Tjinder Singh (Cornershop)
Outra velha, de 2002.
Texto publicado originalmente na revista Play número 3, abril de 2002
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Falando de política sem soar carrancudo, o Cornershop volta com ‘Handcream for a Generation’ – trilha sonora para festas, passeatas, shows e audições caseiras
Há um clichê na história da música pop que associa aos artistas que se posicionam politicamente a uma reputação séria demais, sem tempo para brincadeiras. O binômio música popular/política sempre evoca imagens pouco felizes, como os olhares desafiadores de Woody Guthrie ou dos jovens Bob Dylan e Chico Buarque, os braços cruzados do Clash, o expressão dura do rosto de Chuck D, o discurso exasperado de Zack de La Rocha no Rage Against the Machine. Como na chamada “vida real”, a política na música pop não é lugar para a diversão, para o humor, para o alto astral.
O que, sabemos, é o maior papo furado. Afinal de contas, o terno e gravata da política é apenas um discurso usado para manter as pessoas distantes da mesma. O mesmo acontece com seu vocabulário em desuso, sua burocracia e seu estranho posicionamento entre o escandaloso e o ímpio, o bastidor e o oficial. A política quer ser vista como chata e carrancuda para que não venham meter o bedelho na festa dos sabichões.
A política não é mágica, saber ou tradição: ela filtra todas nossas ações, todo o nosso dia-a-dia. Mas a história da civilização ocidental, que optou pela “sábia” decisão de tudo compartimentar, racionalizando a natureza humana a limites insuportáveis. Cada faceta da vida ganhou um rótulo e, aos poucos, eles aprisionavam vícios aos significado original das palavras, deturpando-os completamente. Assim, como a política torna-se intrinsicamente aliada à administração governamental e ao poder militar, a cultura torna-se sinônimo de distração e a história é apenas o passado. Os exemplos são
infindáveis e todos eles isolam um determinado aspecto da vida em seu próprio umbigo e, aos poucos, virando caricatura.
Felizmente, a arte (outro rótulo) demole as paredes que separam díspares pontos da vista, nem que isso ocorra apenas em seu pequeno universo privado.
O que não é ruim, afinal, temos que começar por algum lugar. E voltando à música pop (e à história) é fácil lembrar de vários movimentos musicais que
tinham conotação política forte, cuja periculosidade frente ao mainstream era particularmente preocupante, em grande parte por mobilizar e conscientizar multidões sem pregar uma doutrina ou levantar bandeiras. Estes movimentos, no entanto, não entram na história da música pop como manifestações políticas – uma forma fácil de diminuir sua importância e regular uma possível epidemia mental que poderia abalar as estruturas do sistema.
Eram movimentos que não se denominavam mais sociais do que políticos, pois mudavam a mentalidade das pessoas através de mudanças de comportamento. Observe a geração Woodstock, por exemplo. Toda sua conotação política hoje resume-se aos filhos do movimento folk do começo dos anos 60, quando trovadores, violão em punho, cantavam os problemas do mundo e as injustiças sociais. Mas o que dizer do desbunde sexo-racial de Sly & the Family Stone? Ou do discurso sônico do funk rock de Jimi Hendrix? Ou o convite à volta comunitário do Jefferson Airplane? Não: o lado político desta safra de artistas é reduzido ao canto doce e vazio de Joan Baez, à ladainha antibelicista de Country Joe McDonald ou às utopias afetadas de John Sebastian.
E isso só pra ficar num exemplo mais popular. Se formos prestar atenção, diversos momentos clássicos da música pop vêm carregados de conotação política, reescrevem o comportamento popular de uma época, mas são lembrados apenas por sua faceta escapista e segura. O soul cru dos estados sulistas dos EUA, nos anos 60, serviram de trilha sonora para os movimentos anti-racistas, mas apenas a Motown fica na história. A discoteca surge como uma resistência gay contra a opressão e o preconceito para logo é transformada em açúcar musical usado por branquelos para se sentirem um pouco mais negros. O Tropicalismo pregava o caos e a confusão sobre os opostos, explicitado pelo choque entre as culturas pop e brasileira (então distantes), mas logo foi fagocitado pelo ócio pós-hippie dos anos 70. O mesmo aconteceu com o hip hop nos primeiros dias, o segundo verão do amor (em 1988), o pós-punk, a explosão eletrônica inglesa do começo dos anos 90 etc… Gêneros ativistas que perderam o impacto político à medida em que a história os absorvia, transformando-os em meros flashbacks de um passado divertido.
