Clima de sonho

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Yma me convidou para escrever o texto de apresentação de seu belo disco de estreia, Par de Olhos, lançado nesta sexta-feira, uma viagem onírica que fica entre a psicodelia noir, o vintage anos 80 e um certo ar de mistério.

Uma guitarra torta rasga o horizonte como um raio em câmera lenta numa noite fria – mas não há sinal de chuva. Bateria e baixo marcam o andamento, ponteado por outra guitarra, à espreita, dedilhada, como se soubesse de algo que não podemos saber. É uma canção dos anos 80 e também é uma viagem de carro à noite, o vento batendo no rosto enquanto mistura camadas de emoções num mesmo bloco de sentimentos. “Seus olhos no escuro, dançando pelo avesso, as paredes se derretem devagar”, a doce voz de Yma sussurra a melodia principal desta introdução, acrescentando uma inusitada psicodelia noir àquela cena. Não há estrada nem horizonte, apenas um quarto no escuro e todo o imaginário evocado pela canção é ilusão. “Tenho medo de você evaporar”, ela canta na introdução deste primeiro disco, “Par de Olhos”, lançado bem no começo de 2019, deixando claro que estamos entrando num território onírico.

O disco de estreia da cantora e compositora paulistana começa de verdade na segunda faixa, que batiza o álbum. Todos os elementos que formam a dissimulada vinheta “Evaporar” se realinham criando uma atmosfera completamente diferente, que mantém-se moderna e retrô sem medo da contradição. A psicodelia noir, o romantismo anos 80, a guitarra dedilhada, o ar de fantasia, o baixo e a bateria de uma canção de amor – e até a guitarra de um dos convidados, o líder do Cidadão Instigado Fernando Catatau. A canção “Par de Olhos” brinca com o flerte para hipnotizar o ouvinte rumo a um território estranho e familiar, impreciso e reconfortante, como um predador que encanta a presa para que ela não perceba o que está para acontecer.

O clima de sonho é determinante para este primeiro registro de Yma. “Há uma exploração do universo onírico, em que eu uso os mecanismos do mundo dos sonhos para distorcer – e dar graça – às situações cotidianas que me inspiram a escrever”, explica. “O mistério sempre me instigou, e por mais que tenhamos o sentido da visão, acredito não sermos capaz de enxergar tudo que está à nossa volta. Gosto de interpretar as lacunas do que está por trás da vista imediata, buscar o imaterial. Talvez esta seja a melhor definição de Par de Olhos, essa tentativa de investigar os cantos escuros da realidade”.

O disco continua com a já conhecida “Vampiro”, uma das três faixas que Yma já havia lançado antes deste primeiro registro oficial. O ar de estranheza melancólica desta canção apresentou-a a um público maior, transformando-a em hit online, que ainda emplacou “Sabiá” e “Summer Lover” (que não estão no álbum), criando um pequeno séquito de fãs que a acompanha para onde for. Apesar das referências oitentista e do ar retrô (ou talvez justamente por isso), seu público é majoritariamente adolescente, que encontra-se na doce rebeldia de suas letras “Acho até que eu perdi o meu caminho e eu não quero voltar, porque aqui eu sou normal”, canta entre a inocência e o blasé, “vamos fugir junto que o tempo é curto e eu não quero mais morrer, eu quero dançar com você…”

Produzido por Fernando Rischbieter, que também é guitarrista, toca teclados e dirige musicalmente o trabalho ao lado de Yma, Par de Olhos conta com uma banda formada por Uiu Lopes no baixo, Dreg na guitarra, Leon nos synths e Marco Trintinalha na bateria, além de synths da própria vocalista e compositora e participações de músicos como Gustavo Ruiz, Zé Ruivo, Gongom, João Antunes e Elísio Freitas. Nascida em São Paulo, a cantora e compositora tem formação erudita, mas sua queda pelo pop a trouxe para este universo musical fluido, que segue em outras paragens musicais, misturando sempre a sensação de familiaridade com a de vazio e costura existencialismos que se refletem em canções que vão da pista de dança (“Shake It”) à praia (“Sun and Soul”, um dueto delicioso com o vocalista Lau, do grupo Lau e Eu), do cemitério (“Colapso Invisível”) ao espaço sideral (“Nowhere Here”), encerrando com a absorta “Pequenos Rios”, composta ao lado de César Lacerda. “As luzes da cidade que cobrem essa noite, eu quero te levar comigo”, ela segue cantando, lembrando que tudo é ilusão, “as sombras nas paredes, os passos em silêncio, eu quero te guardar comigo”.

Não mexe com ela!

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Com seu novo disco Todxs, Ana Cañas chega ao seu melhor álbum ao assumir as rédeas de sua própria carreira – e ela me chamou para escrever o release deste seu novo lançamento.

Ana Cañas vem sorrateira sob um teclado elétrico quente que vai desenhando um ambiente que simultaneamente soa suntuoso e aconchegante. Baixo e beat eletrônico surgem milimétricos, marcando o tempo à espera de algo tenso que parece se avizinhar. A cantora e compositora paulistana entra sussurrando e gritando a letra de “Declaro My Love”, soul de lavar a alma que compôs com Arnaldo Antunes. É o início de Todxs, seu quinto disco, seu trabalho mais ousado e o melhor álbum de sua carreira, que muda completamente o patamar onde ela está atualmente.

O clima romântico cai por terra logo na segunda faixa, “Eu Dou”, quando ela muda completamente o rumo do álbum, colocando o dedo em várias feridas comportamentais, cuspindo frases que sintetizam os interesses que coloca em jogo no álbum: “Dou uns pega, dou uns trago /Nas idéia, dou um trato / Dou pros lek, dou pras manas / Corpo laico, a gente ganha / Dou uns beijo, uns abraçaço / Demorô, bora orgasmo / Quatro e vinte, tô brisando / Tiro a zika e saio andando.” O groove, desenhado mais uma vez pelo teclado, desta vez conta com scratches de uma vitrola para sair do clima intimista da faixa de abertura – afinal é uma canção que fala, sem meios termos, “sou a buceta, não o caralho”.

A faixa-título, que conta com a participação do rapper Sombra, do grupo SNJ, confirma a suspeita: Todxs é um disco minimalista na sonoridade, delicado e sutil, embora tenha peso e groove. Esta aura musical é traduzida também nas letras, concluindo um processo de dois anos desde que ela começou a pensar no disco que sucederia seu Tô Na Vida, de 2015.

Ana começou a entender melhor o rumo que iria seguir a partir de seu envolvimento com o rap e com causas sociais. O marco deste envolvimento é o single “Respeita”, lançado no ano passado, em que ela rimava pela primeira vez e convidava a dupla Instituto (que revelou Sabotage, entre outros nomes do gênero) para produzi-la. Mas mais do que um rap, “Respeita” era uma conexão que Ana fazia com sua própria feminilidade e começar a levantar a bandeira do feminismo e traçar vínculos com movimentos negros, sem teto e de periferia.

Esta nova atitude seria revigorada pela série de shows em homenagem a Belchior, que fez ao lado de Karina Buhr e Taciana Barros (que também coassina a faixa de abertura). Esta última que apresentou Ana a Thiago Barromeu, e que veio acompanhar o trio de cantoras no tributo ao ao cantor e compositor cearense. A conexão com Thiago foi quase que imediata e aos poucos os dois começaram a conversar e a trabalhar juntos – fazendo shows apenas com violão ou experimentando com bases eletrônicas. Foi quando Ana o chamou para produzir o disco – o primeiro trabalho de Thiago nesta função.

Todxs também foi uma oportunidade de Ana se reencontrar como novos e velhos conhecidos, como Tim Maia, Itamar Assumpção, Carlos Posada e Chico Chico. O síndico ressurge em outro momento romântico do disco, na versão que Ana fez para “Eu Amo Você”, que foi eternizada por Tim. Já Itamar vem junto com Chico Chico, filho de Cássia Eller e novo parceiro de Ana, com quem tem feito shows em parceria (num destes, inclusive, conheceu o rapper Sombra, que chamou para rimar no disco). Chico e Ana consolidam este laço com a irresistível “Tua Boca”. O novo cantor e compositor Carlos Posada também é agraciado no disco com seu tocante poema “Tijolo”.

