Conversando sobre jornalismo e música praticados neste século, desta vez chamei Bento Araújo, o senhor Poeirazine, para contar sua trajetória e falar sobre este pequeno império pessoal que ele criou no começo do século, como um fanzine impresso. Entre 2003 e 2016, a publicação pagou as contas de Bento, que embarcou em seguida em um projeto mais ousado: um livro bilíngüe sobre os 100 discos psicodélicos mais importantes do país. Lindo Sonho Delirante chega à sua terceira edição e funciona como gancho para falarmos sobre jornalismo independente, como sustentar um negócio desta natureza, a comunidade que ele criou ao seu redor, turnês pela Europa, o Poeiracast e, claro, sobre sua paixão pela música.
Bati um papo com Bento Araújo, do Poeira Zine, sobre o novo volume de seu livro Lindo Sonho Delirante na minha coluna Tudo Tanto desta semana – e fica a dica como presente de Natal para quem gosta de música brasileira – leia aqui.
A psicodelia brasileira é um gênero bem específico da música lisérgica mundial que pouco a pouco ergue-se como um cânone de respeito. Se antes ela era referida basicamente pela obra dos Mutantes e da psicodelia naïf dos discos de Ronnie Von, hoje ela já responde por um volume de artistas e discos que, em sua maioria desconhecidos do grande público, formam a base de uma tradição sólida dentro da cultura brasileira. Se antes eram bicho grilos doidões tocando som alto, hoje respondem por uma linguagem e uma estética própria, bem definida e completamente brasileira.
Esta é a constatação ao ler o ótimo Lindo Sonho Delirante – 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975), livro bilíngue escrito pelo Bento Araujo, editor do já clássico Poeira Zine, bravo foco de resistência do jornalismo musical impresso no Brasil. Com o foco original em resumir a cronologia brasileira a cem discos, ele teve de optar por limitar-se ao período da psicodelia original, entre 1968 e 1975. Conversei com ele sobre o livro, que pode ser comprado no site do Poeira Zine com frete gratuito.
Antes de falar do livro, queria que você contasse um pouco sobre o Poeira Zine – como ele começou, como ele se sustenta, como tem crescido e, enfim, como ele te fez se aproximar do assunto do livro.
A Poeira Zine é um fanzine independente sobre música que eu edito há treze anos. Na verdade a pZ está hibernando atualmente, pois em abril deste ano eu interrompi – temporariamente – a sua produção bimestral para me dedicar 100% ao livro. A publicação se manteve principalmente graças aos fieis leitores e assinantes e aos anunciantes, que são lojas de discos. A publicação começou da necessidade de falar sobre bandas e artistas que ninguém falava no Brasil e, com os anos, foi natural todo aquele contingente de informação abrir caminhos para o livro.
Como surgiu a ideia de transformar esta fase em um livro?
Costumo dizer que esse livro na verdade começou por volta de 1999, quando eu trabalhava na loja de discos Nuvem Nove, e descobri os discos psicodélicos do Ronnie Von. Luiz Calanca havia dado a dica e ficamos malucos. Na mesma época saiu o Tecnicolor dos Mutantes e aquela mítica Bizz com eles na capa e um pouco da história da psicodelia nacional. Desde então fiquei com isso na cabeça e passei a estudar o assunto. De dois anos pra cá eu decidi colocar o livro em prática, pra valer. Aquela palestra que eu assisti com o Fernando Rosa, organizada por você, também me ajudou na fase final do livro, fechando uma linha de raciocínio que eu comento na introdução.
Quando você determinou o escopo do livro? A ideia sempre foi falar deste primeira fase apenas?
Não, o intuito original era abordar a cena psicodélica brasileira como um todo, dos primórdios até hoje. Obviamente o lance saiu do controle… Então precisei parar em 1975 para ter os 100 discos desta “primeira fase”.
A ideia do livro sempre foi viabiliza-lo via crowdfunding? Como foi sua experiência no processo?
Sim, isso foi prioridade. Durante a minha carreira, eu passei pela experiência de oferecer livros para algumas editoras, mas geralmente o que eles oferecem ao autor é quase uma ofensa. Então, desde sempre, o crowdfunding me pareceu a melhor opção. Como eu vinha de mais de uma década trabalhando totalmente independente com a pZ, a base estava criada. A experiência foi bem bacana, estudei bastante a ferramenta e foi prazeroso. Em dez dias a meta inicial foi batida e foi quase dobrada ao final da campanha. Fiquei bem feliz.
O livro é bilíngue porque há um interesse estrangeiro por essas informações ou você acha que é preciso divulgá-las ainda mais?
As duas coisas. A demanda é grande lá fora, até maior que no Brasil, mas acho que ainda há um enorme terreno a ser percorrido.
Você comenta na introdução do livro que foi na virada dos anos 90 para o século 21 que a psicodelia brasileira se reconheceu como cânone – e de lá pra cá é muito mais fácil identificar e reconhecer grupos e discos psicodélicos, mesmo que não necessariamente façam referência a esta primeira fase. Mas entre essas duas – a original e a atual – o que foi produzido de psicodelia no Brasil? Um volume 2 do livro, que abrange entre 1975 e 1996 (ano do Sétima Efervescência) conseguiria reunir 100 discos?
Certamente, acho que seria possível esse recorte em um segundo volume. No final da década de 70, e até mesmo pelos anos 80, existiu uma grande cena – ainda obscura – de folk psicodélico, com nomes como Quintal de Clorofila, etc. Isso sem contar outros grandes grupos psicodélicos, como o Violeta de Outono, etc.
Você está pensando em fazer um volume 2?
É uma ideia que me ocorre constantemente, mas no momento estou pensando apenas em surfar essa onda gerada pelo “volume 1”.
Quais são suas bandas psicodélicas brasileiras favoritas – de hoje e de sempre? E o grande disco psicodélico brasileiro, aquele que você apresenta tanto pro discófilo que desconhece essa cena quanto para o ouvinte iniciante em geral? E o seu disco psicodélico de cabeceira?
As favoritas são Mutantes, Liverpool, Ave Sangria, Som Nosso – mais chamado de prog, mas com temática totalmente lisérgica. Quanto ao disco, é o Paêbirú: o discófilo pira com a raridade e a história, o gringo fica maluco com a música e a temática, e o iniciante já tem a letra se vai segurar a barra da viagem, ou não. Já o meu disco psicodélico de cabeceira, eu fico entre Forever Changes, do Love, e Odessey and Oracle, dos Zombies.
O livro tem um potencial de virar algo audiovisual – uma série de vídeos sobre cada disco, um documentário e até uma ficção. Você já cogitou ou foi procurado para fazer isso?
Sim, são ideias que andam orbitando também. Algumas produtoras me procuraram e estamos estudando a melhor maneira de viabilizar algo do tipo. Tem também a parte das aulas, cursos, encontros e workshops, que eu curto bastante, como o que está rolando no Sesc. O mais bacana é contar essa história e trazer sempre um convidado que viveu aquilo tudo.