Escrevi no meu blog no UOL sobre o documentário Axé – Canto do Povo de um Lugar, que traça as origens e avalia a importância do pop feito na Bahia dos anos 80 para cá, que estreia neste fim de semana.
A força da axé music pode ser medida tanto pela forma como ela foi aceita como quanto ela foi rejeitada. O próprio rótulo que a batiza foi criado de forma irônica, desmerecendo pejorativamente a vontade daquela cena musical ser consumida fora do Brasil. Na pesquisa que fiz para o especial de 30 anos da axé music para o UOL há dois anos, as menções à axé music se dividiam em dois grandes grupos: reportagens criticando a ascensão popular daquela sonoridade como um entrave que a indústria fonográfica havia criado para a “boa música” – em sua grande maioria reclamações feitas por bandas e produtores de rock – e anúncios sobre a realização de inúmeros shows com todos os artistas que hoje formam o panteão da axé. Não havia uma tentativa de entender ou contextualizar aquela enorme transformação musical baiana e seu impacto na cultura brasileira ou entrevistas com seus protagonistas para que eles falassem sobre tudo aquilo.
O documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar, de Chico Kertész, que estreia neste fim de semana em circuito comercial, vem suprir esta lacuna. É um filme que mergulha na origem daquela cena musical, acompanha seu desenvolvimento e seu apogeu a partir de entrevistas com todos os nomes que fizeram sua história. Ouvimos as histórias sendo contadas em primeira mão por seus grandes ícones (Daniela Mercury, Carlinhos Brown, Luiz Caldas, Chiclete com Banana, Olodum, Ivete Sangalo), os coadjuvantes mais conhecidos (Araketu, Asa de Águia, Banda Mel, Claudia Leitte, Netinho, Sarajane), sempre enfatizando a influência dos blocos afro. Ainda há entrevistas com as vacas sagradas Gilberto Gil e Caetano Veloso, que entram menos como padrinhos musicais e mais como testemunha de alguns momentos desta história, e com produtores e empresários, que explicam uma questão abraçada pelos artistas e pelo próprio documentário: axé music não é um gênero musical, e sim uma forma de fazer música pop de sucesso em escala industrial a partir de Salvador.
Mas o Axé: Canto do Povo de um Lugar vai além da fórmula básica do documentário sobre música produzido no Brasil neste século, que enfileira entrevistas e as alterna com fotos e reproduções de manchetes e páginas de jornais e revistas. A pesquisa audiovisual do filme mergulha na gênese histórica da axé e volta com cenas em movimento dos primeiros trios elétricos, do embate dos blocos afro com os trios no início dos anos 80 e apresentações do início de carreira – e entrevistas – de quase todos os artistas mencionados. Em vários momentos, a cena descrita pelos entrevistados é exibida logo em seguida, provocando pequenas revelações visuais no decorrer do filme.
Este nem é seu grande mérito. A força do documentário persiste justamente em contextualizar uma movimentação cultural que começou a sacudir Salvador para além do carnaval na virada dos anos 70 para os 80 e como esta movimentação foi percebida por uma nova geração de artistas que entendeu que poderia conquistar o Brasil sem precisair da Bahia. Até então, se um artista quisesse atingir sucesso nacional, teria que se mudar para São Paulo ou, principalmente, para o Rio de Janeiro, que até os anos 80 era a capital cultural brasileira. A axé music inverte esse paradigma e obriga Rio e São Paulo a olharem para a capital baiana sempre em busca do próximo sucesso do verão.
Tanto que todos os protagonistas são categóricos ao afirmar que o pai da axé music não é um músico, um compositor ou um intérprete, e sim um produtor musical. Wesley Rangel, falecido no início do ano passado, foi quem viu a viabilidade comercial daquela música e transformou seu Estúdio WR no coração de mãe que reunia todos artistas, novatos e veteranos. Foi ele também quem estabeleceu a ponte entre Salvador e o Rio de Janeiro, tornando possível a explosão nacional de Luiz Caldas, o Elvis Presley daquele rock’n’roll baiano.
O filme também é didático ao explicar as diferenças entre os gêneros musicais de cada artista, falando em samba-reggae, fricote, galope, pagode. Na matriz de todos eles está o chamado “samba duro”, gênero musical característico da região do recôncavo baiano, menos malemolente que o samba carioca, mais pronunciado e empolgante. Alguns dos grandes momentos do documentário estão quando pioneiro Gerônimo (autor de “Eu Sou Negão”) e o maestro Letieres Leite fazem a genealogia musical daquela cena – ou quando vemos a história da criação do repique de percussão característico do samba-reggae. E, claro, a clássica passagem sobre como Daniela Mercury parou São Paulo no histórico show sob o vão do Masp, na Avenida Paulista, em 1992 – e com imagens deste show.
A presença dos artistas – e seu aprofundamento pessoal para além dos personagens que eles criaram no palco – é outra grande qualidade do documentário. Da sempre inspiradora Daniela Mercury ao hilário Gerônimo, passando pelo senso comercial do Cumpadi Washington e de Beto Jamaica e por depoimentos inspirados de heróis locais desconhecidos no resto do país como Vovô do Ilê, Márcio Vitor, Lazinho, Tatau e Tonho Matéria, a forma como as entrevistas são conduzidas permite entender melhor a manha baiana, um jeitinho específico que está nas entrelinhas dos hits e dos refrões.
Axé só peca por sua extensão, mas isso não é propriamente um defeito. Ao querer ser o filme definitivo sobre esta cena, ele debruça-se sobre a história de cada bloco, dando atenção a atrações menores do ponto de vista histórico como a Banda Mel, Banda Beijo e o Harmonia do Samba. Num dado momento estamos assistindo Ricardo Chaves (do hit “É o Bicho”) contar sobre sua trajetória ou ouvindo falar sobre a importância atual de Saulo Fernandes (ex-Banda Eva), o que destoa da história principal, mas não chega a incomodar.
No fim das contas, Axé: Canto do Povo de um Lugar é uma aula de história mais do que um filme sobre uma cena musical. Insiste em buscar a nascente e explicar como a música pop produzida em Salvador entre os anos 80 e 90 dominou o país e chamou atenção do resto do mundo, levando o Olodum ao Central Park em Nova York e Michael Jackson ao Pelourinho. É um filme obrigatório para quem gosta de música brasileira, mesmo aos que repudiam a axé.