Mas são as novas canções de Ana Cañas que dão a cara do álbum. “Eu Dou”, “Todxs”, “Tão Sua”, a didática e hilária “Lambe-Lambe”, “Independer” (outra parceria com Arnaldo e Taciana) e o hit “A Onça e o Escorpião” mostram a cantora completamente à vontade com sua nova faceta, segura de si e de suas ideias, dando as cartas e determinando as regras de seu próprio jogo. Todxs consagra a maturidade dela tanto como cantora, compositora e personalidade pop e ela está pronta para enfrentar os dragões da maldade que aparecerem em seu caminho (coitado deles). Ana Cañas não está pra brincadeira – seu sorriso de canto e o olhar penetrante são apenas a tradução de canções prontas para conquistar um novo público. Não mexe com ela!

Paula Santisteban no Rio e em São Paulo

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Autora do último disco produzido pelo meu irmão Miranda, Paula Santisteban se apresenta nesta quarta na Unibes Cultural em Sâo Paulo, com a participação da Tiê (mais informações aqui) e na quinta no Blue Note Rio, com a participação da Nina Becker e do mestre Kassin (mais informações aqui). Os dois shows seguem o calendário de lançamento de seu primeiro álbum, desta vez no formato que Paula compôs o disco, com guitarra (Eduardo Bologna), teclados (Marcos Romera), baixo (Eric Budney) e bateria (Daniel de Paula). Estou tendo o prazer de trabalhar na direção deste lançamento e fui a ponte entre Paula e estas duas grandes cantoras brasileiras deste século. Antes do show de São Paulo, às 19h, eu bato um papo com ela sobre o processo de criação desta bela e delicada coleção de baladas que é seu disco de estreia, no lounge da Unibes Cultural (do lado do Metrô Sumaré), de graça. É só chegar. A Débora da Unibes conversou com Paula numa entrevista que está no site do espaço e abaixo segue o release que escrevi sobre o disco que leva seu nome.

Onde tudo se perdeu? Quando o encanto se quebrou? O que aconteceu com a magia da vida, antes tão presente e tão sentida, hoje soterrada pela banalidade dos números, das medidas, dos fatos, do mal. O pequeno tornou-se insignificante, o diferente, desprezível, o simples, ruim.

A longa e intensa jornada deste início de século parece pegar a todos pelo pescoço para que se perceba a necessidade da valorização do que é corriqueiro, rotineiro, comum. Há um ambiente tóxico criado pelo excesso de adjetivos deste novo agora que exige que tudo se destaque de forma desproporcional. Não sabemos mais o que é genial, o que é incrível, o que é único de fato – tudo é vendido desta forma ao cubo, aumentando nossos anseios e expectativas para um futuro que inevitavelmente nos causará frustrações.

Mas, como já cantava um saudoso bardo do século passado, há uma brecha em tudo e é por ela em que entra a luz. Por mais intensos e sufocantes tenham sido os últimos anos, esta sensação aos poucos cria antídotos naturais em diferentes esferas, produzindo alentos espirituais que podem vir de muitas formas – e a música é uma delas.

Paula Santisteban sabe disso. Dona de uma personalidade musical única no atual cenário musical brasileiro, ela condensa em seu primeiro disco um conjunto de sentimentos e impressões que vai de encontro à massa cultural produzida atualmente. Usando sua voz como estandarte deste manifesto, ela nos conduz à entrada de um lugar quase secreto e dado como perdido: a consciência da beleza do simples.

No conjunto de dez faixas reunidas sob seu nome, ela acalenta o ouvinte com sua voz sabendo exatamente onde o levar. São dez baladas apaixonantes e refinadas, tocadas por uma banda de músicos de primeira, gravadas como há muito não se gravava, com arranjos deslumbrantes tocados por cordas, madeiras e metais. Tudo construindo um pedestal para uma voz que prefere descer deste posto e juntar-se aos músicos como mais um instrumento – mas sem nunca perder sua centralidade.

Como queria o amigo Carlos Eduardo Miranda, um dos principais nomes da indústria fonográfica brasileira dos últimos vinte anos, responsável pela produção do disco – foi o último registro a levar sua assinatura, antes de sua morte prematura aos 56 anos, no início deste ano. Responsável por revelar nomes tão diferentes quanto Raimundos e Otto, Miranda foi crucial para o estabelecimento das carreiras como Skank, O Rappa, Chico Science e Nação Zumbi, além de personalidade-chave para o desenvolvimento de cenas independentes em Porto Alegre (sua cidade-natal), Recife, São Paulo, Brasília e Belém. Redesenhou o mapa do pop brasileiro das últimas décadas e era conhecido pela personalidade carismática, pelo enorme coração, pelo amor pela cultura pop, pelo apreço à esquisitice e pelas histórias deliciosas, sempre contadas às gargalhadas e lágrimas.

Mas Miranda tinha um lado pouco conhecido do grande público. Suas camisas floridas, seus comentários no programa de calouros Ídolos e o fato de ter lançado artistas tão jovens e jocosos como Cansei de Ser Sexy e Virgulóides escondia uma paixão pela refinação, uma verdadeira devoção pelo esmero, pelo capricho, pelo delicado e pela sofisticação. Fã incondicional da sonoridade analógica dos anos 70, ele já havia demonstrado sua excelência neste tipo de produção ao assinar os trabalhos de artistas como Nina Becker, Estela Cassilatti e da banda mineira Transmissor. E sabia que o trabalho com Paula Santisteban seria o ápice desta sua faceta como produtor. Só não sabia que iria ser seu último – e também um legado formidável para encerrar sua discografia e para lançar a carreira desta nova artista.

“O Miranda falava que esse disco seria um disco pra quem gosta de som”, me explica Paula, ao contar todo o processo que culminou com seu primeiro disco, que tomou dois anos de ensaios com sua banda – formada pelo guitarrista Eduardo Bologna, que também é o diretor musical do álbum, pelo tecladista Roberto Pollo, pelo baixista Eric Budney e pelo baterista Daniel de Paula – para escolher repertório e construir um álbum que Miranda queria que tivesse cara de LP, com quarenta e cinco minutos de duração e com uma separação entre o que era lado A e lado B.

Tinham vinte canções e destas escolheram dez. Miranda comentou as letras, ajudou a escolher os músicos e os instrumentos, além do arranjador para este trabalho, o músico Ed Côrtes. “O Miranda dizia que foi muito acertado trazer o Ed, pois ele trouxe uma atmosfera cinematográfica, visual, e até algo das orquestras do pai dele, Edmundo Villani Côrtes, um dos maiores compositores eruditos brasileiros, vivo, que também fazia arranjos para grandes orquestras de televisão e bailes”, continua Paula.

O processo de gravação ecoa a era analógica e quase tudo foi gravado em takes inteiros, sem edição, sem overdubs, sem efeitos ou nada que transformasse o som dos instrumentos originais – nem mesmo o próprio instrumento dobrado. Quase nenhuma compressão, nada que ressaltasse um instrumento em relação ao outro, como se o ouvinte pudesse estar no mesmo ambiente que os músicos. Primeiro gravaram baixo, guitarra e bateria, depois teclados, depois a orquestra e finalmente a voz.

“A maior participação do Miranda foi na construção da voz”, segue explicando Paula. “Ele simplesmente me fez olhar para minha voz verdadeira, sem truques, sem maquiagem. Foi reduzindo tudo o que não fosse a minha voz de verdade. Isso fez com que ela ficasse muito contida: era o que eu não cantava, e não o que eu cantava, que trazia a emoção nas canções. A entrega das palavras e a expressão e não a interpretação. Fui zero intérprete, fui eu!” A excelência chegou à precisão do microfone específico para aquele registro, um Neumann valvulado de 1952.

A mixagem de Maurício Cersosimo ressaltou este aspecto intimista, próprio das canções de Paula, sem perder um aspecto épico e espaçoso, devido aos respiros entre instrumentos feitos nesta fase da gravação. Greg Calbi, dos EUA, masterizou o disco respeitando estas qualidades, colocando a cantora no meio da banda como se fosse ela mesma uma instrumentista.