Mas eles foram muito mais do que isso. Momentos específicos em que a música pop serviu como veículo de comunicação entre minorias conscientes de sua situação e jovens dispostos a lutar por estas causas. A diluição da atitude destes momentos específicos serviu para afastá-los de sua causa central e expulsá-los do panteão mal-encarado que conhecemos como “música pop que fala de política”. Tudo errado.
“Tudo é política”, explica Tjinder Singh, vocalista e metade do Cornershop, “não dá pra separar música de política, é a arte que melhor fala com as pessoas. É direta, instantânea, não tem rodeios”. Assim, em entrevista por telefone, ele explica a política por trás de um disco que, aparentemente, não tem nada de política.
Handcream for a Generation (Sum) é o quarto disco do grupo inglês, o primeiro após o excelente de When I Was Born for the 7th Time, de 1997 (um dos três melhores discos daquele ano, ao lado de OK Computer, do Radiohead, e Vanishing Point, do Primal Scream) e, certamente, seu disco mais contundente. Mas se, por um lado, estamos falando de política, por outro o dia sequer remete ao semblante carrancudo típico do rock politizado.
Handcream… soa como um disco de funk psicodélico feito por fãs incondicionais dos anos 70 que não conseguem tirar o sorriso do rosto. “Música serve para divertir, para animar a vida das pessoas – mas não só isso”, ele continua. “Quando estamos nos divertindo, abrimos mais a cabeça, estamos mais dispostos a receber novas informações, a tentar entender novos conceitos. Não é à toa que o capitalismo usa a música pop para vender suas premissas mais básicas: a apologia da beleza física, o vazio intelectual e a compulsão consumista”. O Cornershop entende a lógica por trás do espírito de festa de manifestações politizadas do passado e faz um disco disposto a resgatar todas elas – ao mesmo tempo.
Por isso, Handcream… soa psicodélico como se fosse 1967, soul como se fosse 1968, rock’n’roll como se fosse 1971, black como se fosse 1972, disco como se fosse 1978, old-skool como se fosse 1979, electro como se fosse 1982, house como se fosse 1986, neo-hippie como se fosse 1988, eletrônico como se
fosse 1991. “Esses anos são anos-chave na história da música, mas hoje são vendidos como souvenirs de uma época esquecida”, lamenta Singh, “as pessoas se esqueceram do poder de transformação que a música imprimiu nestes anos”.
O baixão soul de protesto que abre o disco deixam as coisas muito claras: estamos entrando num território musical que, como muitos, abole fronteiras entre política, religião, cultura e razão – mas, como poucos, prega esta vertente através do alto astral. O fato do soulman Otis Clay abrir o disco já diz muita coisa: entre trumpetes, cordas e um baixo proeminente, Clay evoca o soul de protesto do final dos anos 60. Egresso da gravadora Hi Records (a mesma de Al Green), o vocalista introduz o disco e a banda ao público com a faixa “Heavy Soup”, no que parece ser o início de uma festa em casa – isso resume bem o clima do disco.
Fora os momentos mais claustrofóbicos (como “The London Radar” e “Music Plus 1”), que remetem ao groove eletrônico marcial do começo dos anos 90, todo o disco parece ser feito para ouvir em casa, com os amigos, numa pequena celebração particular.