Ivete Sangalo com Cure, Ivete Sangalo com Oasis: estas são as duas novas heresias mominas que o produtor Raphael Bertazi lança antes do carnaval, dando continuidade ao infame Axé Bahindie, que já cruzou Strokes e http://trabalhosujo.com.br/axe-bahindie”>Smiths com É o Tchan. Desta vez ele começou pesado, misturando “Poeira” com “Just Like Heaven”.
Mas a melhor (!) mesmo foi a fusão de “Wonderwall” com gritos aleatórios da Ivete.
É carnaval, tá liberado!
Ainda dentro do especial que fiz pro UOL sobre os 30 anos de axé music, entrevistei Daniela Mercury por mais de uma hora, uma verdadeira aula sobre música baiana, em vídeo e texto.
“Achavam que era arrogante”, lembra Daniela Mercury sobre “Canto da Cidade”
“Rapaz, eu sou uma enciclopédia!”, adianta Daniela Mercury ao receber o UOL em sua casa, em um condomínio de luxo no bairro do Piatã, em Salvador, para falar sobre os 30 anos do axé music. E, pelo decorrer da entrevista, a constatação se confirma – e em velocidade frenética.
Em pouco mais de uma hora de conversa, a cantora-símbolo do gênero trintão revive os carnavais do início de sua carreira, conta como foi que assistiu ao surgimento da axé music nos anos 80 e como assumiu o trono de rainha do axé na década seguinte, sempre despejando causos, situações e impressões com o mesmo vigor e disposição que se movimenta nos palcos. “São mais de 30 anos, mais de 2.500 apresentações ao longo desses anos no palco, não é pouca coisa. 30 e poucos anos de carnaval”, gaba-se.
Confira a seguir os principais trechos da conversa:
Antes do axé
“Na época só existia o trio elétrico, ainda sem corda, não existia essa estrutura. O axé nasce junto com todos esses blocos. Antes era uma coisa de ir pra rua com os amigos. Eu inclusive saí no primeiro ano no [bloco] Eva como foliã. Todos meus amigos eram do Eva. Outros saíam com [o bloco] Internacionais, que eu também puxei em alguns anos. Outros saíam com o Pinel. O Ricardo Chaves e o Durval [Lélys, do Asa de Águia] eram da banda Pinel. Era todo mundo menino, de escola, começando a fazer música e os amigos chamavam pra gente cantar em cima dos trios. Eu cantei no primeiro trio em 81, quando Toni Duarte, irmão caçula de Gerônimo [compositor do hit do axé “Eu Sou Negão”], me viu cantando no bar e estava precisando de uma cantora. Eu nem sabia quem era Gerônimo… Nem profissional era, e lá fui pra cima do trio, entendeu? Pintava assim. Aí depois, aos pouquinhos, foi crescendo…”
O primeiro trio elétrico
“Na época quem cantava era a guitarra: “Vassourinha”, “Pombo Correio”, os galopes de São João de Amelinha e uns frevos que já eram mais conhecidos nacionalmente, como “Festa no Interior”, “O Balancê”. Basicamente, isso era meu primeiro repertório com 12 músicas, em 1982, num trio pequenininho. A tecnologia era muito ruim. O trio não tinha retorno, não tinha som, era uma coisa bem armengada, como a gente diz aqui na Bahia. Não existia teclado. O trio era basicamente uma guitarra baiana, uma guitarra elétrica, um baixo, uma bateria e às vezes um surdo. Até hoje não sei pra que tinha aquele surdo, porque naquela época não tinha samba-reggae e a música dos blocos afros não era muito tocada. E tudo foi começando a melhorar, a gente foi construindo o gênero, a música. Nos trios grandes só cantavam homens. Eu sou a primeira artista a puxar um trio elétrico de bloco importante da cidade.”
A miscelânea
“Somos muito urbanos. Salvador é a cidade do Cinema Novo, a cidade tropicalista, da bossa nova, de Raul Seixas. Então é óbvio que estava tudo ali, na cabeça, todas as influências ao mesmo tempo. O próprio rock crescia junto com o axé. Luiz Caldas fez sucesso ao mesmo tempo em que Lulu Santos, Legião Urbana, Paralamas… Essas misturas, fusões, estavam acontecendo e a gente trazia pra cima do trio, porque não tinha ainda um repertório grande. Foi essa miscelânea que virou o axé, que tem influência do galope de São João, que o Chiclete com Banana toma pra si como a base do seu trabalho. O Asa de Águia é um pouco de Supertramp, com aquelas coisas dos anos 80 junto com um rock mais de surfista. O Luiz Caldas, um super músico que veio do interior com a bagagem de frevo, de música internacional… Tudo que aparecia de interessante a gente ia misturando no caldo.”
“O reggae apareceu nos anos 80, foi pro caldo. O rock – eu canto tudo de rock. Armandinho é cantor de heavy metal, cara! Ele com a guitarra baiana já é heavy metal. O frevo pernambucano vem pra cá como era, com orquestra, com banda, sopro, como a rumba, o merengue, como a salsa, com várias influências daquela época e até antes, como o maxixe dos anos 20, como as marchinhas de Chiquinha Gonzaga, como o samba de Carmem Miranda, Assis Valente, Dorival Caymmi, Batatinha e Novos Baianos e Caetano e Gil e todo mundo. Vai ficando essa salada musical, cada um vai trazendo influências.”
O começo da axé music
“Aí nasce “Axé pra Lua”, do Luiz Caldas, acho que em 84, porque em 85 ele já estourava com o “Fricote”, e ele faz a síntese dele de um novo tipo de música que estava surgindo, que a gente chamava de ti-ti-ti, deboche, fricote. Eu estava preparando meu primeiro disco com uma banda, fiz minha própria banda pra começar uma pesquisa musical que me levasse a algum lugar novo da MPB. Nessa época eu fui convidada pra ser solista de uma gravadora da cidade chamada Novo Som, da WR, de Wesley Rangel, que até hoje é o estúdio mais importante da cidade. Resolvi fazer um grupo banda depois de assinar o primeiro contrato solo com ele. Disse: ‘Quero fazer um grupo’. E ele ‘Mas a gente não quer um grupo’. E eu ‘Então rasgue o contrato’.
