A era de ouro do videoclipe

, por Alexandre Matias

Algumas palavras sobre TV e internet

No ano passado, eu apresentei uma palestra ao lado do Fred Leal em que falamos da importância para o mercado de cultura e de entretenimento de tratar o antigo “consumidor final”, um sujeito que basicamente consumia obras e conceitos criados por um pequeno grupo de produtores de conteúdo (que, rotinamente, nos acostumamos a chamar de “mídia”), como agente deste mercado e não como mero receptor. A produção colaborativa utópica de veículos como a Wikipedia ou o sistema de recomendação de livros da loja online Amazon se misturava com a versão eletrônica para o fenômeno da autopublicação e tudo indicava que as pessoas queriam participar de alguma forma do processo que, também por rotina, nos acostumamos a chamar de “mercado”.

2006 assistiu à consolidação desta tendência sob o rótulo de Web 2.0 – um conceito que prega que a internet não deva ser um fim em si mesmo e sim uma plataforma para ações coletivas. Os inúmeros exemplos que surgiram desde então podem ser encontrados até mesmo fora da web – como a revista +Você da editora Abril e o programa Jornal da Massa do apresentador Ratinho –, e culminou com um dos títulos máximos da velha mídia – a “Pessoa do Ano” da revista “Time” – dado, em 2006, para “Você” – justamente enfatizando o papel do antigo consumidor final como agente do mercado, em algum nível.

Mas uma coisa era antever o que vinha sendo dourado lentamente em anos de maturidade da web. A revolução “Web 2.0” não foi algo que aconteceu da noite para o dia – pelo contrário, seus passos podem ser estabelecidos com a ascensão do MP3, o sucesso do Blogger, de comunidades virtuais como MySpace e Orkut e inúmeros outros exemplos. Isso era previsível – as pessoas estavam querendo mostrar o que fazem, se expor, criar em público, inventar moda, aparecer e participar. Era claro que essa movimentação ia se organizar em uma esfera mais ampla, como a Web 2.0, e talvez até ainda mais ampla – como quando este movimento começar a andar de mãos dadas com outras atividades de natureza semelhante, como o voluntariado, a ecologia e o ativismo político. Como eu disse, isso era previsível.

Mas o ano passado não foi o ano da web 2.0, ano passado foi o ano do YouTube.

O site foi criado em fevereiro de 2005 e lançado oficialmente seis meses depois, começou a ganhar notoriedade ao fim daquele ano e em abril de 2006 tornou-se efetivamente um fenômeno. Os números são manjados, mas vale sublinhá-los de novo: mais de 200 milhões de vídeos assistidos diariamente, quase 100 mil novos vídeos uploadados todos os dias e quase meio bilhão de visitantes por mês – fora o 1.6 bilhão de dólares que o Google pagou para comprá-lo em novembro de 2006. Definitivamente, não é pouca coisa.

O vídeo online já vinha dando sinais de Next Big Thing, mesmo porque o aumento nas velocidades dos processadores de computador pessoal e das conexões de banda larga aos poucos ia tornando possível assistir a vídeos na internet. Lembre-se que estou me referindo a uma realidade que vai mudando muito rápido e nos esquecemos de alguns detalhes – como, por exemplo, que um MP3, na virada do século, levava mais tempo para ser baixado do que para ser ouvido. Mas, nesta escalada tecnológica, era meio inevitável que, depois da música e dos videogames, a próxima mídia a ser fagocitada pela rede seria o vídeo.

Mas o YouTube foi além disso. Embora o compartilhamento de vídeos já estivesse sendo realizado de diversas formas, seja com filmes inteiros sendo baixados com alta qualidade via Torrent, em seções de vídeo criadas em sites de empresas ou formadores de opinião, em parcos e pioneiros videocasts e videologs e em arquivos de vídeo enviados por email, o ovo de Colombo que o YouTube colocou em pé foi trazer esta nova tendência de mídia e tecnologia para o hemisfério das redes sociais e dos softwares online.