“Staging the Plaguing of the Raised Platform” traz um velho conhecido do Cornershop, embora a música (prima do hit do disco anterior, “Brimful of Asha”) opte por uma quebra estrutural usando um Moog, o que faria qualquer fã dos Cars (ou do Rentals) sorrir. A faixa fala em assumir posições políticas em qualquer lugar e uma adaptação forçada do título lembra que todo palco é um palanque. O astral da faixa é a psicodelia light, sabor aumentado graças à caixinha da música no início e os vocais bichos-grilos-cantando-em-roda do refrão, típico do grupo.
“Music Plus 1” (repetitiva, fria e noturna) faz a conexão francesa com a música eletrônica, pouco antes de cair no boogie rock “Lessons Learned from Rocky I to Rocky III”. Crua e máscula, esta última evoca a volta do rock’n’roll arquitetada no começo dos anos 70: há ecos dos Rolling Stones, do glam, de hard rock e backing vocals cantando em falsete. E quais são as lições aprendidas entre Rocky I e Rocky III? “É uma piada, como dá pra perceber”, explica o vocalista, “mas assistindo aos filmes, viocê percebe uma mensagem, do tipo ‘não sei deixe enganar por quem tem dinheiro’ ou algo parecido. É uma música sobre manter-se fiel ao que você acredita, mas não quis deixá-la com cara de pregação”.
Mais eletrônica, “Wogs Will Walk” fala do poder de transformação da internet. “A música fala especificamente da Índia, porque temos um potencial muito grande em informática. É um país que desenvolveu uma matemática muito própria e que está presa na lógica de cada um. Usamos o ábaco – que é um computador – há milênios. A internet é a possibilidade perfeita de uma insurreição intelectual indiana”. Apesar de falar especificamente de seu país, Tjinder não descarta a mudança do século XXI para o resto do planeta. “Vai ser bom quando as pessoas perceberem que a tecnologia não é o mais importante, e sim o que se faz com ela. A internet e a computação são linguagens, idiomas. Quando pudermos conversar, ninguém vai segurar as pontas. Será um novo Iluminismo”.
Ele se empolga e continua falando das mudanças na virada do milênio. “O hip hop já nos havia ensinado que você não precisa de muita coisa para fazer arte. É um pensamento africano, minimalista. O preconceito, porém, não nos deixou absorver esta técnica. Com o hip hop, outras novidades em diferentes áreas – ciência, educação, religião, filosofia -, não foram absorvidas por preconceito. Por isso, a internet e o computador explicam novidades velhas. É engraçado, não temos preconceito para com as máquinas”.
“Motion the 11” é o reggae roots, analógico, vinilófilo. Cantado com sotaque jamaicano, a faixa repete a letra de “Music Plus 1” numa temperatura de veraneio caribenho. Esfumaçado e preguiçoso, o reggae abre espaço para “People Power”, recriação groovy da faixa “People Power in the Disco Hour”, gravada no projeto paralelo do grupo, a disco music lo-fi do duo Clinton (o único disco, Disco and Halfway to Discontent, foi lançado em 1999). Novamente, um baixo assume as rédeas da música e conduz a canção sem dificuldades, como se chamasse para uma passeata em forma de festa. “SuperSounds Recordings” ancora o disco de volta para seu lado meditativo, calmo e indiano para, em “The London Radar”, voltar para sua vertente eletrônica.
O disco vai chegando ao final com a gigantesca “Spectral Mornings”, digna dos épicos guitarreiros do segundo disco dos Stone Roses. Instrumental, lenta e barulhenta, funde rock’n’roll e música indiana em partes iguais e conta com a ajuda de Noel Gallagher, do Oasis, ajudando a formar este mantra interminável. Com 14 minutos, a faixa foi o gancho para a volta do site oficial do grupo, quando, em 12 de fevereiro deste ano, foi transformada em “Spectral Mornings (Droppin’ the Solid)”, o maior remix da história com… 24 horas de duração! A faixa é chata, parece patinar sem rumo no mesmo lugar e quebra um tanto a magia pop do disco.
“Slip the Drummer One” conta com o DJ Rob Swift, dos X-Men (os antigos X-Ecutioneers), discotecando sobre a base electro lo-fi da primeira faixa. Deixa transformar a antepenúltima na música de saída, “Heavy Soup (Outro)”, que finge fechar o disco.