Depois de “Fricote”
“As gravadoras começaram a vir à Bahia pra procurar novos intérpretes e a CBS, que depois virou Sony Music, veio tentar conversar comigo, porque eu já era da Banda Eva e tinha um destaque. Eles queriam que eu fizesse solo e eu disse que eles iam dizer o que eu tinha que cantar, não ia dar certo. Disse não pra CBS. Disse não pra Warner. Só a Eldorado topou meu plano, então lancei meu primeiro disco de banda [“Companhia Clic”] por uma gravadora de jazz de São Paulo, junto com Zelia Duncan e Sepultura. Então começa minha vida de gravações. Mas esse período na Banda Eva, fazendo barzinho, cantando, dançando, fazendo universidade de dança, dando aulas de dança, tendo filhos – que eu tive filhos em 85 e 86, muito novinha – tudo isso me fez tomar uma responsabilidade muito rapidamente, trabalhar muito desde menina e me ver muito seriamente no palco.”
Olodum, “Faraó” e samba-reggae
“Aí chega 87 e acontece um fenômeno extraordinário. A gente estava descendo pelo [Largo do] São Bento, eu vinha com a Banda Eva, no Carnaval de 87, quando um amigo cantor chamado Marcio Muller me perguntou, na hora em que a gente chegou na praça Castro Alves: ‘Daniela, você já ouviu ‘Faraó’?’ E eu disse ‘Não, meu filho’. ‘Pois é, o povo só está cantando na rua, espera aí que você vai ver’. E cantou: ‘E eu falei Faraó-ó-ó’, só com a voz. E o o povo todo, solenemente, respondeu ‘Êêêêê, Faraó’. Eu falei ‘O que é isso?’. E ele explicou que era um tal Bloco Olodum, um bloco novo, afro, da turma lá do Pelourinho. Me arrepio só de lembrar.”
“Naquela época era a micareta de Feira de Santana, a mais antiga do Brasil, com 70 anos, que legitimava as músicas de sucesso do Carnaval: não tinha prêmio, não tinha nada disso. não era um Carnaval midiático, era o carnaval da cidade. E em Feira “Faraó” foi tocada por todas as bandas – eu nunca vi, 20 trios elétricos, todo mundo cantava a mesma música ao mesmo tempo. E ‘Faraó’ é um pergaminho, né? ‘Deus divindade infinita do universo…’,, ele abriu a enciclopédia e fez uma canção, uma coisa completamente pós-moderna, inusitada, mas todo mundo decorou.”
“E “Faraó” faz um fenômeno extraordinário: faz os pretos entrarem pela porta da frente dos clubes ricos da cidade, faz o Pelourinho se aproximar da Barra, e faz um outro fenômeno: a percussão subir para o trio elétrico. Antes havia música de branco e música de preto. Música de bloco afro e música de trio elétrico. E especialmente a partir de 87 essa divisão começa a deixar de existir.”
Que música é essa?
“Nisso tudo o gênero não tinha nome. Um jornalista daqui deu esse nome [axé music] pra Luiz (Caldas), tentando desmerecer o trabalho dele, que era era todo alternativo, a própria antropofagia, descalço, o próprio índio, maravilhoso, extraordinário, mas o povo metido a besta aqui não entendia e chamou de axé music.”
A deixa do samba-reggae
“Foi o que me interessou, porque eu sou do samba-jazz, sou cria de Elis, de João Bosco, Tom Jobim, Vinicius de Morais com Baden Powell, e eu não queria ser intérprete de Carnaval. Eu ainda não tinha me encontrado ali, não queria fazer uma carreira. Eu estava experimentando, aprendendo a cantar, a lidar com o público. Até que surgiu o samba-reggae, que no começo virou moda, todo mundo fazia. E eu resolvi esperar. Porque moda na Bahia passa em dois anos, todo mundo faz, depois todo mundo para de fazer. Dito e feito. Veio a primeira leva de samba-reggae, seguiu o sucesso de Luiz Caldas e Sarajane e foi um fenômeno enorme, uma explosão rápida no Brasil. Mas aí começou a lambada, outro fenômeno, internacional, e esqueceram o samba-reggae. Pensei ‘largaram pra mim’.”
“Saí da banda que eu mesma fiz [Companhia Clic], que tinha ficado muito machista, e fui procurar minha carreira solo com o samba-reggae, testando o repertório em shows. Chamei o Olodum ao estúdio pra gravar o grande sucesso do Muzenza, que já era famosa antes de eu gravar: “Swing da Cor”, (cantarola) ‘Não, não me abandone…”, que é a música que me coloca no mundo. Gravei o meu primeiro disco solo, “Swing da Cor”, com a gravadora Eldorado, que era para ser o meu terceiro disco com a banda. Mas eu saí da banda, em carreira solo e lá fui eu pra São Paulo…”
Trio elétrico anfiteatro
‘E o trio elétrico foi esse anfiteatro, esse espaço extraordinário e criativo e que já nos obrigou a ser profissionais Porque você não pode dominar a multidão sem muita coragem. Outra coisa que o trio elétrico me deu: uma enorme diversidade musical, porque eu tive que aprender a cantar muitas coisas, com banda, reggae, rock, xote, xaxado, baião, tudo que eu pudesse não ter feito em barzinho, que era mais voz e violão, eu acabei fazendo no trio. ”
O mais belo dos belos
“Eu, como bailarina, dançava afro desde pequenininha e conhecia todas as danças de santo, cantava em iorubá e me tornei a branquinha mais neguinha da Bahia, porque em 89 fui cantar no Ilê. O presidente da Eldorado disse ‘Venha cá ver o lançamento do disco do Ilê’, em 89. Lá fui eu pro Curuzu pela primeira vez. Não era fácil entrar lá sem ser convidada. Ele pediu pra que eu cantasse com o Ilê. E o Vovô do Ilê: ‘Será que ela faz? Nunca vi branca nenhuma fazer isso. Olhe, que você vai botar ela nessa confusão… Mas se você está pedindo eu deixo.’ E eu também não sabia se ia fazer aquilo direito. Cheguei lá, cantei com o Ilê. Aí Vovô, presidente do Ilê, chegou no dia seguinte no escritório que a gente tinha e disse ‘a negrada gostou da branquinha, a gente queria que ela cantasse na Festa da Beleza Negra’. Aí lá fui eu cantar na Festa da Beleza Negra e a negrada lá ficou me olhando: ‘Que é essa branca aí? Quem é essa mulher?’ Mas eu fui, cantei em iorubá, comecei a dançar afro e pedi ‘Sou bailarina, cantem comigo, por favor’. E eles abriram o coração. Sou a única branca que cantou com o Ilê nesses 40 anos. Eu sou da família.”