“Venho de uma família de artistas, não só de instrumentistas, o que me fez trazer para o meu trabalho, algo visual, tátil, além da partitura”, Paula reforça. “Os andamentos são muito lentos, pois essa ideia de desacelerar está no disco. É um disco de baladas que falam da vida, de separações, de momentos de tristeza, de constatações, de calma, de amor calmo, profundo, de maternidade, de vida e morte, de amor de casal. É um disco maduro, adulto, de uma mulher mãe, de uma cantora e compositora que vive a música na sua essência. Um disco muito humano, na essência da palavra, pois usamos muito pouco de tecnologia, somente usamos como suporte para nossas ideias. E também humano, por conta da coletividade e do amor e amizade que trouxemos através dos encontros que o disco proporcionou.”

Neste sentido, o papel de Miranda foi muito além do que se espera de um mero produtor fonográfico. “Ele foi como um guru, um guia de amor o tempo todo, trazendo o caminho certo de tudo”. Inclusive na minha participação no disco. Velho amigo, Miranda me falava o tempo todo sobre o processo do disco de Paula, ressaltando que eu só iria ouvi-lo quando estivesse pronto. No dia em que morreu, conversamos pela parte da manhã e ele reforçou que queria que eu participasse deste processo – e estava conversando com Paula também sobre isso. Após sua morte, nos encontramos e ela pode me mostrar o disco, que havia acabado de ser gravado e começava a ser mixado – a começar pela tocante “As Janelas da Cidade”, o primeiro single do disco. Juntos, começamos a desenhar o lançamento deste último gesto artístico de nosso querido compadre. E a partir daí vieram as fotos de Bob Wolfenson para a capa do álbum, a assinatura com a gravadora Warner, o lançamento do álbum no Auditório Ibirapuera – e assim Paula Santisteban vai deixando sua marca, que também é a marca antevista por seu produtor.

“Acredito que o disco, em sua essência, traz essa cor laranja, azulada de um fim de tarde”, ela conclui. “Essa vontade de caminhar, de olhar paisagens, de desacelerar, de entrar em um lugar dentro, em águas profundas. Música, tocada, cantada, sem glamour. É um disco que abraça e não que afasta.”

No coração da máquina

Foto: Fábio Bitão

Foto: Fábio Bitão

Guizado antecipa em primeira mão para o Trabalho Sujo “Cidade Neon”, o segundo single de seu mais novo álbum, O Multiverso em Colapso, que ele desenvolveu na temporada que fez no Centro da Terra em maio deste ano e que será lançado na semana que vem. Ele também me chamou para escrever o release do disco, que reproduzo abaixo.

Não lembro quem falou primeiro, mas tanto Guizado quanto Miranda me avisaram mais ou menos na mesma semana que estavam começando a trabalhar juntos. O trompetista já é um dos principais nomes no Brasil em seu instrumento e o dividiu palco com alguns dos principais nomes da nossa música neste século, além de ter desenvolvido uma sólida carreira solo pop e instrumental, artefato raro na paisagem musical daqui. Imaginar que ele entregaria um capítulo de sua carreira a um dos grandes produtores da história da nossa indústria fonográfica abria inúmeras possibilidades sonoras. Um universo em expansão – multiversos!

Duas cabeças intensas e prolíficas, Guizado e Miranda bateram de frente para entender o rumo que iriam tomar juntos. Nesta colisão, o produtor gaúcho puxou o músico paulistano do free jazz e do espaço sideral para trazê-lo de volta à Terra. Embarcaram em uma jornada para um passado que ambos viveram e curtiram: os anos 80 que viram a formação do músico e do produtor em suas respectivas cidades e áreas de atuação.

Com isso, as referências contínuas das duas cabeças começaram a jorrar uma sobre a outra: discos, filmes, quadrinhos e livros daquele período acabaram dando uma tônica de ficção científica completamente diferente da viagem interestelar que Guizado havia feito em seu disco anterior, Guizadorbital. Juntos, partiram para um viagem no tempo que lhes valeu uma completa invertida na sonoridade do músico.

Este ainda vinha acompanhado por uma banda magistral: Richard Ribeiro na bateria, Meno Del Picchia no baixo, Allen Alencar em uma guitarra, Regis Damasceno na outra e Zé Ruivo nos teclados talvez seja um dos melhores conjuntos instrumentais de São Paulo, cada um com suas referências e backgrounds que se fundem em uma sonoridade pesada e límpida, livre e pop, agressiva e reluzente. Encontrei com Guizado no início do ano e ele me falou sobre os rumos do novo disco, que vinha com influência de quadrinhos apocalípticos dos anos 80 e deveria se chamar O Multiverso em Colapso. No mesmo encontro, o convidei para tomar conta de uma das temporadas de segunda-feira no Centro da Terra, espaço de resistência cultural escondido no bairro paulistano do Sumaré, em que atuo como curador de música, dando-lhe a oportunidade de concluir o processo que estava realizando no disco antes de sua gravação.

Entre o encontro e a temporada, veio a morte de Miranda, sobre quem havíamos conversado naquele papo no início do ano. Guizado me contou que o produtor gaúcho já andava mal de saúde e só conseguia acompanhar aquela etapa do processo em conversas remotas, mas sua influência paira por todo disco O Multiverso em Colapso, que leva as duas assinaturas na produção e foi gravado em uma das semanas de maio de 2018, no meio do mês em que celebrava o final daquele processo na temporada batizada com o nome do disco.

Nas apresentações de segunda-feira, Guizado recebeu a presença de nomes ilustres da nova música brasileira, como o rapper Edgar, o grupo instrumental Ema Stoned, o guitarrista Kiko Dinucci, o baterista Maurício Takara, o guitarrista Júnior Boca, além de outros que acabaram entrando nas gravações do próprio disco, como Ava Rocha, Sandra Coutinho, Rômulo Froes, Lucas Santanna, Thiago França, Angela Merkel e Negro Léo.

O resultado é um disco noturno e paranoico, pop e frenético – e com muitos vocais. É o disco de Guizado com mais canções tradicionais, incluindo refrões que poderiam estar no rádio. Por todo o percurso, Guizado mostra o rumo com seu trompete como se ele fosse um cursor de um velho computador, abrindo programas e pastas de passados remotos que ainda se mostram atualíssimos. Os timbres das guitarras são prateados ou néon, como o caminho traçado pelo trompete, e brilham num escuro que não para de ferver composto por uma cozinha por vezes fria e robótica, por outra esparsa e vulcânica.

No meio de tudo, o instrumento de Guizado funciona como holofote para sua própria voz (que canta em “Sobre Deuses e Demônios”, “Sonho Delírio”, “Tengo Piel”, “Coração Caverna” e no primeiro singfle, “Modern Fears”) e para as de Negro Léo, Ava Rocha e Sandra Coutinho, bem como para as presenças cortantes dos músicos de sua banda.

O Multiverso em Colapso é um passeio por um futuro que não aconteceu, em que carros voadores e jazz fusion coexistem com corporações sem rosto e vendedores de rua. Resvala pelos futuros tech noir de Blade Runner e cyberpunk de Akira, mas sem perder uma identidade brasileira, urbana e cerebral. Um robô que sonha ser uma pessoa – ou justo o contrário. É nesta zona intermediária que faz seu coração binário pulsar.

O momento solitário da recriação

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Em Avante Delírio, Saulo Duarte se despede da Unidade em busca de uma nova sonoridade – bucólica porém solar. Ele me convidou para escrever o texto de apresentação de seu primeiro disco solo, que reproduzo a seguir.

Saulo Duarte queria ouvir a própria voz e não era a voz com a qual cantava n’A Unidade, usina paraense de groove que havia fundado no bairro do Cambuci, em São Paulo, no início da década. A quantidade de músicos no grupo e a energia intensa de suas apresentações fizeram-no separar um material musical próprio, que pouco a pouco ia ganhando cara e corpo longe de seus colegas de banda. Queria, no entanto, explorar novos ares para aquelas canções bem como traduzir essa nova sonoridade para além da festa que era a Unidade.

Foi quando o convidei para realizar uma temporada no Centro da Terra, pequeno foco de resistência cultural no bairro do Sumaré, também na capital paulista. Na curadoria de música do local desde o início do ano, transformei suas segundas-feiras em um laboratório musical para músicos, intérpretes e compositores experimentarem possibilidades estéticas para além dos discos, clipes, shows e turnês. E a dúvida que Saulo me apresentava – cogitar caminhos diferentes para sua musicalidade a partir de formações que iam de encontros com banda até a voz e o violão – se encaixava perfeitamente com a proposta do Segundamente, nome de batismo destas temporadas.

