Andróide paranóico
Materinha minha que saiu no Link de hoje…
Blade Runner completa 25 anos e ganha edição definitiva
Perto do final de Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982), o replicante Roy Batty pergunta-se sobre o que acontecerão com suas memórias quando ele se for, contemplando, assim, o sentido da vida como qualquer ser humano. A frase em que chega a esta constatação dita por seu intérprete, o ator holandês Rutger Hauer, é daqueles momentos memoráveis da história do cinema – e, ao mesmo tempo, pode ser usada como metáfora para a própria saga do filme, que, além de antecipar conceitos que hoje nos são comuns e alfabetizar a indústria para o valor artístico de um filme, ainda trouxe o conceito da obra de arte em aberto para o mercado de massas e mudou nosso conceito de futuro.
Completando 25 anos neste 2007 que termina hoje, o filme Blade Runner, do hoje respeitado e premiado diretor inglês Ridley Scott finalmente vê sua versão definitiva com o lançamento da edição especial tripla que chegou ao mercado brasileiro este mês. Além de horas inteiras de cenas inéditas e documentários feitos sobre temas do filme, a nova edição traz a versão definitiva do diretor para aquela que hoje é reconhecida como um dos maiores filmes de todos os tempos, antes foi visto como azarão sem chances num mercado cada vez mais competitivo.
Lançado a contragosto por seu autor por pressões do estúdio que o bancava, Blade Runner teve cenas trocadas, cortadas e ritmo alterado em sua primeira edição, que fracassou nas bilheterias. Mas o filme logo ganharia status cult à medida em que a década que o viu nascer chegava ao fim e forçava o mesmo estúdio que antes havia desmembrado o filme a juntar seus pedaços para uma novidade no mercado de filmes – a edição do autor, o “Director’s Cut”. Mas como a edição oficializada em 1992 foi apenas supervisionada por Scott, a originalidade da versão mais recente ainda era contestada. Até agora.
Proposta pelo próprio Ridley Scott no final de 2006, a nova edição se aprofunda no tema central do filme – nada menos que o sentido da vida. Baseado numa história do antes maldito escritor de ficção científica Philip K. Dick (adaptado pela primeira vez para o cinema), Blade Runner misturava referências clássicas do cânone da ficção científica com cinema noir, antevendo o futuro de tragédias ambientais, corporações globais e experiências genéticas que hoje habitam o nosso dia-a-dia. Era o fim do futuro otimista dos Jetsons e o começo de um apocalipse constante que tornou-se a vida no século 21. Se faltam 12 anos para chegarmos ao tenso 2019 da ficção, em muitos sentidos, já o habitamos.
E o que devia ser lançado como um manifesto pessimista sobre o futuro da humanidade, ganhou ares de filme policial futurista – e perdeu grande parte de seu apelo. A insatisfação de Ridley Scott era inevitável: o diretor despontava de um sucesso de bilheteria (Alien, 1979) e galgava rumo ao topo da pirâmide de Hollywood. Havia conseguido um estúdio, a Warner, para financiar um projeto baseado num conto do escritor de ficção científica Philip K. Dick – um clássico improvável do gênero ao mesmo tempo em que um zé ninguém para a indústria da época – e tinha ninguém menos que o mascote de George Lucas e Steven Spielberg como protagonista. O policial Rick Deckard completava a tríade de personagens que moldou o caráter público de Harrison Ford, ao lado de Han Solo (Guerra nas Estrelas) e Indiana Jones.
Mas o estúdio não permitiria um filme ser tão pessimista. A história em si já não era das mais felizes – Deckard era um policial cuja missão era exterminar andróides (replicantes, na linguagem do filme) que haviam se rebelado e se infiltram na população, passando-se por humanos. Suas conclusões e suposições – Deckard poderia ser um replicante e todo aquele papo sobre o sentido da vida – deixavam o que deveria ser um sucesso de verão com cara de filme existencialista. Pois obrigaram o diretor a trocar o final original (usando cenas não utilizadas por Stanley Kubrick em seu O Iluminado, de 1980) e a fazer de Harrison Ford um narrador à moda antiga, explicando em voz alta o que seu personagem estava pensando.
Insatisfação era pouco para definir o que Scott sentia. Além de lançar seu filme destroçado no mercado, o estúdio não havia feito nada para contribuir para seu sucesso nas bilheterias – pelo contrário. As mudanças feitas na reta final fizeram Blade Runner fracassar tragicamente nas bilheterias norte-americanas. Mas ao ser tirado previamente do cinema (e aparentemente sacramentar o fim da carreira de Ridley Scott), o filme foi despejado numa espécie de purgatório para os filmes que não conseguiam bom desempenho na telona: novos mercados que haviam se desenvolvido nos anos 80, como a TV a cabo e o videocassete.