Parou a Paulista
“Lembro que chegava nas rádios em São Paulo pedindo: ‘Por favor, toque isso aqui’ e eles diziam ‘mas como é que eu vou botar essa batucada toda aqui? Que maluquice! Aqui só toca música estrangeira aqui, só toca balada, só música sertaneja, de amor, música romântica, Roberto Carlos… Não tem a menor condição tocar isso, ô menina’ . E continuava fazendo show pequeno. Aí a Secretaria de Cultura disse que tinha shows pra artista iniciante. Lá fui eu, né? Chego no outro dia, meio-dia, morrendo de sono, perguntando por que que eu resolvi fazer show aqui nesse lugar, debaixo do Museu de Arte de São Paulo.. Quando eu chego lá, já tinham umas 3.000 pessoas sentadas. E eu pensei ‘Puxa, o público daqui é muito educado, as pessoas vão ver artistas novos…’ E quando eu começo a cantar, as pessoas começam a cantar comigo. Eu não tô entendendo o que que tá acontecendo, aquele povo no meio-dia… Eu pensei que o povo ia passar com o sanduíche na boca, me dar um tchauzinho… Mas nada, o povo dançando, se acabando. Foi o máximo!”
“Quando eu vi a foto no outro dia… Tava assim, arrodeado, como diz o baiano, em volta do Masp. Uma multidão… . Tinha muito mais do que 20 mil pessoas. A gente parou a Paulista num segundo, o Masp já estava sacudindo, as pessoas desciam dos ônibus dançando, um pandemônio, todo mundo numa felicidade. Aí eu fiquei toda empolgada, mas alguém da Secretaria de Cultura me tirou pelo braço e me disse ‘Para, mocinha, você está sacudindo os Portinari. As Bailarinas de Degas estão todas dançando. Para, para tudo’. Esse boom me dá capas de jornal e eu viro ‘a baiana que parou São Paulo’.”
Autonomia
“Depois disso veio todo mundo – e foi ótimo. Porque depois desse poder, eu pude fazer contratos ótimos. Nunca fiquei refém de gravadora, sempre decidi o que fazer, sempre tive autonomia. Foi muito bom não ter assinado antes. Tive minha independência e minha liberdade mantidas. E isso foi muito importante pra eu ter conseguido fazer o que eu fiz. Como colocar o Olodum cantando e tocando pela primeira vez em estúdio pra gravar ‘Swing da Cor’ no estúdio. E consigo fincar bandeira na música popular brasileira e determinar que existia um gênero a partir dali. E aí o jornal ‘O Globo’ diz ‘a rainha do axé’. Porque perguntavam ‘O que é que você faz?’. Eu dizia “Eu faço música percussiva brasileira”, porque eu não queria me rotular de gênero algum. ‘Eu faço MPB percussiva.’ Até hoje estou repetindo isso. Mas fiquei muito honrada em ser a rainha do axé e ter sido precursora de um novo gênero.”
“O Canto da Cidade”
“Lembro que a gravadora não queria sair com ‘O Canto da Cidade’. A Sony odiou o disco. Achava que ‘O Canto da Cidade’ era uma música que era arrogante. E eu dizia que não era eu que estava dizendo aquilo, era o povo mesmo, que cantava ‘a cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu’. Eu era porta-voz desse discurso afirmativo da negritude. Eles não entendiam nada. Eu me lembro que Liminha, que é um super produtor maravilhoso, foi dos Mutantes, fez vários discos com Gil e Caetano etc., quando foi gravar ‘O Canto da Cidade’, ele disse: ‘Não tô entendendo isso aqui’. Eu me lembro de Herbert Vianna me perguntando ‘Que ritmo é esse?’ Aquele bumbo reto. Os jornalistas me perguntavam se eu sentia preconceito e eu respondia que a pessoa não sabe nem o conceito do que eu tô fazendo como é que vai ter preconceito?”
Curadora de axé
“Depois do Masp eu fiz o Canecão, o Olympia e aquele especial na Globo que foi um presente de Roberto Talma, com o show na Apoteose. Eu pensei que quem ia fazer o show eram os Rolling Stones. Vi aquela multidão e perguntei quem é que ia fazer o show comigo. E no Rio foi a mesma coisa do Masp, só que no Rio as pessoas compraram ingressos. E eles cantavam todas as músicas, algumas minhas, outras músicas de outras bandas de Salvador. Eu acabei me tornando uma catalisadora do gênero… Uma curadora, né? Porque eu consegui trazer comigo o Ilê, o Olodum, Araketu, Cheiro de Amor, Banda Mel, Netinho, Asa, Chiclete. Não importava muito quem tinha chegado antes, quem chegado depois, somos a mesma geração.”
Pelo Brasil
“Sabe o que é chegar no Rio Grande do Sul com aquelas negras cantando “não me pegue não”, “vou atrás do Ilê”? E o povo, na Festa do Morango, olhando pra minha cara, parecia que eu estava dentro na Itália. Acho que nem na Itália a estranheza foi tão grande. O Brasil é espetacular. Como foi bonito quebrar essas fronteiras sem nem saber. Porque acho que a gente nem sabia que podia existir… Limites culturais, né? E aí o povo do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Santa Catarina, encantados todos. Todas aquelas feiras, do Doce, a Feira do Morango, interior de São Paulo, feiras de gado e eu cantando o samba-reggae do Olodum.”
Pelo mundo
“Depois do Masp eu tive coragem de ir pro mundo todo com meu próprio dinheiro, Eu queria ter a mesma experiência de ver a carreira florescendo do jeito que floresceu no Masp. E assim aconteceu em Portugal, na França, na Espanha, na Argentina. Uma loucura no Uruguai, no Paraguai, México, Estados Unidos, turnês maravilhosas. E eu lá sabia que a gente podia fazer isso? Fazer três datas em Montreux, sold out. E as pessoas queriam me ver e saber quem era aquela menina do Olodum, do Ilê, aquela menina baiana.”
Axé Brasil
“O axé é uma bandeira da música brasileira pro Brasil. O axé chega quando o Brasil deseja a si mesmo. E já não cabia mais ‘caminhando e cantando e seguindo a canção’ porque ninguém aguentava mais. Era ‘Brasil nunca mais’ mesmo. E aí acontece essa fatalidade do primeiro presidente eleito a gente tem que ir pra rua tirar o cara! Quer dizer, era uma contradição da democracia que acabara de chegar no Brasil. Mas a força pela liberdade era tão grande que a gente tinha coragem também de tirar já o primeiro presidente. Coincidentemente – ou não, porque eu acho que o mundo conspira e as coisas acabam se juntando – era eu quem estava ali, uma música brasileiríssima.”