Handcream… só termina com “Bonus Track”, uma brincadeira de amigos na sala de estar, lounge rock com guitarra fuzz melódica e bateria de bossa nova. Um final sossegado, descansado, que traz de volta o disco a seu território nato. Falando de política sem soar carrancudo, o Cornershop funde gêneros para mostrar que entre eles não há diferenças e, quando existem, são artificiais. A música, naturalmente, serve para mover as pessoas para a frente – seja numa festa, numa passeata, num show de rock ou em casa.
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“O disco inteiro é de protesto!”
Tjinder Singh disseca, faixa a faixa, o novo disco
“Heavy Soup”
“Heavy Soup é a ponte entre o disco e a vida real, ela se repete no fim, num esquema parecido, pra dar essa sensação de ciclo finalizado. Tem o baixo pesado, que carrega os poucos acordes da música. A gente fez uma música pra cima, para curtir. Enquanto isso, o apresentador vai dizendo o que vai acontecer”
“Staging the Plaguing for the Raised Platform”
“Esta é uma canção de protesto. É sobre você ter a mesma atitude em todas as coisas da sua vida, de não aceitar as coisas sem questionar. Quem governa o mundo não percebe que está sentado num barril de pólvora, que um dia as pessoas vão se encher e vão virar a mesa”.
“Music Plus 1”
“É um house, soa como disco music francesa, não? Ela tem a mesma letra, exatamente a mesma, do reggae. Na verdade ela não quer dizer nada, só “music plus one” e “motion the eleven”, mesmo. Serve para pensarmos no que uma letra de música pode dizer. Quer dizer, eu fiz assim, não quero que as pessoas entendam assim”.
“Lessons Learned from Rocky I to Rocky III”
“Tivemos um enorme cuidado na produção desta música, queríamos que ela soasse exatamente como imaginávamos, bem anos 70. É como ter aquela atitude do começo dos anos 70 sobre todas as coisas que acontecem hoje – se naquela época era uma merda, hoje é uma supermerda ultracrescida (ri). As frases são soltas sem sentido de novo, mais para ter um casamento legal com a voz. Quer dizer, se você entrar no clima certo, você até entende”.
“Wogs Will Walk”
“É o WWW, fala da internet e da enorme influência que ela vai exercer no futuro da Índia. Há alguma coisa de repetição, como um mantra, que sempre muda um pouco, cada vez”.
“Motion the 11”
“É o reggae, como eu disse, tem a mesma letra da outra, com os improvisos de dois rastas amigos nossos, Jack e Kojak. Gosto da guitarra desta música, ela pega firme”.
“People Power”
“Essa é um remix que iríamos usar no disco do Clinton, mas deixamos de fora. Mexemos um pouco em cima do que tínhamos e ela ficou melhor. É outra canção de protesto. O disco inteiro é de protesto!”.
“Sounds Super Recordings”
“É uma música explicitamente indiana, um lado que ficou reduzido no disco novo, mas que tinha que colocar. É um discurso dentro de uma ponte musical, entre duas músicas”.
“The London Radar”
“Toda a música me veio na cabeça num vôo de Londres a Gênova, fui juntando sons que lembravam certas imagens…”
“Spectral Mornings”
“É uma faixa cheia de paisagens sonoras, elementos diferentes, guitarras pesadas e cítaras, altos e baixos, parece que não vai acabar nunca… É um épico, soa como um livro sagrado, mas é uma celebração sônica. É só som”.
“Slip the Drummer One”
“Tem um lado de turntablism, que nós curtimos desde 1994, mas nunca tivemos a oportunidade de colocar em disco. E tem um lado robô também”
“Heavy Soup (Outro)”
“O mesmo groove do começo do disco, só que pro final. A edição deixou-a maior que a intro. É um outro, uma saída, adeus, Elvis has left the building…”
“Bonus Track”
“Uma festa em casa, com uns amigos, resolvemos gravar, ficou legal e colocamos no disco”.