Ao embutir um programa no próprio site – que não requeresse um outro tipo de player pré-instalado no computador do usuário, como Quicktime ou Windows Media Player – o YouTube se aproveitou de um novidade na versão número 8 do Flash, que trazia um codec que possibilitava embutir vídeo em qualquer arquivo lido pelo aplicativo – que se executa como um plug-in do navegador da web e tornou simples assistir a um arquivo de vídeo online. Ao fazer isso, o YouTube também é uma nova forma de executar um programa de computador, sem que ele esteja instalado em seu HD – uma tendência cada vez mais presente na indústria de softwares.

E ao incluir o elemento rede social como outro item apresentado, o YouTube criou rankings e comentários, perfis de usuários e ética de funcionamento, fazendo com que o próprio site começasse a se auto-regular pela freqüência e participação de seus visitantes. É quando ele colidiu com a tendência da web 2.0 e as pessoas começam a participar, contribuindo para aparecer ou para mostrar aquilo que elas quisessem mostrar para os outros.

Em paralelo a isso, equipamentos de filmagem começam a se tornar corriqueiros, seja em câmeras fotográficas digitais, handycams cada vez mais simples, celulares com a função câmera de vídeo e o barateamento do hardware de vídeo digital como um todo. A explosão cultural do YouTube vem do fato de seu conteúdo liberar o espectador da grade de televisão tradicional, permitir acesso a todo um acervo até então sem canal para vazão (parados em acervos pessoais, produções independentes e arquivos de emissoras de TV) e, finalmente, a se autopublicar.

Não existe número preciso sobre estes dados, mas é claro que a maior parte do conteúdo do YouTube atualmente é composta por vídeos que infringem direitos autorais, sendo retransmitidos sem a autorização de seus produtores originais. Mas uma parte menor – embora cada vez mais representativa – de todos os arquivos disponibilizados pelos usuários do site é composta por produção autoral. Contudo, devido à recente facilidade em se filmar esta pequena parte foi tomada por uma produção caseira que parecia consolidar a tendência participativa da web 2.0 como uma avalanche de filmes feitos por pessoas que não sabiam nada de audiovisual.

Comparando o fenômeno YouTube a outro fenômeno digital recente, o Napster, é possível descobrir algumas semelhanças. Afinal, ambos lidam com uma nova forma de distribuição de arquivos digitalizados cujo conteúdo era produzido e ministrado por um pequeno número de empresas. Ambos trabalham na zona cinzenta do direito autoral, aquela em que uns advogam contra a pirataria e outras a favor de novas oportunidades de trabalho. Só que o Napster encontrou não apenas uma geração, mas todo um cânone de gerações e gerações de autopublicadores, pronto para se aproveitar de seu sucesso, ao passo que o YouTube começa a criar este cânone e montar essa rede a partir de sua própria existência, ao mesmo tempo em que nutre toda uma nova geração de produtores de vídeo.

E que cânone era esse, encontrado pelo Napster? A popularização do aplicativo inventado por Shawn Fenning estabeleceu o arquivo digital MP3 como uma nova forma de se consumir música. Os consumidores de música foram os primeiros a adotar o MP3 Um dos primeiros beneficiários do formato foram as gravadoras independentes e o mercado indie como um todo. Artistas que já sabiam como se produzia um disco e empresários buscando caminhos alternativos para exposição de seus artistas perceberam que a web poderia ser uma aliada em vez de uma vilã. E assim começaram a trilhar o caminho para o mercado de música online que hoje, mesmo com a troca de arquivos via programas de compartilhamento ainda livre e desenfreada, consegue faturar quase o mesmo que o antigo comércio de música tradicional, ainda em decadência – pelo menos nos EUA, o maior mercado do mundo.