O axé, o samba e o pagode
“Beth Carvalho me abraçou e disse ‘Você devolveu o samba aos pés do Brasil’. As minhas lágrimas desciam dos olhos, sabe por quê? Porque minhas colegas já não sabiam sambar. Minhas amigas que eram bailarinas não sabiam sambar! E eu adorava sambar desde pequenininha. Porque eu amo o samba, mas essas coisas a gente não força, né? Depois de tantos anos, vários sambas diferentes, logo em seguida o É o Tchan ocupa tudo com volúpia, com aquela coisa de muita televisão que descontextualiza a origem do Gera Samba, que é o próprio samba de roda, né? É mais sem vergonha como é a música folclórica da gente aqui, que pede pra botar a mão na cabeça e depois botar a mão no lê-lê-lê… Quem mandou o povo da África trazer esse lado safado da gente? Me lembro que alguns jornalistas perguntavam: “Você gosta do Tchan?” e eu dizia ‘Lógico que gosto. Eu fui criada com isso. Não me choca’. Cheguei em Angola e vi uma menina na praia e disse assim “Ô, sambe aí, cante uma música da cidade, daqui de Luanda”. E ela começou a fazer um samba e quando eu vi era o samba do É o Tchan. Quem veio de lá, quem veio de cá, quem é que influencia quem?”
O axé music e a cultura brasileira
“Eu vou fazer 50 anos, estourei no Brasil com 27, e estou cheia de gás, de assunto, de disco novo pra fazer. Tudo é culpa desse povo africanizado, abrasileirado, aportuguesado, que mistura tantas coisas, porque é o povo da comunicação, da beira do mar, que é o povo globalizado, desde o começo. Afinal de contas, os portugueses chegaram aqui e já começaram a globalização. A chita vem pra cá, a gente se enfeita cheio de flor que veio da Índia!”
“Eu digo que o axé é o sonho antropofágico de Oswald de Andrade, é o Abaporu de Tarsila, é o sonho de Caetano, é a alegria que Caetano queria na ditadura e não tinha. Então, realmente, é alegria, uma alegria que a gente nem tem, é uma alegria que a gente inventa, isso é muito legal. Mas a gente precisa inventá-la porque somos povos urbanos, que temos consciência da morte, do mundo. É difícil viver pra todos. É uma cidade onde temos poder aquisitivo baixo, onde temos muitas lutas de direitos humanos, mas a música nos salva, nos reforça, nos reitera, nos representa, nos aproxima, nos liberta.”
“E o Brasil, mais do que nunca, precisa de esperança pra se reinventar, pra “reacreditar” em si – se é que existe essa palavra – essa nação tupi-guarani, esse povo tropical solar, que não é igual a lugar nenhum nem precisa ser. Os moçambicanos disseram que quando viram os jogadores negros brasileiros jogar diziam que eram seus redentores. E lá se vão 30 anos que nos redimem! O axé arrebentou, ele traz pro Brasil uma coisa que ele havia perdido mesmo e diz assim ‘Esse lugar é teu, não é Mama África, não, é Mama Brasil, com a África toda dentro, com tudo que tá dentro, todos sons africanos’. Que coisa mais linda a gente ser negro! Que coisa mais linda a gente ter nossa fisionomia! Que lindo o cabelo duro! A gente tem que parar de querer ser europeu, querer ser norte-americano. A gente querer fazer desse lugar um país. Pra brasileiros. Pra que todo mundo queira vir. Já somos uma nação rica, só precisamos nos tratar como tal.”
Outra entrevista que fiz para o especial de 30 anos da axé music pro UOL foi com o dono e fundador do Estúdio WR, Wesley Rangel, que gravou todo mundo daquela cena, de Luiz Caldas a É o Tchan, passando por Daniela Mercury, Banda Beijo, Timbalada, Olodum, Asa de Águia, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, entre outros:
E a última etapa do especial de 30 anos da axé music que fiz pro UOL foi uma reportagem sobre uma crise – financeira? artística? – que o gênero atravessa há um bom tempo: confirmada por observadores da cena e rejeitada por seus protagonistas:
Axé chega aos 30 anos em crise, mas protagonistas rebatem: “Que crise?”
O axé music chega aos 30 anos encarando uma crise artística e econômica. Ainda que negada por seus principais protagonistas, a situação se manifesta no esvaziamento dos trios -as multidões não vão mais a Salvador como iam durante os anos 90- e na percepção dos próprios produtores musicais de que a cidade não tem emplacado artistas com o mesmo impacto que antes.
A crise nem é assunto desta década e já era discutida há 15 anos, quando o jornal baiano “A Tarde” dedicou uma série de reportagens e artigos à crise do gênero entre abril e outubro do ano 2000. “Desde que inventaram o rótulo axé music para a nova música afro-baiana, a imprensa do Sul anuncia o ‘início do fim’ desse estilo de cantar e tocar”, escreveu o maestro Fred Dantas no primeiro texto dessa série.
“Eu escuto [falar em crise no axé] desde 93, porque achavam que eu era cantora de um verão só”, ironiza Daniela Mercury, em entrevista ao UOL em sua casa, em Salvador. “Crise? Que crise?”, perguntou-se Ivete Sangalo a um programa de TV local durante o Festival de Verão de Salvador, que aconteceu em janeiro. “Eu nunca acreditei em crise no axé music”, continua Bell Marques, ex-Chiclete com Banana. “Eu posso não ser o parâmetro, mas, desde 1986 para cá, a minha média de é de 130 shows por ano. Então eu não sei onde está essa crise.”
Com ou sem crise, o fato é que o Carnaval de Salvador de 2015 registra queda de 15% nas vendas dos abadás em relação ao mesmo período do ano anterior, o que um dos fundadores da Central do Carnaval da cidade afirmou no fim de 2014 ser reflexo da Copa e das eleições de 2014. Além disso, há uma invasão de trios elétricos liderados por não-baianos, especificamente de artistas do novo sertanejo, o gênero musical mais bem-sucedido hoje no Brasil.
Na tentativa de reanimar o gênero às vésperas de sua principal data, a própria Prefeitura de Salvador organizou um novo “We Are the World” de Carnaval para celebrar as três décadas do axé, por meio do clipe da música “Raiz de Todo Bem”, que reúne a nata do axé music, de Carlinhos Brown a Ivete Sangalo, passando por Cumpadi Washington, Daniela Mercury e Saulo Fernandes (mas sem Claudia Leitte e Bell Marques).
