Afrofuturismo no Brasil

afrofuturismo2015

A ficção científica e a cultura negra parecem dois movimentos paralelos, mas em diversos momentos estas duas vertentes se encontraram gerando algumas das obras mais inspiradoras e malucaças do último século. É possível traçar um inusitado paralelo entre a história da cultura africana e contos futuristas e viagens siderais, visto que o aprisionamento e sequestro de populações inteiras na África para o trabalho escravo no continente americano abre paralelos bem realistas com as abduções extraterrestre e o existencialismo robô. Estas conexões foram celebradas por autores tão diferentes quanto Lee Perry, George Clinton e Sun Ra, que exploram possibilidades narrativas inéditas que, olhadas em perspectivam, ganham o nome de afrofuturismo, vertente temática que explora a fusão entre estes dois universos que já existe há pelo menos vinte anos e que agora ganha uma mostra dedicada ao tema no Brasil, que encerra sua programação neste dia 2 de dezembro. Conversei com a Kênia Freitas, jornalista, professora e pesquisadora de comunicação capixaba que atualmente reside em Brasília e é curadora da Mostra Afrofuturismo, sobre o tema (ela também apontou 10 pontos de partida para quem quiser se enveredar no tema neste post).

Explique o conceito de afrofuturismo e seus desdobramentos na cultura atual.
Afrofuturismo é um movimento estético, político e crítico plural e multifacetado, tendo como ponto em comum uma narrativa especulativa, alternativa e fantástica para as experiências das populações negras – de todo o mundo – no passado, no presente e no futuro. As obras são influenciadas por elementos da ficção especulativa – ou seja, da ficção científica, do hiperrealismo, da fantasia, das diversas mitologias de origem africana.
O Afrofuturismo na cultura atual é fundamental por reivindicar para os negros e negras a narrativa das suas histórias. É um processo que começa pela imaginação de novos futuros, mas que contamina as narrativas do presente e do passado. Pois a partir do momento que é possível assumir a autonomia dos discursos do futuro, é possível travar as lutas do presente – do planejamento e contestação desse futuro. É algo que passa pela arte, pelo lúdico, pela fantasia – o que desloca a luta para outros campos. E, ao mesmo tempo, as questões mais importantes para os afrodescendentes perpassam essas narrativas de forma cortante. Para ficarmos em um exemplo apenas nos filmes dessa mostra: a questão da violência policial e estatal contra os negros é o mote de filmes brasileiros (Branco Sai, Preto Fica e Rapsódia para um Homem Negro), ingleses (Bem-vindo ao Terrordome e Robôs de Brixton) e norte-americanos (Drylongso). Esses filmes vão tratar essa questão a partir de estratégias e tipos de ficção especulativa variados, mas todos estão plenamente dentro de um dos problemas mais vitais para as populações negras dos grandes centros.

Fale sobre a Mostra – como ela começou, de onde veio a ideia, como começou o seu contato com o tema, quem mais está envolvido.
A ideia da mostra surgiu em 2013, quando ouvi falar do termo pela primeira vez. Lembro que estava ouvindo um podcast que fazia uma discussão sobre música eletrônica – mais especificamente, sobre como o techno de Detroit misturava elementos da cidade, como um parque industrial decadente – quase um cenário sci-fi, pós-apocalíptico -, com a criação de uma música que apontava para um futuro distópico ou extra-terreno para a população da metrópole. O programa também falava de como o techno nasce totalmente enraizado na cultura negra, tanto na África, quanto nos EUA e como essa influência ficou esquecida em alguns aspectos da música eletrônica depois.
A partir daí veio uma grande curiosidade sobre o Afrofuturismo. Pesquisando o tema, surgiu a ideia de buscar filmes que falassem dos artistas afrofuturistas ou que tivessem uma construção ancorada nessa estética. Essa ideia de partir de presentes em que os negros encontram-se em condições de pobreza, discriminação e violência estatal para imaginar futuros distópicos, fantásticos e subversivos foi o que me encantou no tema, pois é uma confluência muito potente entre arte e política. E foi a partir dela que pensamos a escolha dos filmes.
O projeto foi construído em parceria com a Thalita Oliveira que é coordenadora geral da Mostra e foi realizada pela Provisório Permanente Produções, com um patrocínio do edital de ocupação da Caixa Cultural. No processo, sobretudo durante a realização, muita gente chegou junto. O debate teve a presença da Egrégora Afrofuturista – que é um coletivo afrofuturista latino-americano- e do Coletivo Sistema Negro, aqui de SP. É muito interessante ver como o tema estava sendo pesquisado e discutido por pessoas e coletivos diversos e como de alguma forma o evento catalisou alguns desses encontros.