Assim, Saulo bolou a temporada Persigo São Paulo, nomeada em homenagem a Itamar Assumpção, em outubro de 2017, quando usava as segundas-feiras para encontros de diferentes natureza com vários parceiros, desde irmãos de longa data a novos músicos com quem se identificava. Reuniu Giovani Cidreira, João Leão, Bruno Capinan, Russo Passapusso, Igor Caracas, Victor Bluhm, Josyara e Curumin e se a princípio ele parecia estar em dúvida para definir por qual daquelas quatro frentes atuaria, a temporada lhe revelou que o rumo era um híbrido de todas apresentações.

O disco que depois se tornaria Avante Delírio começou a ser gravado em seguida: em dezembro do ano passado no estúdio Navegas Cantareira com Zé Nigro e Lenis Rino, em janeiro do ano seguinte no estúdio YB com Fernando Rischbieter, no mês seguinte no Klaus Haus Studio com Klaus Sena e no Matraca Records em março com Pedro Vinci, além de recuperar gravações que havia feito no Red Bull Studio com Rodrigo ‘Funai’ Costa e Alejandra Luciani no meio do ano passado.

Em comum, o astral aberto característico de suas composições n’A Unidade, mas com um quê de melancolia e uma dose de realismo duro. No mesmo período, saiu dos holofotes como guitarrista ao assumir o instrumento que lhe consagrou no trabalho do casal de amigos Anelis Assumpção e Curumin, tornando-se integrante temporário das bandas respectivas, Os Amigos Imaginários de Anelis e os Aipins de Curumin. Ao emprestar seus timbres elétricos para os velhos compadre e comadre, tirou-os de sua dianteira para abraçar o instrumento que dá rumo, sabor e textura a seu primeiro disco solo – o violão de nylon.

Esse velho companheiro é o cajado no qual Saulo se escora para trilhar novos rumos – e para com ele diminui o impacto de sua energia para uma esfera quase familiar, doméstica. Saem os festivais a céu aberto repletos de multidões aos berros e o sol entra por uma fresta matutina em um apartamento espaçoso, plantas, tapetes, quadros, cinzeiros, incensos e discos de vinil espalhados por mesas no canto. Mesmo quando o clima é mais soturno ou sisudo (há sombras mesmo nos momentos mais ensolarados do disco), ele não é nem grandioso nem pessimista.

E assim ele recebe um time de amigos como quem abre sua casa para um almojanta de sábado à tarde, todos se espalhando pelo disco como se pegassem um canto da sala – um banco, uma rede, um pufe, o sofá. Além do violão e vocais de Saulo e do baixo e bateria dos coprodutores do discos, os bróders Zé Nigro e Curumin, deslizam pelos discos as percussões de Maurício Badê e Igor Caracas, os sopros de Ed Trombone, Luca Raele, Jorge Ceruto e Fernando Bastos, as teclas de Pepe Cisneros e Marcelo Jeneci, os baixos de Betão Aguiar e Gustavo Ruiz e a presença de Negro Leo, além dos compadres de Unidade João Leão e Klaus Sena.

O violão de Saulo é a batuta que rege este encontro, mas ele é desconstruído e reconstruído pelo próprio e seus compadres Curumin e Zé Nigro, com quem Saulo divide a produção do disco. As levadas rítmicas mudam constantemente: o samba rock torto que vira um baião no meio de “Ela Foi Ver a Lua”, o jazz livre do início de “Tapume” logo bate continência a uma marchinha pós-apocalíptica, a levada suave de “Praça de Guerra” que se desdobra em uma bad trip de discos tocados de trás pra frente, o refrão delicado de “Estrela D’Água” é recriado como um arrastão lek lóki puxado por Negro Leo.

Primeiro disco solo de Saulo Duarte, Avante Delírio é um deleite musical – por vezes bucólico, por outras festeiro – que visa dissipar o clima pesado que paira sobre o Brasil no ano de seu lançamento. É um disco solar, animado, feliz, em que Saulo assume o violão como principal parceiro, disposto a atravessar as piores intempéries para trazer boas novas em forma de canção.

Os instrumentos se entrelaçam e se sobrepõem; o ritmo e melodia sempre protagonistas, seja nos momentos mais incisivos (como em “Rebuliço”, “Flor do Sonho” e “Se Esqueça Não”), nos mais tensos (“As Luzes da Cidade”, “Praça de Guerra”, “Tapume” e “Ela Foi Ver a Lua”) e nos mais tranquilos, como “Estrela D’Água”, a lindíssima faixa-título e “Não Existe Resposta para ‘Eu Te Amo’”, estas duas talvez os melhores retratos do disco: enquanto a última ecoa samba-jazz, funk nacional, João Donato, Marcos Valle e até um ar de pagode romântico, “Avante Delírio” resume magistralmente o disco, ecoando o clima intimista e familiar de Gilberto Gil e Jorge Ben com uma leve bruma psicodélica no ar. Saulo Duarte está em casa.

Sacerdotisa do agora

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Depois de se reinventar em Oyá Tempo, Luiza Lian dá seu salto mais ousado e congela o tempo em seu ótimo Azul Moderno, a versão remix de um disco que nunca foi lançado, que chega nesta quinta às plataformas digitais. Ela me chamou para escrever o release do disco, que reproduzo abaixo.

Luiza Lian não espera o disco começar para colocar-se pronta: “Tempo que escorre a louça pra lavar / Cheiro de café, resíduo que vingou / Esse vapor que lento lambe a parede não preenche o espaço que ele desmanchou”. Ela canta antes de qualquer instrumento (seguida primeiro de um piano e depois de efeitos sobre este mesmo piano) e com poucas palavras cria um ambiente ao mesmo tempo familiar e fragmentado, pensativo e melancólico, que nos convida para um mergulho em suas crenças e descrenças no que considera o registro de um encerramento de ciclo.

Seu terceiro disco, Azul Moderno, canta o fim da primeira fase de sua carreira, iniciada com o disco homônimo de 2015, mas também encerra uma série de ciclos pessoais e profissionais. Ele começou a ser composto em uma viagem que Luiza fez com uns amigos num fim daquele mesmo ano para Vale do Matutu, no interior de Minas Gerais, quando começou a exercitar algumas canções que já vinha rascunhando ao lado da amiga escritora Leda Cartum, que também estava nesta virada de ano. Começaram brincando com alguns versos e refrões numa música que aos poucos se tornava longa – e que mais tarde daria origem a três músicas do futuro disco. Outras – como a faixa-título – surgiram das primeiras incursões da cantora e compositora ao violão. O lento processo de criação ainda incluiria o lançamento de alguns EPs para pavimentar o caminho para o segundo disco, até que um deles fugiu de controle.

Primeiro álbum-visual brasileiro, Oyá Tempo a princípio seria apenas um registro curto de transição, mas ganhou corpo, forma e vulto para além do que esperava. Estimulada por Tim Bernardes pa gravar pontos de umbanda, ideia que desenvolveu ao lado de outro amigo, o produtor Charles Tixier, que levou o disco para um lado eletrônico. O experimento cresceu para um conjunto de oito canções que a cantora e compositora transformou em segundo degrau de sua discografia, embora ele ainda não exista fisicamente. Oyá Tempo ganhou uma inesperada vida própria – a começar por seu show, cujo cenário-instalação era um vestido transparente que funcionava como tela de projeção e isolava Luiza sozinha no palco. O disco que virou filme que virou show elevou Luiza para um outro patamar, levando-a para os principais palcos e festivais independentes do Brasil.