“A gente não sabe o que vai acontecer com essa manipulação comercial do Carnaval”, lamenta Armandinho, filho de Dodô, um dos criadores do primeiro trio elétrico. “O sucesso do Carnaval fica dependente do sucesso do momento, que hoje não é mais baiano. Os blocos afro ficam cada vez mais escondidos porque não são sucesso de mídia. Os verdadeiros artistas de Carnaval [ficam de] fora…”
Mercado predatório
Beto Barreto, guitarrista da banda BaianaSystem, uma das principais novidades da música baiana desta década, que resgata a guitarra baiana em novo contexto e que começou tocando na Timbalada, critica um comercial da Prefeitura de Salvador lançado nos últimos dias de 2014. “”Ele fala que ‘há 30 anos, a Bahia encontrou seu ritmo’, como se antes disso não tivesse nada, nem Caymmi, nem João Gilberto, nem Gil…”.
E continua: “Esse mercado criado ao redor da música baiana foi feito de forma muito predatória e não respeitava as nuances entre cada uma das diferentes tradições do Carnaval daqui. Ele tem méritos, claro: criou um mercado forte, que vende discos, mas, quando o mercado de discos quebra, isso cai em cascata, provando que não se sustenta artisticamente. Acho que tudo que tem essa conotação mais pop acaba entrando nessa máquina, que deixa tudo igual. Mas o próprio modelo do Carnaval contribuiu muito negativamente, e todo o mundo que produz música na Bahia que não é desse tipo sente esse preconceito que acabou se criando com qualquer música que é produzida aqui.”
A antropóloga Goli Guerreiro, autora do livro “A Trama dos Tambores – A Música Afro-Pop de Salvador” (Editora 34), acha que essa crise é sazonal, porque o axé music já se estabeleceu no mercado. “Quando eu lancei meu livro no ano 2000, eu já falava da crise violentíssima do axé music. É uma música, é uma marca da cidade e que passa por momentos bons e ruins, mas fico muito surpresa com o interesse que isso causa”, explica.
“Há tempos há uma crise no axé music”, crava o jornalista e radialista Luciano Mattos, produtor do programa Radioca, dedicado à música baiana. “Agora ela é sentida por uma questão econômica. Mas a crise artística e criativa existe faz muito tempo, pois não surge nada de relevante, e era inevitável ela bater com a crise econômica. Só que os artistas e produtores ou não percebiam ou não queriam perceber, achavam que daria pra continuar ganhando dinheiro como sempre se ganhou.”
Wesley Rangel, produtor que gravou todos os grandes nomes do axé music em seu estúdio WR em Salvador, concorda. “Os grandes produtores de shows da Bahia sempre frequentaram a noite para saber o que tinha de novidade. E apoiavam artistas que já tinham respaldo nos seus guetos. O verdadeiro artista, que não depende da mídia. Aconteceu que alguns produtores começaram a se arvorar de produtor musical, e os novos artistas que eles encontraram não tiveram a mesma força dos anteriores, porque artista é um diamante bruto e precisa ser lapidado. Isso está começando a ser repensado, não porque eles entenderam isso, mas porque sentiram isso economicamente”, conta Beto, do BaianaSystem.
“O problema é a repetição. Como você tem um repertório de 30 anos, é muito fácil pescar aquela música esquecida que foi um sucesso num determinado ano, mas isso é muito intuitivo. Essa profissionalização que o axé music conseguiu do ponto de vista do mercado não alcançou o processo da criação musical”, continua Goli. “E aí a gente fica nesse marasmo, nessa repetição, e é isso mesmo. O que mais me incomoda no axé music é essa repetição. O Carnaval da Barra virou um negócio chatíssimo: uma sequência de shows repetitivos com o mesmo repertório, as cantoras usando as mesmas roupas, às vezes dos mesmos estilistas…”
“O axé veio de uma coisa espontânea e popular e deixou de ser. Eles deixaram de tocar para o povão. Tinha show para 30 mil pessoas em Salvador há 15 anos. Há muito tempo não tem mais isso, tirando o Festival de Verão. E começaram a tocar, por exemplo, em Praia do Forte, cobrando ingresso a R$ 200 para 2.000 pessoas, numa coisa meio VIP. E abriu espaço para o pagode e o arrocha crescerem”, analisa Mattos.
O pagode, que deu a primeira sobrevida ao gênero no meio dos anos 90, com a geração surgida após o hit “Segura o Tchan”, seguiu sendo fonte dos hits do Carnaval baiano desde então (vide os sucessos “Vem Neném”, “Rebolation” e “Lepo Lepo”), mas, em paralelo, veio o arrocha, um gênero de música mais afetado e latinizado, de onde surge Pablo, agora contratado da gravadora Som Livre, que pode ser o grande sucesso do Carnaval baiano em 2015.
Encenação midiática
Mas enquanto se discute a crise no axé, Goli Guerreiro aponta para o Furdunço, uma iniciativa da prefeitura que, desde o Carnaval de 2014, reúne pequenos trios elétricos na região do Campo Grande e mistura gêneros musicais e diferentes tradições num mesmo espaço democrático, sem a corda que separa os foliões com abadás do público “pipoca”, que não paga para se divertir. “O Furdunço pode, sim, renovar o Carnaval. As pessoas se montam para acompanhar esse carnaval, com máscaras… Há um movimento paralelo à axé music que é muito mais potente e não está tendo a atenção necessária porque o axé music é uma encenação midiática.”
“Nenhum gênero musical vai mal. A crise pode ser de algum artista, de algum setor. O rock não está em crise porque Axl Rose vai mal. A música é sempre música”, pondera Luiz Caldas. E mesmo com essa crise, Armandinho é otimista: “A Bahia sempre dá um jeito.”
No final do ano passado, eu já vinha conversando com o Diego pra começar a colaborar com o UOL quando, na véspera da véspera do Natal, ele me ligou me convocando para uma missão: fazer uma matéria especial sobre os 30 anos da axé music. O desafio foi mais logístico do que propriamente conceitual – tinha que marcar entrevistas em vídeo em pouco tempo com grandes nomes da música baiana no mês que antecede o carnaval (com o agravante de ter as duas semanas entre o natal e o ano novo no meio). Pessoalmente, acompanhei a evolução do gênero bem de perto, pois Brasília – onde nasci – foi um dos primeiros lugares para onde Salvador exportava aquelas bandas e era inevitável saber todas as músicas e bandas dessa época. A parte logística foi resolvida com o auxílio da querida Carol Morena, que humilhou na produção, mais do que profissa.