Quais os desafios da edição realizada este ano?
Talvez o mais complicado tenho sido apresentar um tema pouco conhecido no Brasil. Embora um grupo muito maior de pessoas do que a gente imaginava conhecessem o tema, o Afrofuturismo ainda é um movimento pouco conhecido no Brasil.
E um outro desafio foi o de juntar os coletivos e pessoas que já estavam pensando no assunto. E nesse aspecto acredito que a realização da mostra e sobretudo do debate no dia 28 de novembro tenho sido muito importante. E o desafio que fica é o de continuar e espalhar o debate.

Como você continua a discussão a partir da Mostra? Há grupos de discussão para interessados?
A princípio vamos manter a página no Facebook e o site ativos. Eles acabaram sendo um ponto inicial de conversa e concentraram as muitas pessoas interessadas no tema. A partir desses espaços – além ou através- outros grupos devem se consolidar. Um outro espaço de discussão do qual continuarei participando é o da Egrégora Afrofuturista. A expectativa é que se realize um encontro aberto a todos e todas no início do ano que vem.

Que outras manifestações de Afrofuturismo são realizadas no Brasil?
Aqui a gente corre sempre o risco de ser um pouco injusto e deixar de citar realizações bacanas, porém pouco conhecidas por serem independentes. De certa forma, negras e negros que estejam produzindo música, literatura, cinema, quadrinhos, artes visuais e plásticas que pensem as suas experiências a partir desse viés da ficção especulativa estão fazendo manifestações afrofuturistas. Acho que um trabalho daqui para frente é tentar mapear e juntar essas manifestações em encontros, exposições, livros, etc. Espero que surjam vários eventos e projetos nesses sentido.

Quando será o próximo evento?
Ainda não temos previsão, mas esperamos que a Mostra de filmes possa ser realizada em outras cidades além de São Paulo. Para o ano que vem, estamos vendo a viabilidade de levar os filmes para o Rio de Janeiro, Vitória e Salvador.

Top 10 Afrofuturismo

Sun Ra 6

Pedi para que a Kênia Freitas, curadora da Mostra Afrofuturismo (que entrevistei aqui), que termina neste dia 2 de dezembro em São Paulo, para apontar 10 autores e obras que possam ajudar a quem quiser se aprofundar neste conceito scifi. A lista que ela mandou foi a seguinte:

Sun Ra
É um compositor, líder de banda, pianista, performático, poeta, filósofo. Nos anos 1940, ele adota esse nome – que tem uma inspiração na mitologia egípcia – e sua persona de enviado de Saturno para o planeta Terra para tentar salvar a humanidade – ou que fosse possível dela – pela música. Além de musicalmente genial a frente de sua “arkestra” intergaláctica, Sun Ra é um afrofuturista que nunca abandona a sua fabulação e passa a criar uma filosofia cosmológica bastante complexa – chegando a ministrar um curso em Berkeley em 1971, sobre essa visão cosmológica e musical da vida. Além da imensa discografia, recomendo muito dois filmes sobre ele. O primeiro é o Space is the Place, no qual Ra chega a co-assinar o roteiro. O filme é uma mistura de filme militante, blaxploitation, viagem cosmológica e muitas performances de Sun Ra e da sua “arkestra”. O segundo é o documentário Sun Ra: Joyful Noise, que vai partir de entrevistas com Ra e os membros da banda e do registro de várias performances ao vivo.

George Clinton
Ainda nos EUA, mas em uma vertente musical bastante diversa tem o George Clinton. Ele vai ser o líder entre os anos 1970 e início dos 1980 do Parliament e Funkadelic. Talvez o ápice da inspiração afrofuturista de Clinton esteja no sensacional Mothership Connection, do Parliament. Da capa do disco – aquela nave espacial com um afronauta praticamente pulando para fora -, passando pelas roupas e performances nos shows e até as letras das músicas, é um funk inovador e espacial. A ideia é totalmente afrofuturista: colocar os negros norte-americanos em locais em que a sociedade não esperaria que eles estivessem. E em 1975, o espaço era um desses lugares!