Enquanto isso, Azul Moderno seguia um rumo à parte e por um instante poderia se transformar em um disco falado, com Luiza recitando poesias sobre bases instrumentais, mas logo ela se voltaria para as canções. Antes mesmo do lançamento de Oyá Tempo, em abril de 2017, ela havia se isolado no sítio do produtor Gui Jesus de Toledo ao lado de seus novos produtores, Charles Tixier (que tocou bateria, MPC, baixo synth e teclados) e Tim Bernardes (que tocou violão, baixo e fez arranjo de vozes e sopros), para começar a gravação do dito segundo disco, convidando velhos conhecidos para gravar outros instrumentos – Gabriel Basile, Filipe Nader, Guilherme D’Almeida, Gabriel Milliet e Tomás de Souza. Mas o crescimento de Oyá não apenas o transformou no segundo disco de fato da cantora, postergando o lançamento de Azul Moderno por tempo indefinido, como abriu uma possibilidade arrebatadora para Luiza e Charles: Azul Moderno ainda não estaria pronto, ele precisava ser desconstruído.
É quando começa a segunda fase do disco, ainda no final de 2017, que o transforma no álbum que agora conhecemos – Azul Moderno é o disco remix de um disco que nunca foi lançado (a versão “unmix”, como brincam os dois), canções picotadas e reestruturadas a partir de pedaços de si mesmas ou de outras canções de Luiza e samplers das gravações iniciais e de fontes indecifráveis: trilhas sonoras, videogames, discos de efeitos sonoros, música clássica; tudo se misturava na paleta de sons que Charles assumiu após a primeira versão do disco estar pronta.

O resultado é um disco deslumbrante. Moderno e meticuloso, Azul Moderno é um passo além de Oyá Tempo e as relações de Luiza com um passado ancestral parecem mais refletir sobre a influência deste passado no presente e futuro do que na própria história. Se seu segundo álbum espalhava-se por toda a história ao tentar encapsular todo o tempo num momento, o novo álbum é mais espacial que temporal e busca justamente este lugar imaginário que criamos a partir de nossas relações pessoais. Como família, amigos, amores, conhecidos e ídolos se misturam em uma ambientação mental que acaba delimitando nosso horizonte físico.

Sob a batuta do maestro Tixier, Luiza se abre para anjos e exorciza demônios, enquanto ela sampleia o próprio passado, ainda que não-factual – um passado imaginado, que não existiu de verdade (justamente o disco não-remixado). É nesta região imaginária que o disco se encontra, entre o nascer ainda escuro do dia e a zona do crepúsculo pouco antes da noite. Esse aspecto líquido, volátil e pouco estável permeia todo o disco como se Azul Moderno fosse uma fábula, um sonho, uma alucinação. Do mesmo jeito que não sabemos se ainda é dia ou se já é noite, não dá pra saber o que realmente está acontecendo por todo o disco – como se ela nos obrigasse a refletir o que é real e o que não é a partir da constatação da beleza (ou da ausência dela).

Não por acaso, o disco começa com a palavra “tempo” dita sem nenhum acompanhamento, enfatizando a voz de Luiza como o timbre que nos guia por essa viagem. Pelo caminho, violões cristalinos e pianos invertidos, cordas gigantescas e teclados à espreita, graves escancarados e beats furtivos, timbres orgânicos e sintéticos – tudo convive num imenso e absurdo país das maravilhas em que Luiza passeia curiosa e decidida na mesma medida. Azul Moderno é brasileiro e internacional, atual e perene, novo com gosto de antigo, provocando sensações estranhas ao contrapor opostos improváveis – do violão Jorge Ben que conduz o groove de “Notícias do Japão” e as curvas sinuosas de “Iarinhas” ao samba-reggae eletrônico “Sou Yaba”, do lamento trip hop de “Pomba Gira do Luar” à bossa-grime “Mil Mulheres”, passando pelo chillwave manhoso de “Geladeira”, o tecno-afoxé de “Vem Dizer Tchau”, a balada “Mira” (música em homenagem a artista Mira Schendel que conecta-se com a “boca do céu” de Ava Rocha) e a oração de despedida que é a faixa-título. Ela encerra o disco num tom ao mesmo tempo amargo (“me perdoe pelas palavras cruéis”) e esperançoso, que localiza-se “entre as estrelas em volta de Andrômeda e meu manto azul moderno”, recuperando o nome do disco de uma valsinha escritapela poeta Maria Damião há cem anos (“A Rainha Me Ordenou”). Luiza Lian está pronta.

O profeta do apocalipse

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O MC Edgar me chamou para escrever o release de seu primeiro álbum, Ultrassom, produzido pelo Pupilo – um discão, diga-se de passagem.

A transição que atravessamos nesta entrada de século não é única: são diferentes evoluções e transformações que se superpõem causando uma avassaladora sensação de caos, desconforto e paranoia. Não é apenas a mudança do analógico para o digital ou a chegada do novo milênio, nem só a questão ambiental, o mercado financeiro ou a globalização selvagem; a metamorfose do trabalho, o futuro da medicina, a inteligência artificial e questões sexuais e raciais que se impõem frente a paralisias políticas, econômicas e culturais que achatam expectativas e frustram sonhos.

Edgar surge como uma espécie de arauto avesso desta era incerta. Ele surgiu na paisagem da música brasileira como um rapper alienígena multicolorido que faz o próprio figurino a partir de objetos descartados, mas isso apenas resvala na superfície de sua complexidade. Sem residência fixa, o cantor de Guarulhos aprendeu a rimar sozinho, ainda adolescente, a partir de aulas de percussão que teve em sua cidade-natal, encaixando palavras e sílabas para imitar a batida de tambores e repiques, enquanto entendia a diferença entre gêneros e ritmos musicais.

O rap foi uma referência que veio com os amigos – ao mesmo tempo que a música eletrônica, especificamente o psy -, mas ouvia música nordestina através dos pais pernambucanos e discos de rock por influência do irmão. Mais que alienígena, Edgar é 100% terráqueo, embora pertença já a uma nova safra de seres que ainda habitarão este planeta.

E é uma safra essencialmente brasileira, um mashup de passado e futuro que alterna momentos de delírio e desespero, de dor e de diversão, de desejo e de desilusão. Edgar é o pós-homem cordial, o pós-malandro e o pós-otário que se encontram na mesma pessoa, felizes e tristes ao descobrir, ao mesmo tempo, que estavam sendo enganados. Sua alternância de realidades vai para além do dial do rádio ou do zapping na televisão, instrumentos analógicos que não acompanham a complexidade do novo século. A cada nova música Edgar abre centenas de abas de referências, cada uma delas com hiperlinks lógicos inacreditáveis: deuses, marcas, mitos e estatísticas que confirmam ou desmentem probabilidades cogitadas no verso anterior. E isso falando apenas de suas letras – que enfileiram versos emblemáticos como “o amor está preso em uma camisa de vênus, a realidade foi posta em uma camisa de força”, “o futuro é uma criança com medo de nós”, “colocamos nossos filhos em um coma induzido” e “nossas guerras estão gerando novos games”.

Sua musicalidade é quadrada, robótica e sintética, pouco se relaciona com as bases do rap comercial e se ancora no “Planet Rock” em que Afrika Bambaataa colocou os robôs do Kraftwerk para dançar break. Não por acaso seu produtor é o baterista Pupillo, um dos fundadores da Nação Zumbi, que enxergou no DNA de Edgar algo próximo à cena em que viu nascer, em sua cidade, um quarto de século antes. Diferente da Semana Modernista de 1922 e da Tropicália, tanto o mangue beat quanto o imaginário criado por Edgar fundem o intelectual e a selva, o asfalto e o morro, a cidade e o interior. Não há mais a dicotomia entre quem tem e quem não tem, quem é e quem não é. Tudo é uma coisa só – e a melhor tradução para isso talvez seja a própria cidade de São Paulo, não por acaso cidade-natal dos poucos convidados do disco: a cantora Céu, o MC Rodrigo Brandão e o tecladista Maurício Fleury, cada um presente com seu peso e seu pulso neste grande caos organizado ao redor do cérebro de Edgar.

Suas rimas logo descrevem imagens pouco prováveis na música brasileira: misturando ficção científica com jornalismo e poesia, Edgar recria clichês e frases de efeito em uma colcha de retalhos verbal que pinta distopias nada fáceis de digerir, jogando a realidade na cara do ouvinte com todo seu surrealismo fantástico. Nômade, morou em São Paulo, em Minas Gerais, no Sul e no Pernambuco – e para onde mais sua música o levar. Ele flerta com os extremos de tudo: o luxo e o lixo, o alto astral e a bad vibe, a tensão e o tesão, o perigo e a oportunidade. Seu primeiro disco, Ultrassom, é a imagem de algo que ainda não existe – mas há uma certeza intrínseca a essa (r)existência: ela é brasileira.