Foi aí que Blade Runner se revelou um sucesso. A possibilidade de rever continuamente trechos ou todo o filme quantas vezes quisesse fez com que outras qualidades do filme pudessem ser contempladas – como sua visão pessimista para o planeta, sua contribuição estética e visual, seus conceitos transgressores de futuro. À exceção inevitável do conceito de ciberespaço (que começamos a compreender melhor com a popularização da internet nos anos 90), tudo aquilo que o escritor de ficção científica William Gibson sintetizaria em 1984 no romance Neuromancer (fazendo nascer, assim, uma nova safra de autores do gênero, a geração cyberpunk) já havia sido contemplado de alguma forma por Blade Runner dois anos antes: um mundo globalizado de vários idiomas, controlado por poucas e gigantescas corporações, que agridem o meio ambiente à medida em que experimentam os limites da ciência, como a robótica, a inteligência artificial e a genética.
A partir daí, o filme tornou-se objeto de culto (“cult movie” era o termo usado nos anos 80) e começou a movimentar dinheiro de uma forma que a indústria de entretenimento não conhecia ainda: a longo prazo. Com vendagens baixas e exibições localizadas, o filme trouxe para a era do blockbuster (inaugurada com Tubarão, de Steven Spielberg, e consagrada com a trilogia Guerra nas Estrelas, de George Lucas) o conceito de filme de arte ou filme de autor, que já existia na Europa e na Ásia nos anos 60 e que, no começo dos anos 70, ameaçou migrar para os EUA (em filmes de diretores como Francis Ford Coppola, William Friedkin e Robert Altman). Blade Runner seria a pedra-fundamental de uma indústria de filmes e cineastas que finalmente engatava no final dos anos 80 – gente como David Lynch, Tim Burton e David Cronenberg, que pavimentaram o caminho para a geração Quentin Tarantino, na década seguinte.
A importância de Blade Runner pouco a pouco era reconhecida e logo os rumores de que a versão lançada não era a imaginada por Ridley Scott – e assim começou uma corrida em busca do filme original, que não contou com a participação do diretor. Nos corredores da Warner, o Blade Runner definitivo começava a ganhar forma a partir da descoberta de duas das cenas que mudariam a história por completo: um sonho do policial Deckard e um presente que o criador dos replicantes teria dado ao policial. Ambas cenas traziam o mitológico cavalo de um chifre, o unicórnio, como símbolo da principal questão do filme: Deckard tinha um sonho recorrente com o animal que lhe foi entregue em forma de uma dobradura de origami pela mesma pessoa que programou toda a geração de andróides Nexus-6 – a mesma que rebelara-se no início do filme, liderada pelo personagem-robô de Rudger Hauer.
Se a edição original terminava com uma nota suspensa sobre a possibilidade da namorada de Deckard (vivida pela atriz Sean Young) ser um autômato, a nova versão trazia a possibilidade do próprio apaga-robôs (o título do filme vem de uma expressão do poeta beat William S. Burroughs empregada para policiais que devem “desligar” andróides) ser ele mesmo um replicante. A chamada “Versão do Diretor” – “Director’s Cut” como Blade Runner conceituou – trouxe o cinema para um novo estágio artístico. Enquanto a obra originalmente estava encerrada no momento em que era exibida pela primeira vez ao público, agora ela nunca terminava. O cinema abraçou o conceito de “obra aberta”, que já habitava o mundo das artes plásticas desde os tempos dos modernistas e começava a invadir o mundo do som gravado (com canções em versões “extended” – mais longas -, “edit” – mais curtas – e “remix” – com nova pós-produção).
A partir da nova versão de Blade Runner (lançada oficialmente em 1992, mas que só contou com a participação do próprio Scott no final do processo), uma série de filmes foi revista a partir de sua edição inicial. E se antes o remake e a continuação eram os únicos territórios desbravados pelo cinema de ficção, ele agora se ampliava em versões remasterizadas digitalmente (área desbravada por George Lucas, nos anos 90), versões “Redux” (em que cenas deletadas originalmente devido à duração entravam no primeiro filme, como o Apocalypse Now de Coppola) e projetos multimídia completos, cheios de subtextos, inúmeros personagens complexos e enredos intrincados (como as trilogias Matrix e Senhor dos Anéis, além da saga de Harry Potter e seriados como Lost e 24 Horas). É claro que nem tudo foram flores neste processo – tanto que colorizaram Casablanca e refilmaram Psicose quadro-a-quadro. Nem tudo é perfeito.
Mas ao completar o jubileu de prata de seu principal filme, Ridley Scott assumiu o processo para dar ao mundo sua visão definitiva do que seria o Blade Runner original. É claro que há uma certa ingenuidade em se imaginar que veremos exatamente o que Scott pensou há 25 anos – um quarto de século depois, o diretor ultrapassou o flerte com Hollywood e é velho conhecido das cerimônias do Oscar. Isso não impede que a dita versão definitiva do filme corrija erros do passado – pelo contrário. Da mesma forma, não é de se estranhar se a Warner ou o próprio diretor voltarem mais uma vez à obra, numa edição “mais que definitiva”. Aparece uma cena nova, surge uma tecnologia pra deixar um efeito especial melhor acabado e é questão de tempo para começarmos a assistir filmes em três dimensões. O que Blade Runner fez com a indústria que o gerou foi dar vida para assuntos que pareciam encerrados e enterrados – essas certezas, hoje em dia, são tão fugazes e sutis quanto lágrimas na chuva.
