Toda discografia de Dylan é uma grande tentativa de driblar o tempo, e de simultaneamente usar as próprias referências como molde para qualquer detalhe de seu futuro. Assim, começou calcado em Woody Guthrie, abraçou o rock, começou a cavocar suas origens musicais nas Basement Tapes, voltou-se para o country e daí para o gospel, o pop, o folk, o rhythm’n’blues e o rock de novo. Cercou a base de sua própria música e criou o cânone americano a partir de sua própria música – o próprio bardo americano.
Só que durante os anos 90, essa sua tentativa de contar o presente a partir de seu passado pessoal, esbarrou em alguns discos belos mas mal-resolvidos, como dois de versões de clássicos do início do século (“Good As I Been To You” e “World Gone Wrong”) e seu “MTV Unplugged”. Irregulares, eles pareciam indicar a velhice precoce de um geninho que parecia que nunca iria envelhecer.
Até que ele parou de regravar e voltou a compor, em 1997, ao iniciar este arco de três discos que é aparentemente encerra-se com “Modern Times”. De lá pra cá, retomou firme sua veia autobiógrafa e dispôs-se a contar tudo de novo: a caixa de CDs que trazia o melhor de sua pirataria (“Bootleg Series – Volumes 1-3”, de 1991) foi transformado em um projeto de resgate contínuo destas gravações não-oficiais (a série está no sétimo volume, hoje); Scorsese filmou sua primeira era de ouro (no longo e minucioso documentário “No Direction Home”) e escrevou o primeiro livro de sua autobiografia (“Crônicas – Volume 1”).
E agora, com “Modern Times”, volta a redesenhar seu século a partir de sua qualidade essencial. Para Dylan, modernidade não são publicitários baixando músicas do MySpace para remixar em comerciais de energéticos. “Moderno” foi o rádio, o arranha-céu, o chiclete, o cinema, o disco, o carro, o rock’n’roll, os Estados Unidos ou o táxi que rasga a capa. Hoje, o mundo supera cada um destes aspectos, reinventando o século vinte e um como negação do anterior. Para este, pede Dylan, arrume outro adjetivo, porque o “moderno” é seu.
Faixa a faixa
“Thunder on the Mountain”
Lento rock’n’roll clássico, que ecoa Chuck Berry, Carl Perkins e Jerry Lee Lewis. Dylan assume o piano e enfileira palavras como um pastor em plena missa. O eco da eletricidade seca preenche os vazios do instrumental minimalista, criando um som ao mesmo tempo oco e fantasmagórico, como os discos de Elvis Presley pela Sun Records. Essa sonoridade se repete por todo o álbum, por cortesia do produtor “Jack Frost”, um dos inúmeros pseudônimos do velho Bob.
“Spirit on the Water”
Jazzinho bluesy, a canção é uma baladinha de amor ponteada por uma guitarra econômica e precisa e percussão mínima. Dylan sussurra e anasala a voz ao mesmo tempo, quase querendo soar como um velho rádio.
“Rollin’ and Thumblin’”
Blues terminal, à moda de “If I Had Possession Over the Judgement Day” de Robert Johnson e de seus seguidores de Chicago, a faixa desce a ladeira quase bêbada, com cuidado para não desenvolver velocidade demais – e cair.
“When the Deal Goes Down”
Uma balada country, com slide guitar, arrastada e singela, que nem parece falar do tema que, junto com sexo, percorre o disco: a morte.
“Someday Baby”
Outro rock’n’roll revisitado, suas raízes country e rhythm’n’blues expostas sem vergonha, poderia ser lançada nos anos 40, 70 ou 90 que faria igualmente sentido.
“Working Man’s Blues #2”
A voz áspera faz a sombra pós-11 de setembro pesar na faixa mais política – não sem um toque de doçura – e mais folk do disco – não sem um toque de blues. É onde faz seus comentários mais específicos em todo “Modern Times” – critica o status quo americano, o sistema de classes, o capitalismo e outras invenções modernas. Dylan clássico.
“Beyond the Horizon”
“Além do horizonte, seja primavera ou verão”, canta quase saudoso, “o amor espera para sempre, para um e para todos”. Outra cândida balada folk, que canta o amor de forma quase juvenil.
“Nettie Moore”
Bumbo onipresente e solitário, ele atravessa a faixa marcando o tempo como se esperasse o Juízo Final. Sobre esta marcação, Bob murmura a canção mais árida do disco, único resquício de século dezenove no álbum.
“The Levee’s Gonna Break”
Rock’n’roll grave e mórbido, é um blues que ganha contornos urbanos e menos drásticos com a presença elétrica de duas guitarras insistentes. “Se continuar chovendo, o dique vai quebrar”, avisa, didático e apocalíptico, metafórico e literal.
“Ain’t Talkin’”
O clima que guitarras, piano e rabeca sintonizam no início da canção é tão parente da introdução de “Ballad of a Thin Man” quanto de Nick Cave e Tom Waits. quanto de Nick Cave e Tom Waits. Ritmo marcado por um pandeiro, a faixa cresce devagar, interminável, com o pesar de uma última faixa que parece um testamento.