A partir daí parti para uma imersão em um rótulo que descreve um gênero e um modus operandi e tenta se confundir com a magia do carnaval baiano, que mexeu com a indústria do entretenimento brasileiro e revelou a primeira safra de artistas que não eram do Rio ou de São Paulo e que não precisaram se mudar para estas cidades para manter seu sucesso nacional. Um gênero que cresceu junto com a world music e reinventou a identidade global brasileira. E rendeu uma hora de bate-papo no estúdio na casa de Luiz Caldas, outra hora e meia de conversa na varanda da casa de Daniela Mercury, uma visita ao WR Estúdio e uma hora de conversa com o dono do Abbey Road da axé music, Wesley Ranger, vinte minutos com Bell Marques antes de assistir a um show do ex-Chiclete com Banana e uma hora de conversa com Armandinho, filho de Osmar, um dos criadores do trio elétrico, além de discussões sobre política, estética e carnaval com o jornalista Luciano Mattos, a antropóloga Goli Guerreiro (autora do livro A Trama dos Tambores) e o guitarrista do BaianaSystem Beto Barreto – e incontáveis moquecas e passadas em pontos turísticos para fazer o cinegrafista Rodrigo Ferreira, fiel escudeiro desta trip, fazer imagens de cobertura.
O especial rendeu uma matéria sobre a gênese do gênero, uma longa conversa com Daniela, uma discussão sobre a atual crise na axé music (negada por seus protagonistas), uma linha do tempo, além de galerias de fotos, quiz e entrevistas mais curtas em vídeo. Dá pra ver tudo a partir daqui. E é a primeira de muitas outras colaborações com o portal, aguardem.
A primeira matéria que fiz para o especial de 30 anos de axé music do UOL foi sobre a origem do gênero. Quando comecei a pesquisar o assunto notei que havia uma lacuna histórica entre os Novos Baianos e os primeiros hits da axé music que me fizeram investigar junto aos protagonistas do gênero o que estava acontecendo na Bahia entre o Jubileu de Prata do Trio Elétrico, em 1975 (quando pela primeira vez alguém canta num trio elétrico, que até então eram instrumentais), o surgimento dos blocos afro e o hit “Fricote”, de Luiz Caldas, dez anos depois.
“Conquistamos o Brasil pela simplicidade”, diz produtor do hit nº 1 do axé
Em 1985, recém-saído da ditadura militar, o Brasil estava em plena adolescência pop. Rio, São Paulo e Brasília curtiam o rock, como trilha sonora da abertura. O que ninguém esperava era que um guitarrista descalço e com cara de índio estivesse colocando nas ruas, desde Salvador, uma nova revolução musical que mudaria para sempre o mercado do entretenimento no país. Seu nome era Luiz Caldas, e a novidade levava o título de “Fricote”.
Conhecida pelos versos “Nêga do cabelo duro, que não gosta de pentear…”, a faixa que é considerada oficialmente o marco zero do axé music foi lançada no disco “Magia”, de 1985, e fez um sucesso inesperado em todo o país já nos primeiros meses daquele ano.
“Gravamos no final de 1984, e logo depois viajei aos Estados Unidos para comprar discos e revender nas rádios de São Paulo. Cheguei no final de janeiro para fevereiro, e o disco de Luiz Caldas já era sucesso nacional. Foi num intervalo de 30 a 60 dias que realmente conquistamos o Brasil. E pela simplicidade”, lembra Wesley Rangel, produtor musical e dono do estúdio WR, que se tornaria o berço de todos os nomes da cena axé em Salvador, de Olodum a Ivete Sangalo.
“As pessoas usam ‘Fricote’ como emblemática desses 30 anos porque foi a música que abriu portas para outros artistas e para que esse mercado se transformasse no que é hoje”, explica Luiz Caldas, em entrevista ao UOL, em sua casa, em Salvador. “Mas o embrião do axé music nasce comigo de 1978 para 1979 com a música ‘Oxumalá’ do disco ‘Ave Caetano’, gravado em nome do Trio Tapajós”, lembra o músico.
Ele também cita outras produções próprias anteriores, como “Axé pra Lua”, como passos na formação deste novo gênero. A faixa, uma homenagem baiana a Luiz Gonzaga, enfileira títulos de músicas do Rei do Baião, cita o termo “axé” no título e inspirou o nome do Bloco Qualé? por causa de seu refrão.
“Luiz Caldas conseguiu fazer a síntese dele de um novo tipo de música que estava surgindo, que a gente chamava de ti-ti-ti, deboche, fricote”, revela ao UOL Daniela Mercury, fazendo referência à levada caribenha no contratempo que unia os universos dos blocos afro e dos trios elétricos e aproximava as duas metades do Carnaval de Salvador.
Com 400 mil cópias de “Magia” vendidas em todo o país e a presença constante de Luiz Caldas e da cantora Sarajane no programa do Chacrinha, na Globo, naquele ano, o Brasil percebeu que havia algo diferente acontecendo no Carnaval baiano.
Raízes
As raízes do axé music podem ser encontradas no início dos anos 50, quando Dodô e Osmar resolvem usar suas noções de elétrica para inventar uma nova forma de pular Carnaval em Salvador. Inspirados nas charangas do Carnaval pernambucano, eletrificaram um cavaquinho e um violão (batizando-os de “pau elétrico”) e subiram em um velho Ford Bigode (que ficou conhecido pelo apelido de “Fobica”) para tocar frevos que, na versão pernambucana, eram executados por metais.
No Carnaval de 1950, desfilaram pela primeira vez com o trio elétrico, que ganhou esse nome por ter um trio tocando instrumentos elétricos em cima do carro, e se tornaram a sensação da folia daquele ano.
A primeira grande mudança rumo ao axé music aconteceu quando o guitarrista Armandinho, filho de Dodô, resolveu homenagear o pai no aniversário de 25 anos do primeiro trio. Por mais que tivesse crescido junto ao trio (Dodô montou, inclusive, um trio mirim, onde o filho estreou na guitarra aos 10 anos), o rapaz também tinha influência do rock daquela década. “Eu via naquele cavaquinho elétrico a minha guitarra”, lembra Armandinho. “E aí comecei a fazer o trio elétrico nesse formato de rock, tipo Beatles, Jimi Hendrix: guitarra, baixo e bateria.”