Maglore: Todas as Bandeiras

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Fui convidado pela banda Maglore para escrever sobre seu recém-lançado Todas as Bandeiras, seu disco mais coeso.

Maglore – Todas as Bandeiras

O século vinte e um parece estar virando o mundo do avesso. São tantas mudanças, rupturas, surpresas, sustos, tragédias e revoluções acontecendo simultaneamente que todos temos a nítida sensação de não estarmos entendendo nada, à medida em que vemos os referenciais que ajudaram a nos entender como gente desfazendo-se entre novos comportamentos, novas tecnologias e novas visões de mundo.

Essa sensação de despertencimento não é estranha à carreira do Maglore. Rock demais para quem gosta de música pop, pop demais para quem gosta de rock; líricos demais para quem gosta de peso e barulhentos demais para os mais poéticos, mainstream para os que não gostam de música comercial e underground para os que fazem pouco do mercado alternativo, o grupo baiano também encontra-se num limbo etário – é o irmão caçula de uma geração de artistas que se firmou nos últimos dez anos e é o irmão mais velho de uma nova geração de bandas que vem se estabelecendo de alguns anos para cá. Mas isso não desencoraja o público, cada vez maior e mais ávido pelas considerações levantadas pela banda em seus shows, em suas músicas, em seus discos.

E no início deste ano passou por uma turbulência interna que a obrigou a reinventar-se a partir da saída do baixista Rodrigo Damati, que deixou a banda sem atritos pouco antes da gravação do sucessor de III, o primeiro trabalho da banda como um trio. À sua saída, o líder e principal compositor da banda, o guitarrista e vocalista Teago Oliveira, achou que era hora da banda voltar a ser um quarteto, convocando o ex-integrante Lelo Brandão, o Lelão, para assumir a segunda guitarra e convidando o guitarrista mineiro radicado em São Paulo Lucas Oliveira, da banda Vitreaux, para assumir o baixo. A bateria, como sempre, ficou com Felipe Dieder.

O novo repertório já estava composto antes da mudança na formação, o que obrigou o grupo a reinventar-se musicalmente sobre as novas canções. Mas o que parecia um processo que poderia ser conturbado na verdade funcionou como um choque de realidade que fez a banda chegar a seu disco mais preciso e definitivo.

Todas as Bandeiras, seu quarto álbum, é o momento em que as indecisões anteriores parecem ter cessado para chegar ao ápice da própria sonoridade, melancólica e esperançosa ao mesmo tempo. É sua obra mais madura, mais autoral e até mesmo mais política, embora as bandeiras citadas no título não tenham vertente ideológica, falando sobre verdades e buscas pessoais do que falam sobre a política de fato – a individual.

Todas as Bandeiras abre com sua principal assinatura sonora: o casamento das guitarras de Teago e Lelão, senssentistas, cruas e quase sem efeitos de distorção, sendo que o vocalista empunha um instrumento de doze cordas. O timbre dos dois instrumentos é solar e inspirador, acalentando o ouvinte para as letras nada felizes do vocalista. “Aquela Força”, a primeira faixa, parceira de Teago com o mineiro Luiz Gabriel Lopes, da banda Graveola, fala de superação pessoal sem maniqueísmos simplistas, usando belas imagens para retratar a sensação que quer passar: “Conservar a força que faça crer que o futuro seja nosso amigo/ A mesma força que tem o grito do tigre quando corre perigo/ A fé e a força que a águia tem no alto quando vai mergulhar/ A força é essa.” Enquanto descreve este sentimento, a banda cresce em volume e peso até chegar aos versos que talvez resumam a sensação do álbum: “Você só vai saber vivendo/ Você só vai saber sendo”, canta, arrebatador, Teago.

É essa política individual que o grupo busca por todo o disco, seja na dançante faixa-título (“O tempo passa e o herói fica sozinho/ Mas em qual herói devo acreditar?”), na excelente “Clonazepam 2mg”, feita para a estrada (“O problema é o passado que bagunça a nossa visão e a noção de tempo e espaço”) ou na praiana “Você Me Deixa Legal”, com seus “uh-uhs” entre a Bahia e o Havaí. O onipresente timbre cristalino das guitarras inevitavelmente remete ao pós-punk mais melódico dos anos 80, a psicodelia dos anos 60 e a primeira surf music, mas também ecoa a guitarra baiana e a melodia elétrica dos Novos Baianos.

As deliciosas “Jogue Tudo Fora” e “Hoje Vou Sair” são irmãs conceituais e ambas falam de mudança – a primeira vira a mesa da vida e a segunda vira a mesa do dia. E até as tristes “Eu Consegui” (“eu consegui perder meu grande amor”) e “Quando Chove no Varal” (“O seu rosto tá sumindo…”) ganham ares de redenção, a primeira ao resvalar no breque do samba, a segunda nos ecos esperançosos dos acordes. “Calma” e “Valeu, Valeu!” encerram Todas as Bandeiras certas da missão cumprida.

Um trabalho multifacetado mas coeso, que contou apenas com dois agentes externos na gravação, repetindo a produção da dupla formada pelo guru do pop brasileiro deste século Rafael Ramos e o produtor – e único músico de fora da banda em Todas as Bandeiras – Leonardo Marques, os mesmos do álbum antecessor, no estúdio carioca Tambor. A mixagem ficou por conta de Otávio Carvalho, no estúdio Submarino Fantástico e a masterização é de Felipe Tichauer, feita no Redtraxx Music, na Flórida. A arte de Azevedo Lobo, que forma imagens a partir de cores diferentes, espalha-se pelas páginas do encarte e por sua capa, mostrando que diferentes tonalidades podem coexistir sem atrito. Um resumo da conexão perfeita encontrada pela banda no disco que consagra sua maturidade e abre um novo capítulo em sua saga. Os fãs, atentos, se identificam e agradecem.

Céu – Tropix

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A Céu me chamou pra escrever o release do disco novo dela, o inacreditável Tropix, disco que tenho ouvido sem parar há mais de um mês e que cada vez tenho mais certeza de que é seu melhor trabalho. Tropix é um desvio inusitado via pista de dança, um disco noturno e digital, gravado com um “power trio de teclado”, formado por Lucas Martins, Pupillo e Hervé Salters (do General Eletriks), estes dois últimos produtores do álbum. Ele ainda conta com cover de Fellini (“Chico Buarque Song”, que timing!), participações de Tulipa Ruiz e Pedro Sá, timbres sintéticos, harpeggiator e tamba, além de cordas inacreditáveis em sua reta final, três músicas incríveis. “Perfume do Invisível” é só um gostinho. Um dos grandes discos do ano, maior satisfação fazer essa apresentação que vem a seguir. O disco chega ao Spotify na sexta-feira.

Tropix

Céu brinca com beats. Debruçada sobre a luz do monitor, ela move o cursor de lá para cá, clicando e arrastando frases musicais traduzidas em gráficos horizontais. E por mais fluidos e quentes que sejam os sons que ela manipula, eles se traduzem em uma linguagem dura, reta, quadrada e fria. Graves encorpados, vocais sussurrados, ritmos malemolentes – todo calor humano desaparece quando visualizado por gráficos de programas de edição de áudio. Foi quando ela percebeu a constância do ritmo na sequência de picos de uma determinada onda sonora e um clique soou – dentro dela.

Foi a partir deste insight que ela começou a mais ousada reinvenção de sua carreira. Tropix é um disco sintético, noturno, reluzente. “Perfume do Invisível”, a faixa de abertura, começa com a cadência mole e vocais de apoio que remetem diretamente à faixa-título de seu segundo disco, Vagarosa. Mas logo em seguida entra a guitarra disco music e o beat de pista de dança. De repente ela se desvencilha das diferentes camadas orgânicas que compunham seu universo musical para entrar num mundo de timbres frios, linhas de baixos pontiagudas, viço robótico, ciclos repetitivos, eletrônica vintage.

