“As Caravanas” é a grande música de 2017

, por Alexandre Matias

chicobuarque

As Caravanas, recém-lançado disco de Chico Buarque, é o disco que esperávamos que Chico lançasse há anos, mas que ele preferia manter-se na inércia de seu último grande disco, Para Todos. Desde o início dos anos 90 Chico vem lançando álbuns mornos (o último realmente interessante é As Cidades, do século passado) numa inércia que vinha pela idade, pela preguiça (um direito sagrado, não custa frisar) e pela dedicação à sua produção literária, onde parecia estar dedicando-se mais.

Mas veio a polarização política do Brasil, Chico tornou-se alvo de uma ideologia retrógada que insiste em dar as cartas no Brasil, virou meme e viu-se empurrado mais uma vez para o holofote das discussões. E não apenas lança um disco com o esmero e amplitude sonora de seus grandes trabalhos como compõe esta que já é uma de suas grandes canções, a faixa que batiza o disco, que dá pra cravar, sem crise, que é a música mais importante do ano.

Resposta dura e sofisticada à depredação moral que vem se abatendo sobre o país, “As Caravanas” é irmã caçula de “Vai Passar”, mas o foco é dedicado à parte tensa desta outra canção (“Dormia / A nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”) do que ao regozijo com a passagem do sanatório geral citado ao final. Parecia que tinha passado, não passou e amanhã ainda há de ser outro dia, mas Chico prefere falar do hoje, do agora – e mostrar como o passado segue firme, presente, ao nosso redor (com o arranjo dramático e a guitarra de Luiz Cláudio Ramos e o beatbox de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho).

“É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul
Enchendo os olhos
E um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arara
Do Caxangá, da Chatuba

A caravana do Irajá
O comboio da Penha
Não há barreira que retenha
Esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos
Do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alah
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões
E adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
Diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam
Em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Tem que bater, tem que matar
Engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arara”

Ave Chico.

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