Novo paradigma de futuro
“O futuro não é mais como era antigamente”, reclamava, com razão, Renato Russo na música “Índios”, em 1987. Antes, no desenho Os Jetsons, o pai George conduzia a família rumo ao trabalho em seu disco voador particular, que depois virava uma maleta. O diretor Stanley Kubrick imaginou que na virada do milênio estaríamos mirando as viagens rumo a Júpiter em “2001 – Uma Odisséia no Espaço” e os robôs de Isaac Asimov obedeciam a três leis que estabeleciam o bom senso para todos.
Mas alguma coisa aconteceu entre a era da computação pessoal e o fim da Guerra Fria. Os anos 80 assistiram à ascensão do nerd ao mesmo tempo em que os EUA pouco a pouco deixavam de ter um vilão à altura com a queda da antiga União Soviética. A preocupação ambiental aumentava à medida em que jogos eletrônicos substituíam os brinquedos tradicionais. A música tornava-se repetitiva e robótica e o futuro logo se tornaria apocalíptico.
Blade Runner fotografa melhor do que qualquer contemporâneo esta mudança de paradigma de futuro. A falência do modelo americano após a derrota na Guerra do Vietnã e a renúncia do presidente Nixon desmoronou de vez a ideologia capitalista tradicional, que começara a cair com a morte de Kennedy. Mas a derrota do comunismo soviético e ascensão de novas forças globais (como a Ásia e o Oriente Médio) começaram a pintar um panorama que nem de longe lembrava a dicotomia simplista entre americanos e russos.
Assim, chove chuva ácida sem parar no 2019 de Blade Runner, que não parece amanhecer nunca. Grandes corporações ostentam logotipos em todos os lugares para onde olhamos e parecem controlar tudo. Computadores estão tão próximos a nós mesmos que mal percebemos sua presença. E há uma sensação de desolamento e pessimismo em relação às próximas horas – que dirá do futuro em si.
A produção cinematográfica a seguir bebeu direto dessa visão apocalíptica do futuro. Filmes como Mad Max, Robocop e O Exterminador do Futuro e animes como Akira e Ghost in the Shell são diretamente influenciados por Blade Runner, assim como duas das principais obras de quadrinhos dos anos 80 – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e Watchmen, de Alan Moore.
Essa é a base do movimento literário cyberpunk, que ainda inclui a internet (ausente de Blade Runner) nesta equação. O movimento foi inaugurado com o romance Neuromancer, de William Gibson, e teve como um de seus principais teólogos o escritor Bruce Sterling. O cyberpunk foi ultrapassado por seus próprios autores principais, que criaram o conceito de steampunk (gênero que partia do pressuposto do computador ter sido criado no século 19 e toda a revolução eletrônica ter acontecido há mais de 100 anos) no livro The Difference Engine, passando o bastão para o barroco Neal Stephenson, o principal autor de ficção científica dos anos 90.
O clima pessimista dos anos cyberpunk aos poucos começam a passar com a chegada de novos nomes entre os escritores de ficção científica, a começar pelo garoto-prodígio Cory Doctorow, cujo livro de estréia apresentava o conceito de cura de morte e um protagonista feliz por habitar em plena Disneyworld. Mas o próprio Doctorow não escapa de um pessimismo básico, como fez em seu conto mais recente, Scroogled, em que cogita a possibilidade do Google se tornar a polícia do futuro (!).
Um escritor chamado PKD
Outro feito histórico de Blade Runner foi apresentar o autor Philip K. Dick para as massas. Escritores de ficção científica raramente chegam à tela grande e, quando isso acontece, é por idiossincrasia do diretor. Assim foi com 2001 – Uma Odisséia no Espaço, em que Kubrick levou Arthur C. Clarke para o espaço e com H.G. Wells na radiotransmissão que Orson Welles fez para Guerra dos Mundos.
K. Dick em especial é um autor difícil de se penetrar. Não por sua literatura, sempre clara, objetiva e detalhista, mas pelos temas abordados. PKD – como é mais conhecido pelos fãs – usa dos clichês da ficção científica (como alienígenas, viagens no tempo e robôs) para fazer questionamentos morais e éticos sérios, quase sempre acionando os limites do que chamamos de humanidade.
Baseado no livro O Caçador de Andróides (cujo título em inglês – Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas? – é menos óbvio que sua tradução rasa para o português), Blade Runner foi o primeiro de uma série de filmes adaptados a partir de livros e contos de Philip K. Dick. Depois foi a vez de O Vingador do Futuro de Paul Verhoeven, Minority Report de Steven Spielberg, O Pagamento de John Woo e O Homem Duplo de Richard Linklater. Atualmente, há dois filmes em andamento dispostos a contar a vida do autor, sempre turbulenta, presa entre a esquizofrenia, prazos para a entrega de seus livros e drogas para ficar acordado. O primeiro conta com Bill Pullman no papel do escritor e o segundo, chancelado pela família de K. Dick, conta com o ator Paul Giammati como protagonista.