Lee Scratch Perry
Ainda como precursor do Afrofuturismo, a obra e a persona do jamaicano Lee Scratch Perry são essenciais. Oficialmente é possível que Perry nunca tenha alegado vir do espaço, mas a criação afrofuturista está impregnada no trabalho dele. Da criação da “black ark”, o estúdio e casa onde ele produziu e criou vários reggaes e dubs essenciais, a forma de se vestir e a perfomance que ele adquire ao longo dos anos. Perry também sempre cita elementos de criação das mitologias africanas (sobretudo da Etiópia) na sua filosofia, discurso e arte.

Janelle Monae
Ainda na música, mas agora entrando no contemporâneo, a obra da Janelle Monae é fundamental para quem quiser entender o Afrofuturismo atual. A artista pop tem um alter-ego androide chamada “Cindi Mayweather”. Na obra de Monae falar como uma figura ciborgue é falar como um “outro”, como um ser estranho e não totalmente aceito. As criações da cantora misturam assim as temáticas das minorias discriminadas, não aceitas, marginais à uma visão futurística tecnológica, na qual os seres humanos estarão destinados a conviver com esses seres robóticos -e mais uma vez lidar com os seus preconceitos e falta de alteridade com o diferente.

Octavia Butler e Samuel R. Delany
A Butler e o Delany são dois escritores negros de ficção científica norte-americanos. Ambos tem obras conceituadas e fundamentais nesse gênero e nenhum dos dois está traduzido no Brasil, apesar da relevância da obra de ambos. Para os que podem se arriscar nas leituras em inglês, recomendamos da Octavia Butler o livro Kindred (1979), que narra a história de uma mulher negra da atualidade que precisa viajar para o sul dos EUA no passado e salvar a vida de um ancestral branco detentor de escravos – e assim salvar a própria vida. Do Samuel R. Delany, o desafio é ler a novela pós-apocalíptica Dhalgren.

Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture – Ytasha Womack
Agora uma sugestão mais acadêmica-ensaísta é o livro da Ytasha Womack sobre Afrofuturismo. A autora apresenta o conceito e vários artistas afrofuturistas – do passado e do presente -, sempre partindo da sua própria experiência. O livro ainda não foi publicado no Brasil, mas a autora cedeu o primeiro capítulo da obra para ser traduzido e publicado no catálogo da mostra. As edições impressas foram distribuídas gratuitamente para o público presente e é possível ler o texto também na versão digital (PDF).

Kodwo Eshun
O trabalho do professor da Universidade Goldsmiths em Londres Kodwo Eshun vale ser acompanhado de perto por quem estiver interessado em uma pesquisa mais acadêmica do tema. As pesquisas de Eshun tratam sobre cibercultura, ficção científica e música, relacionando esses temas a diáspora africana – em suma, tudo o que compõe a ideia de Afrofuturismo. Eshun também trabalha como criador visual junto com o coletivo The Otolith Group. O artigo do autor “Mais considerações sobre o Afrofuturismo” também foi cedido para o catálogo.

Afronautas – Frances Bodomo
Agora vamos falar de alguns filmes. Esse curta da cineasta norte-americana Frances Bodomo é um dos destaques dentro dessa leva contemporânea de produção afrofuturista. Ele narra de forma poética um fato pitoresco e histórico, que foi a tentativa de construção de um programa espacial no Zâmbia no final do anos 1960. É o sonho da conquista do espaço para quem a Terra já não é mais uma alternativa.

Pumzi – Wanuri Kahiu
É um curta feito por uma cineasta do Quênia. A narrativa se passa em um mundo pós-apocalíptico em que a escassez de água extinguiu a vida acima do solo. O curta segue a busca de uma cientista na investigação sobre a possibilidade de germinação de sementes para além dos limites da cultura repressiva de Nairobi subterrâneo. Mantém a características de muitas narrativas de ficção científica de crítica do poder instituído e das tentativas de vencê-lo pela colaboração entre as pessoas marginalizadas e sacrifício da heroína em prol de um sonho.

Born in Flames
O longa da diretora norte-americana Lizzie Borden talvez seja um dos mais inspiradores e atuais (apesar de já ter os seus mais dos que 30 anos). Ele parte de um futuro pós-revolução socialista nos EUA, em que se houveram transformações econômicas, as desigualdades de gênero e raciais continuam evidentes e ignoradas pelo governo revolucionário instituído. Um exército de mulheres (sobretudo de mulheres negras e lésbicas) vai se organizar (através de pequenos grupos em rede) para orquestrar uma radicalização da revolução, em busca de igualdade.