Tropix é um mergulho neste universo de texturas artificiais que atravessa diferentes experimentos sônicos da segunda metade do século passado: o trip hop dos anos 90, a discoteca do final dos anos 70, o R&B dos anos 80, o casamento do hip hop com a música eletrônica. No entanto, não é uma viagem no tempo. O novo disco de Céu é um olhar do século 21 e traça uma genealogia pessoal de um mundo musical específico, um processo semelhante à viagem jamaicana feita em seu disco-irmão Vagarosa. Mas este era um disco que habitava o vasto e imponente cânone do reggae, e sua conexão com o sotaque brasileiro da musicalidade de Céu fazia um sentido sentimental lógico, devido à conexão entre as tradições musicais dos dois países.

Já este disco de 2016 é uma incógnita. Mais um desafio autoproposto como todos seus discos, Tropix é um salto num escuro que Céu sequer havia flertado anteriormente. E em vez de cercar-se diferentes músicos e produtores para lhe auxiliar nessa jornada, ela preferiu liderar trabalhar com a banda enxuta como a que vinha excursionando após o lançamento de seu DVD ao vivo, em 2014, com apenas três músicos. A cozinha deste grupo era a mesma que a acompanhou neste período, com Pupillo, o maestro do ritmo da Nação Zumbi, e o seu fiel escudeiro, o baixista Lucas Martins. Mas em vez da guitarra, Céu queria um power trio com teclado – e chamou o francês Hervé Salters, com quem já haviam tocado em outras oportunidades, para assumir esse papel.

Líder do grupo de funk eletrônico General Eletriks, Hervé tocou com Femi Kuti, Mayer Hawthorne e DJ Mehdi e passou por São Francisco na virada do século, quando começou a trabalhar com a cena de hip hop local (com nomes como Lyrics Born, Blackalicious e outros integrantes do coletivo Quannum). Sua sensibilidade sintética – e notória compulsão por colecionar teclados e instrumentos eletrônicos antigos – já lhe rendeu o rótulo de “o Ennio Morricone do século 21” e encaixou-se perfeitamente como na nau vislumbrada por ela. Os dois começaram a falar em trabalhar juntos depois que ela o convidou para tocar teclados em “Rainha” num show que fez em Berlim (onde Hervé mora atualmente) em novembro de 2014.

Porque por mais que Céu tenha Lucas, Pupilo e Hervé (os dois últimos produzindo o disco) como integrantes de seu time, é ela quem pilota essa nave. A cantora e compositora se estabeleceu como uma das principais vozes da atual música brasileira ao quebrar uma série de paradigmas relacionados ao papel da mulher neste cenário. Ela não é a musa inspiradora, nem intérprete à mercê de produtores e compositores nem sequer uma cantora cuja escola foi a bossa nova. Ela mesma compõe suas músicas, ela mesma escolhe seus rumos musicais e as fronteiras por onde pode desbravar e sua formação musical vai do jazz ao hip hop, passando pelo samba, reggae, música caribenha, africana e nordestina.

E a cada novo disco ela ampliava o território de abrangência. No homônimo disco de estreia, cozinhou suas influências musicais num peculiar e suave caldo sonoro, temperado principalmente com samba, reggae e música africana. No disco seguinte, Vagarosa, fez a nuvem da influência jamaicana dominar o ambiente e assim aumentar sua área de atuação. No cinematográfico Caravana Sereia Bloom – uma espécie de “road movie” de som -, fez os horizontes da estrada ampliarem ainda mais seus domínios sonoros. Mas por mais que sejam universos diferentes – e concêntricos -, os três primeiros discos têm um calor sonoro que se mistura com uma textura musical de leve aspereza, que alinha o sussurro aos estalos do vinil e amplificadores valvulados.

Daí a ousadia de Tropix. Nele Céu despede-se por completo daquela estética que funcionou como porto seguro em seus primeiros passos como artista. Ao fechar esse ciclo com o lançamento do DVD ao vivo, ela viu-se pronta para explorar os universos musicais que quisesse. E escolheu a noite néon, dos beats e timbres eletrônicos antigos, da pista de dança e do pulsar de ciclos repetitivos do harpeggiator.

Não é, no entanto, negação de seu passado – muito pelo contrário. Ao trazer essa nova sonoridade para sua paleta, ela consegue equilibrar perfeitamente sua sensibilidade neste cenário plástico e conseguimos perceber cada vez mais forte quem é a autora Céu, onde está esta cabeça musical para além das camadas estéticas que a envolvem. E assim o minimalismo eletrônico que abre “Arrastar-te-ei” enrola-se no contratempo da tamba inventada pelo baterista Helcio Milito (que atravessa outras parte do disco); o lirismo inicial de “Amor Pixelado” engata num groove funk seco e sintético e o tecnopop que abre “Etílica” funde-se à guitarra disco music de Pedro Sá (um dos poucos convidados do disco) para desembocar num caleidoscópio de vocais psicodélicos num dueto cantado e falado ao lado da outra convidada, a cantora e parceira Tulipa Ruiz.

E entre os timbres frios podemos ver cores de outros gêneros, como o xaxado eletrônico de “Minhas Bics”, o bolero futurista “Sangria” e o indie ambient “Chico Buarque’s Song”, versão do obscuro grupo alternativo paulistano Fellini, um universo lo-fi dos anos 80 recém-descoberto pela cantora. Outros momentos são puramente íntimos, como a levada caribenha 8-bit de “Varanda Suspensa” que recria os nostálgicos encontros com seu avô no litoral norte de São Paulo e cujos vocais ao final foram criados por sua filha Rosa Morena. A mesma Rosa serviu de inspiração para a música de ninar “A Menina e o Monstro”, composta quando Céu começou a perceber o susto que a filha levou quando começou a aprender a ler – ao perceber que tudo ao redor dela era texto.

O disco encerra com suas três faixas mais quentes, a sinuosa “Camadas”, o jazz funk “A Nave Vai” (composta por Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi) e a borbulhante “Rapsódia Brasilis”, as três ornadas por cordas tão alheias ao universo musical de Céu quanto os timbres eletrônicos que abrem Tropix, mostrando que ela está disposta a ir muito mais além. Em sua capa, pela primeira vez, Céu encara o mundo de frente, diferente do olhar tímido do primeiro, do perfil absorto do segundo e do retrato distante do terceiro. Em Tropix ela nos olha fixamente, sem ter medo de mostrar que sabe que já está em um novo estágio – e, mais do que nunca, é ela quem decide isso.

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Taí o disco novo da Bárbara Eugenia

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O ótimo Frou Frou, terceiro disco da banda, junta-se à excelente safra de discos brasileiros desta primavera de 2015 (que também inclui o disco novo da Elza Soares, o segundo disco do Ogi, o novo dos Supercordas e o terceiro da Karina Buhr). Dá pra baixar o disco de graça no site dela, onde ela também postou o release que ela me chamou pra escrever, que reproduzo a seguir.

2015 é um ano tenso, turbulento, agressivo. Polaridades disparam em radicais opostos para chocar-se de frente. Tudo está em xeque: comportamentos, ideologias, gêneros, classes sociais, estéticas, pontos de vista. O ano é uma catarse de emoções e elas vêm intensas, contraditórias, díspares, em bando.

Mas uma virada de bateria corta o horizonte sonoro, passeando pelas peças de seu instrumento numa lenta e didática virada que ao mesmo tempo em que testa a sonoridade de cada tambor e anuncia a suspensão da realidade para um anúncio importante, como um juiz da realidade que apita “tempo” para que possamos prestar atenção em um detalhe. Ao concluir no bumbo, a virada passa a contar o tempo num lento e hipnótico compasso bate-estaca em câmera lenta, perseguido por um baixo cúmplice e cordas dramáticas, que funcionam como base para um riff discreto e reverente, que reforçam o pedido de atenção exigido pelo ritmo com doses de elegância e reverência.

Bárbara Eugenia surge solene e séria, como se dispusesse a se tornar arauta deste ano turbulento. “Nesse tumulto de emoções”, canta quase conversando, antes de mudar drasticamente o ponto de vista do ouvinte, “que se chama ‘eu’, quero uma liteira que me carregue pra longe do meu coração para mantê-lo hermeticamente fechado, isolado da dor, imune. ”

A tensão começa a ser dissipada como uma manteiga cortada por uma faca quente – a guitarra que acaricia arabescos entre a surf music e o western spaghetti, pista de pouso para um teclado que repousa, a cada verso, acordes de sonho – baixo e bateria, seguem marcando o tempo e determinando o pulso marcial do início da canção que abre o terceiro disco de Bárbara.