O formato banda também foi influenciado por outra transformação crucial daquele ano. “No meio do Carnaval, o Moraes [Moreira] estava em cima do trio com a gente. Tinha um microfone que era só para o meu pai dar o ‘boa noite’, mas o Moraes pega, começa a cantar a música ‘Jubileu de Prata’ e se torna o primeiro cantor de trio elétrico”, atesta Armandinho.
A novidade do vocal mudou completamente a cena baiana, porque, se antes era preciso ser um exímio guitarrista para tocar a recém-batizada guitarra baiana, abria-se então espaço para que cantores se transformassem nas estrelas dos trios.
Foi nesse momento que começaram a surgir os trios que hoje tomam conta do Carnaval baiano, que haviam incorporado uma novidade criada pelo trio elétrico dos Novos Baianos: os amplificadores, cada vez mais altos. Se, antes, o som do trio era o barulho distante dos instrumentos elétricos, agora ele se tornava um palco móvel cada vez mais agressivo.
No batuque que balança
Também por força dos Novos Baianos -que lançariam a cantora Baby Consuelo, além do próprio Moraes Moreira-, as influências da música africana começaram a se misturar à sonoridade dos futuros músicos de axé. O fenômeno coincidiu com o resgate de blocos afro como o Filhos de Ghandy, apoiado por Gilberto Gil desde sua volta do exílio, e a criação de novos, como o Ilê Ayê e o Olodum.
Daniela Mercury lembra como ficou sabendo, do alto de um trio elétrico, de uma nova música do grupo Olodum que estava se espalhando pelo povo: “A gente estava descendo pelo (largo do) São Bento, eu vinha com a Banda Eva, no Carnaval de 87, quando um amigo cantor chamado Marcio Muller me perguntou, na hora em que a gente chegou na praça Castro Alves: ‘Daniela, você já ouviu ‘Faraó’?’ E eu disse ‘Não, meu filho’. ‘Pois é, o povo só está cantando na rua, espera aí que você vai ver’. E cantou: ‘E eu falei Faraó-ó-ó’, só com a voz. E o o povo todo, solenemente, respondeu ‘Êêêêê, Faraó’. Eu falei ‘O que é isso?’. E ele explicou que era um tal Bloco Olodum, um bloco novo, afro, da turma lá do Pelourinho. Me arrepio só de lembrar.”
No compasso do sucesso da nova febre musical baiana, que com a chegada dos tambores mais lentos ganhava também o nome de samba-reggae, o gênero finalmente ganhou seu rótulo: “axé music”. O batismo feito ironicamente pelo jornalista baiano Hagamenon Brito, ao internacionalizar o rótulo de forma jocosa, previu sem querer a carreira internacional do gênero.
“Foi batizado de forma pejorativa, mas foi apropriado porque é uma música mundial”, enfatiza Luiz Caldas. “Nós precisávamos dizer o que nós fazíamos”, concorda Bell Marques, ex-vocalista do grupo Chiclete com Banana, que se tornou um dos principais embaixadores do Carnaval baiano no país e no mundo afora com as chamadas “micaretas” fora de época. “Isso acabou facilitando as coisas para a gente.”
Espalhando-se pelo Brasil
Capitaneada pela força de Daniela Mercury, que em 1992 fez um show para 30 mil pessoas que parou a avenida Paulista, o axé music espalhou-se definitivamente para o resto do Brasil, vendendo milhões de discos e lançando dezenas de novos artistas, que então experimentavam algo inédito: era a primeira vez que artistas de outra cidade não precisavam mudar-se para o Rio ou para São Paulo para atingir todo o país. Pelo contrário, o sucesso do axé music ajudou a transformar Salvador e outras cidades do litoral baiano na meca turística dos anos 90 -quantas viagens de formatura não miraram seus destinos para o Estado naquela década?
Nesse mesmo tempo, a recém-batizada world music ganhava força como nicho de mercado e abraçava a música que vinha de Salvador. E assim Carlinhos Brown ganhou um Grammy em um disco de Sergio Mendes e foi indicado para outros prêmios internacionais. Salvador recebeu então a visita de ilustres “popstars” como Paul Simon e Michael Jackson, que vieram gravar com o Olodum no Pelourinho (sem contar as inúmeras celebridades internacionais que visitavam a cidade durante o Carnaval, apenas pelo turismo).
O axé atingiu o seu ápice comercial na virada do século, quando Ivete Sangalo deixou a Banda Eva e saiu em carreira solo e a internet começou a fazer as vendas de discos despencarem pelo mundo. Incorporando outros gêneros musicais à sua vasta mistura de ritmos (uma mutação que começou ainda com a inclusão do velho pagode e do samba de roda na safra de bandas puxadas pelo sucesso “Segura o Tchan”, do Gera Samba), o axé music começou a se diluir e perder seu impacto nacional.
Ivete disparou como grande artista pop desta nova fase, lançando discos e DVDs ao vivo (pela MTV, no Maracanã e no Madison Square Garden, em Nova York) e reunindo convidados que mantinham o pé da cantora no axé music (Margareth Menezes, Tatau, Durval Lélys, Davi Moraes, Gilberto Gil, Daniela Mercury, Olodum, Bell Marques e Saulo Fernandes), mas miravam no estrelato pop independentemente do gênero musical (Alejandro Sanz, MC Buchecha, Seu Jorge, Nelly Furtado, Juanes, Diego Torres, Alexandre Pires, Samuel Rosa, Sandy & Júnior e o grupo Stomp).
A carreira solo de Claudia Leitte, que deixou o grupo Babado Novo já nesta década, também se refletiu nessa nova fase pop do gênero, que, sem novas estrelas, começou a buscar referência em gêneros marginais de Salvador, conseguindo hits nacionais esporádicos como “Rebolation”, do grupo Parangolé, “Lepo Lepo”, do grupo Psirico, e a recente sofrência do cantor Pablo, com sua “Porque Homem Não Chora”, provável hit do Carnaval de 2015 na Bahia e um sugestivo retrato da situação desse gênero musical em seus 30 anos.
Carnaval tá chegando… Hora de rolar um…
Vai lá!
No fundo, no fundo, música pop é tudo igual e a gente fica caçando motivo idiota pra se achar melhor que o outro. E a rapeize do Golpe Baixo Vídeos tá de parabéns!
Imagina Ivete Sangalo vendo esse vídeo hoje em dia e pensando na grana que a Claudia ganha imitando-a. Queria ver só a cara dela.