Por isso, a rede criada após o nascimento de programas clones do Napster já existia e sabia como se vender na rede, fazendo a festa para novos agente deste novo mercado de música como o pioneiro MP3.com, o MySpace e outros servidores de MP3s, que, instantaneamente tinham conteúdo pronto para ser veiculado. Quase todos os novos nomes revelados pela indústria da música no último ano – um conceito mais amplo que a indústria do disco, perceba – têm seu histórico embasado por uma geração de músicos e empresários que já haviam entendido a internet mais do que como parceira, e sim veículo-chave na distribuição e divulgação de seus trabalhos – Lily Alen, Artic Monkeys, Cansei de Ser Sexy, Gnarls Barkley.

O mesmo não aconteceu quando o YouTube estourou, porque, ao contrário da indústria musical, a indústria do audiovisual ainda não tinha se firmado num nível mais caseiro e menos profissional. Apesar de apregoado em diferentes eras da história do cinema (Cinema Novo, Dogma 95, “El Mariachi”, novo “Star Wars”) e da televisão (videocassetadas, Jackass), o “faça-você-mesmo” do audiovisual ainda não havia acontecido – ele começou a acontecer agora. O punk rock do vídeo são os filmes caseiros e toscos produzidos por pessoas sem experiência anterior na área. Musicalmente, imagine se a popularização do MP3 liberasse não um mercado independente estruturado e em movimento, mas a produção musical de pessoas que nunca tocaram nada – nem um instrumento, nem um disco. Colidindo o sucesso do vídeo mal-feito com a idéia da web 2.0 e logo a idéia da produção coletiva e auto-gerível começou a ser confundida com vídeos sem edição e de caráter pessoal.

Muito por conta do vídeo – embora blogs e fotologs já antecipassem essa tendência – a autopublicação foi percebida como uma opção por uma estética amadora, caseira e barata, partindo do pressuposto que as pessoas não sabem fazer coisas que apenas profissionais gabaritados conseguem fazer. Mas parte destes ditos amadores não são tão amadores assim. Apesar de grande parte da produção autoral no YouTube ser de natureza não-profissional, isso foi assimilado como uma estética por profissionais que encontraram, no site, um canal para expor seu trabalho.

São os Pro-Am, Professional-Amateurs, para usar um termo cunhado pelos ingleses Charles Leadbetter e Paul Miller no livro “The Pro-Am Revolution”, de 2004. O livro não se refere ao mercado de entretenimento e sim às razões do sucesso de iniciativas coletivas como a Wikipedia, mas indo além, em áreas como educação, astronomia e programas de computador. Mas, diferente do que pode parecer, os Pro-Ams não são apenas amadores cujo trabalho atinge padrões profissionais, mas também para profissionais que não conseguem se posicionar no mercado por meios tradicionais. Assim, fingindo-se de caseiro e mal-feito, alguns vídeos viraram febre na rede – os melhores exemplos sendo o seriado LonelyGirl15 e o curta Tapa na Pantera, ambos produzidos por profissionais e que renderam audiência e repercussão suficiente para que os posicionasse no mercado.

(É importante diferenciar o conceito de “Pro-Am” do de “prosumer”, proposto como idéia por Marshall McLuhan em seu livro de 1972, “Take Today”, e cunhado por Alvin Toffler no livro “A Terceira Onda”, de 1980. “Prosumer” é o consumidor/produtor ou consumidor/profissional, e é um conceito próximo ao de “Pro-Am”, embora seja mais abrangente. “Pro-Am” lida com os profissionais que não conseguem entrar no mercado, “prosumers” diz respeito à forma como a economia vai funcionar no futuro. Na antologia “Cluetrain Manifesto”, de 1999, o primeiro capítulo – “Mercados são Diálogos” – fala desta transição na mutação do consumidor passivo em prosumer ativo.)

