Milosevic Garage

Ondas rebeldes

“Rádio Guerrilha” narra a Guerra da Bósnia a partir das emissões de uma emissora alternativa

Era 1992 e o tempo fechava sobre a ex-Iugoslávia. Com seu comandante eleito, o ex-comunista Slobodan Milosevic a atiçar velhas rixas étnicas em nome do renascimento quase sagrado de uma Sérvia ancestral, um lento e doloroso Vietnã começava a ser desenhado no mapa do Leste Europeu, recém-ingresso no mundo capitalista após a falência do sistema soviético.

Na contramão dos países que antes formavam a Cortina de Ferro, o antigo império dos Balcãs entrava em uma ditadura arcaica, que fingia não interferir no nacionalismo extremo e no genocídio desenfreado, quando, na verdade, era seu principal incentivador. E sob aquele clima de paranóia, perseguição e proibição que acompanha qualquer guerra, uma pequena rádio jovem resistia bravamente à programação de mídia estatal e à agenda de Milosevic, intercalando relatos e depoimentos da linha de frente do campo de batalha com doses cavalares de Clash, Pixies, Public Enemy e Sonic Youth.

Versão chapa-branca
Até que, um dia, seus ouvintes se deparam com outra rádio, embora atuando sob o mesmo nome. Fora o pop barulhento vindo do exterior e o dedo na ferida de seu noticiário; em seu lugar, canções tradicionais e hinos militaristas se alternavam com versões chapa-branca para os acontecimentos no país.

A conclusão dos ouvintes foi inevitável: censuraram a rádio. E eles passaram a ligar para a emissora, quando eram atendidos por uma telefonista igualmente correta, que apenas dizia que a rádio era a mesma, mas havia mudado um pouco.

Depois de quase um dia inteiro de reclamações, o diretor da rádio, o jornalista Veran Matic, baixou a guarda e revelou que tudo não passava de uma brincadeira baseada nos rumores de que a rádio seria fechada.

Foco de resistência
Voltou a tocar, no dia seguinte, sua programação normal, incluindo os telefonemas dos ouvintes indignados com a mudança editorial de mentira. Só uma coisa mudou: seu slogan passou a ser “não confie em ninguém, nem na gente”.

Esse é um dos inúmeros “causos” reunidos no livro “Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado”, do inglês Matthew Collin, que conta a história da emissora B92 -depois, B2-92-, uma brincadeira de estudantes de comunicação que se tornou um dos principais focos de resistência política quando o horror da guerra assolou a velha Iugoslávia.

A rádio foi criada em 1989 como uma espécie de paródia às comemorações do aniversário do antigo líder comunista Tito, morto em 1980, para ter apenas duas semanas de existência. Mas a brincadeira deu gosto e logo a rádio continuaria com duas frentes que se bicavam: a do jornalismo independente e a da rádio rock. A fonte de atrito vinha do jornalismo da emissora, que achava que a rádio tinha uma programação musical extrema, que repelia ouvintes em potencial.

Mas prevaleceu a visão de Veran Matic, estudante de literatura que abandonou a vida acadêmica para dedicar-se ao jornalismo na prática. Ele acabou como uma das principais vozes do programa de rádio dos anos 80 “Ritam Scra”, que, ao lado do núcleo de jornalismo Index 202, tornou-se a base da B92.

Com pouco mais de 30 anos, boêmio e afeito ao amadorismo radiofônico por definição, Matic era um crítico de música respeitado que aos poucos se tornou um dos principais líderes de uma geração esmagada pela guerra -embora rejeitasse sempre esse papel.

Conglomerado de mídia
Cabeça da emissora, ele foi o responsável por mantê-la sempre à frente de sua época -tanto de seus detratores quanto de seus fãs- e por transformá-la num pequeno conglomerado de mídia alternativa, com editora, gravadora, emissora de TV e centro cultural.

Era um dos homens de mídia mais respeitados dos Bálcãs, a despeito das tentativas de interromper suas atividades. Ao acompanhar a saga da rádio, Collin, autor do ótimo “Altered State – The Story of Ecstasy Culture and Acid House” (Estado Alterado – A História da Cultura do Ecstasy e da Acid House), aproveita para contar a Guerra da Bósnia de uma forma simples e enxuta, ao mesmo tempo em que descreve a degradação e queda de Belgrado como amostra do que a guerra pode fazer a um país.

Mas tudo isso com um texto leve e bem-humorado -por vezes cínico- que equilibra tão bem as melhores qualidades da rádio: relatos pop disfarçados de jornalismo e jornalismo disfarçado de relato pop.

RÁDIO GUERRILHA – ROCK E RESISTÊNCIA EM BELGRADO
Autor: Matthew Collin
Tradução: Marcelo Orozco
Editora: Barracuda (tel. 0/xx/11/3237-3269)
Quanto: R$ 44 (336 págs.)

Essa matéria saiu na Folha de hoje, no Mais!. Vale ir atrás, o livrinho é istaile…