“Acontece que não sei viver à margem. Prefiro ser assim – amando, sofrendo, gozando a vida de verdade”, Barbara segue implacável como se rogasse uma praga almodovariana sobre si mesma, aos poucos vai baixando a guarda, ao mesmo tempo em que o ritmo vai deixando a seriedade de lado para começar a instigar a dança – e ela mesma vai anuncia que cede à própria fragilidade: “Tentei fugir, fingir que nada se passava. Inevitável – essa amizade foi longe demais” – ela repete a última frase vocalizando as vogais e cedendo a um drama teatral que se entrega por inteiro quando o baixo se pronuncia em primeiro plano, como se acendesse luzes coloridas traduzidas em cordas de tom épico girando ao redor de um muquifo escuro que segundos antes era feio, forte e formal como um pub de filme policial.

“E quanto mais eu me aproximo, mais colada eu tô”, Barbara atira seu vocal à pista de dança e nos recebe em um delírio brasileiro de disco music, tecendo uma ponte entre a música pop e a música popular brasileira que foi abalada pelo surgimento da geração rock dos anos 80.

“Vidrada no teu sorriso com a cara de besta que sou” – ela canta o título da primeira canção – “Besta” – de forma quase jocosa, tirando toda a pseudosseriedade do início da faixa e exorcizando completamente as tensões do ano de seu lançamento. “Besta” é a melhor introdução a Frou Frou, um disco fútil e volúvel à primeira vista, que esconde exatamente essa necessidade de criar um hiato ou um aposto que consiga nos isolar da enxurrada de animosidade que convivemos diariamente. Bárbara Eugenia vem elegante como um trocadilho dadaísta, mas sua raiz é passional, quente, latina, novelesca. Ela abre uma fenda interdimensional para um universo minúsculo, um inferninho discothèque abrasileirado que daria continuidade à casa noturna carioca Noites Tropicais ao misturar as atmosferas de um Studio 54 à brasileira com todo o espectro emocional de programas de calouros e da Discoteca do Chacrinha nos anos 80. “Eu bem que sabia que isso era uma cilada”, ela confessa num momento de pausa da canção, “eu tinha certeza, mas adoro uma roubada” – e aí entra um sax rasgando tudo, tão clichê, autorreferente e eficaz quanto os “uh uhs” que fazem a canção retomar o tom solene inicial. Mas aí já era. Toda pose foi desfeita e o que parecia arrogância era só a própria insegurança esparramada em um comentário irônico e sério sobre este 2015. Com um risinho no canto da boca, piscando discretamente um dos olhos, ela nos pede um favor: “Menos, galera.”

A primeira metade do disco – e algumas faixas da segunda metade – traz outros exemplos desse campo de força criado ao redor de uma pseudofutilidade. “Vou Ficar Maluca” parece ecoar “Penny Lane” ironicamente, mas o groove puxado pelo piano como o de “Modern Love” nos devolve à pista de dança do início do disco. Prince e Debbie Harry se encontram num subúrbio brasileiro em “Pra Te Atazanar”, dobradinha com o arisco Rafael Castro (que também atravessa 2015 em fase dance) que nos dá uma explicação impossível de ser rebatida: “Por quê? Porque sim. Porque eu cismei com você. Por quê? Porque sim. Porque eu pirei, ” enquanto os dois nos levam madrugada adentro aos limites de uma relação afetada e paranoica. Mais adiante ela derrete-se blueseira cabaret no pé na buda de “Ai, Doeu!” que parafraseia Lulu Santos (“Tudo passa, tudo sempre passará”) bem temperada de órgãos elétricos, meio como os blues de Paul McCartney, que misturavam os sentimentos mistos das dores de cotovelo de Wanderléa com o andamento pesado da banda de Janis Joplin.

“Recomeçar”, composta pelo líder do Cidadão Instigado, o guitarrista Fernando Catatau, talvez seja um dos grandes momentos de Frou Frou. Bárbara já conhecia a canção desde antes do lançamento do disco Uhuuu, que a banda cearense lançou em 2009, e ao ver que ela não havia entrado nem naquele disco nem no Fortaleza, lançado este ano, chamou a responsabilidade para si e gravou uma canção romântica perfeita para ser tocada nas rádios brasileiras dos anos 70 e 80, uma música que Roberto Carlos, Fagner e Odair José provavelmente gostariam de tê-la escrito. Mesmo com seus “papapa” e “tchururu” próprios do pop brasileiro, “Recomeçar” também passeia pela pista de dança que aos poucos vai tomando conta do disco em um breque que aponta para os momentos disco music do disco The Wall do Pink Floyd. “Vamos parar algum momento pra recomeçar”, lamenta e confessa uma das músicas mais firmes de Fernando Catatau, “partir do princípio de quando nosso olhar se encontrou. ”

O ponto de meditação “Para Curar o Coração” reúne comadres – Andreia Dias, Blubell, Andrea Merkel, Claudia Dorei e Naná Rizzini – para repetir uma frase em português entreouvida por um acaso num mantra cantado em tibetano – e funciona como uma vinheta de transição para a segunda metade do disco, que deixa seu lado hedonista e porraloca em segundo plano para entrar numa internalização a respeito dos próprios sentimentos.

Como é o caso de outro ponto alto do disco, a delicada “Ouvi Dizer”, composta com o compositor Peri Pane – que faz um dueto com Bárbara na gravação – e o poeta arrudA, que contrapõe Pasárgada e Atlântida como ideais de utopias coletivas, refletindo sobre sua efemeridade num arranjo quase oriental. A versão para “Cama”, de Tatá Aeroplano, outro velho conhecido da cantora, assume outro holofote do disco, ao levar a canção de amor impulsivo e obsessivo naquele limite entre o hard rock e o rock progressivo, puxando a eletricidade no talo para amplificar ainda mais a birra original da música. Como na música de Catatau, Bárbara encarna o protagonista originalmente masculino da canção sem o menor estranhamento, trazendo completamente as músicas para o coração feminino.

“Doppelganger Love”, a primeira música composta em inglês do disco, retoma o tom dançante e aparentemente fútil do disco, chacoalhando-se retilínea entre a new wave e o pós-punk, a Gang 90 e o Gang of Four. A beatlesca “Tudo Aqui” equilibra as duas metades do disco à medida em que ele vai chegando perto do final. A faixa ecoa o trabalho anterior de Bárbara – o subestimado duo em inglês Aurora, que gravou ao lado de Fernando “Chankas” Cappi, do Hurtmold – e foi a primeira canção que ela compôs na guitarra, logo que começou a aprender a tocar o instrumento, uma mudança nas apresentações ao vivo.

A praiana “Só Quero Seu Amor” – com o cantor Pélico fazendo backing vocal ao lado dos outros integrantes de sua banda – aos poucos vai fazendo o sol do disco se pôr, depois de apresentar-se com um riff de guitarra glam rock. A sonhadora “Baby”, também em inglês e levada no ukulele, antecipa uma noite leve e tranquila, completamente diferente daquela em que começamos o disco. O disco termina com a música-tema, uma faixa instrumental que ela compôs em Lumiar para um pinheiro chamado Carvalhão (pois é). “Frou Frou” encerra o disco que batiza da forma mais sessão da tarde possível, liberando a banda que a acompanha para farrear à vontade, com vocais divididos com Tatá Aeroplano.

Esta é formada essencialmente pelo guitarrista Davi Bernardo, o baixista Jesus Sanchez e o baterista Clayton Martin, que coproduziu o disco ao lado de Bárbara, sugerindo instrumentos, virando músicas do avesso e compondo riffs. Ao redor dos três, um contingente de músicos de primeira desfila pelas faixas do disco – do piano de Dudu Tsuda ao minimoog do Astronauta Pinguim, passando pelos teclados de Pedro Pelotas, João Leão, André Whoong e Dustan Gallas, o violão de Regis Damasceno, o sax de Dharma Samu e o baixo de Diogo Valentino.

Um disco leve e alto astral, que funciona como um refúgio para o excesso de tensão deste ano.

Uma brecha aberta com gosto, que nos convida para a fuga. Siga aquela garota!