A boa fase que o vídeo online vive hoje é só o começo. Em nova comparação com o Napster, as emissoras de TV e estúdios de Hollywood já estão pensando em como lidar com o fato de, aos poucos, seu público optar por consumir mais filmes via internet do que pelos canais tradicionais – ao contrário das gravadoras, que ainda insistem no controle anti-internet. Dois dados simples: só no Brasil o número de assinatura de internet em banda larga é maior do que a de assinantes de TV a cabo e a projeção para 2007 é que o número de computadores vendidos ultrapasse a quantidade de aparelhos de TV. Não mata o cinema nem a televisão, e sim cria uma nova via de diálogo com o público, que se sente mais à vontade e próximo do conteúdo filmado, que, pouco a pouco, ganha resolução e qualidade na tela do computador.

Uma série de ações aos poucos expande as fronteiras do conteúdo televisivo para além da televisão (“Lost” assumindo esta dianteira) e traz o conteúdo da TV para a internet (como emissoras norte-americanas exibindo, simultaneamente em seus websites, episódios de séries na TV), ao mesmo tempo que iniciativas no mundo dos negócios (o acordo da Amazon com o TiVo, o nascimento do Joost, a Disney fazendo sucesso espantoso com download de vídeos) mostram que 2007 pode não ser o ano do vídeo online, como estabelecido em 2006, e sim o ano em que o vídeo online tornou-se regra.

Daí expandirmos o conceito de “videoclipe”, estagnado, no Brasil, como uma trilha de imagem para uma determinada canção – aquilo que em inglês chamamos de “music videos”. Mas o termo “videoclipe” vem de “clipe” de “vídeo”, “pedaço de filme” e é isso que nos acostumamos a ver neste mundo consagrado pelo YouTube – trechos pequenos de filmes, sejam curtas metragens, notícias, animações, trechos de esportes, trailers de filme, comerciais de TV, teasers de promoções. Independente do conteúdo que pode ser assistido no site, nunca ele é tão extenso quanto um filme ou um programa de TV. É o tempo de tolerância que temos em frente ao computador, para saber se algo é legal ou não – menos de dez minutos. Menos de cinco e até de um, em alguns casos.

O videoclipe está para o audiovisual como a canção está para a música. O tamanho inicial do formato básico para a música foi definido novamente por uma questão tecnológica. Como no começo do século vinte, quando a canção foi inventada e padronizada devido aos três ou quatro minutos de tempo que um disco possuía, o MP3 permitia, em tempos de conexão baixa, que este formato ganhasse força em relação a outros vigentes – com o álbum, o set de DJ, a jam session ou suítes de música clássica. Com este conceito mais amplo para videoclipe, começamos a assistir ao nascimento de algo que não é nem um programa de TV nem um episódio de seriado, nem filme nem comercial de trinta segundos e sim um novo formato, ainda ganhando forma. “Videoclipe” não pertence mais à música – é uma nova categoria de comunicação, arte, cultura e entretenimento.

Durante 2007, assistiremos a notícias sobre o futuro da TV e o fim da televisão tradicional, semelhante ao que aconteceu com as gravadoras no início da era do MP3. Por isso, muita gente vai investir em tecnologia e conteúdo para vídeo, independente do meio em que este for exibido: computador, iPod vídeo, celular, televisão, DVD-player portátil. Se até mesmo algo que foi filmado sem querer, com qualidade baixa e para fins específicos pode atingir um público enorme em diferentes mídias – Paris Hilton, Saddam Hussein e Daniela Cicarelli não me deixam mentir – que dirá um conteúdo produzido pensando neste mercado, por pessoas que o habitam.

Por isso, os ProAms estarão produzindo conteúdo em vídeo, não apenas cineastas e diretores que não conseguem se inserir no mercado, mas profissionais de todas as áreas do mercado de entretenimento. Se você quiser se comunicar com as pessoas este ano, vai primeiro ter de persuadi-las com um pequeno filme, um videoclipe.

E estamos começando essa era de ouro agora.