Falando sozinho
Mr. Bressane publicou um belo texto sobre o mestre PKD no caderno 2 do Estadão e como ele me citou de passagem, não ia deixar de clipar.
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Biografismo fantástico
No estranho romance Valis, em que narra experiências místicas e passagens autobiográficas, o escritor Philip K. Dick, conhecido por suas obras de ficção-científica, mais uma vez investiga os limites do real
Por Ronaldo Bressane
Realidade é aquela coisa que não desaparece quando você deixa de acreditar nela. O paradoxo é um entre vários enigmáticos enunciados contidos em Valis, espécie de autobiografia de Philip Kindred Dick (Editora Aleph). O norte-americano de Chicago (1928-1982) é um dos mais influentes escritores do século 20 – afirmação que pode parecer controversa pelo fato de K. Dick estar ligado a um gênero literário considerado “menor”: a ficção científica. Porém, com ela concordam autores tão diversos quanto o filósofo francês Jean Baudrillard, os escritores Ricardo Piglia, argentino, e Roberto Bolaño, chileno, o cineasta canadense David Cronenberg e a banda novaiorquina Sonic Youth (cujo álbum Sister é inspirado na vida de K. Dick).
Mesmo que você não acredite no poder de PKD, a realidade é que sua vasta influência espraia-se da neurociência à filosofia, passando, evidentemente, pelo cyberpunk – gênero derivado da ficção científica que deu origem à trilogia Matrix e cujo expoente é William Gibson (Neuromancer). Este Valis ajuda a iluminar a obra de um criador tão estranho quanto popular.
E como é estranho este Valis. Para começar, K. Dick envenena a confiança do leitor no narrador, ao dividi-lo em três unidades partícipes: o autor (o próprio PKD), o narrador (anônimo, na terceira pessoa) e o protagonista (um certo Horselover Fat). Acontece que o tal Horselover Fat protagoniza histórias da vida do próprio K. Dick, além de ser um jogo de palavras com seu nome: Horselover (“amigo de cavalos”) é parente da expressão grega Philohippos, que teria originado o nome Philip; e Fat, em alemão, é o termo que corresponde a Dick.
Quando o livro inicia, Horselover está perto do fim da linha – mesma situação em que se encontrava seu autor, no início dos anos 70. Uma amiga havia se suicidado e sugerido a ele atentar contra a própria vida; sua mulher o tinha deixado, levando o filho; as anfetaminas que tomava regularmente há décadas o induziam lentamente a um colapso; todos os seus amigos ou eram junkies ou cancerosos terminais (vários deles são retratados no romance O Homem Duplo, recém-lançado pela Rocco)
É curioso pensar hoje, quando a soma das bilheterias de todos os filmes baseados na obra de PKD se aproxima de US$ 1 bilhão, que o autor haja passado por perrengues financeiros. Embora K. Dick tenha sido um escritor premiado e reverenciado em vida, sua influência não ultrapassava o círculo dos fanáticos por ficção-científica. Eram livros baratos, pulp fiction, que vendiam milhares de cópias, mas pagavam pouquíssimo a quem os escrevesse. Por causa disso, PKD produzia feito desvairado. No período inicial, chegou a escrever três contos de dezenas de páginas no mesmo dia; em apenas 30 anos de carreira, publicou 121 contos e 44 romances, além de um diário, chamado Exegese, que contém cerca de um milhão de palavras.
Durante a maior parte da vida, escreveu doidão de bolinhas, que o permitiam matraquear numa surrada Olympic por dias e noites seguidos, sempre escapando dos credores – não à toa é chamado de Dostoiévski yankee. Na fase que documenta em Valis, K. Dick já estava no quinto casamento, com três filhos para alimentar, a conta bancária detonada. É nessa época que o escritor é atingido por um misterioso raio cor-de-rosa.
O Império nunca acabou
Qualquer nerd viciado em ficção científica sabe o que significa a seqüência 2-3-74. Nesta data, PKD teve uma epifania que influenciou os oito anos seguintes, período em que progressivamente abandonou a ficção científica e mergulhou numa literatura metafísica, além de ficar levemente paranóico – achava, por exemplo, que o presidente Nixon era um imperador romano reencarnado, e sentia-se perseguido por CIA e KGB. No mês de março de 1974, K. Dick estava atormentado por uma dor derivada da extração de um dente do siso. Pediu um remédio à farmácia, e uma moça veio entregar em sua casa. Ao abrir a porta, ficou magnetizado pelo pingente que pendia do colar da garota: um peixe – símbolo da cristandade. Quando o sol refletiu-se no pingente, o escritor teve uma visão em que retornava aos primeiros anos de Império Romano, depois de Cristo, e foi atingido por um raio cor-de-rosa.
Nos dias seguintes, sentiu-se bem como nunca; recebia cheques de direitos autorais atrasados; deixou de lado as anfetaminas; estranhamente, conseguia ler e escrever em grego, latim e sânscrito, idiomas que até então não dominava. Certo, dia, quando ouvia “Strawberry Fields Forever”, dos Beatles, K. Dick intuiu que o filho Christopher, recém-nascido, corria risco de vida, e o levou ao hospital. Para espanto de sua mulher e do médico, o filho realmente tinha uma hérnia na virilha que o poderia matar a qualquer momento. Cada vez mais obcecado pela visão, PKD começou a ter problemas em sua vida cotidiana, até que foi abandonado pela mulher. Tempos depois, tentaria o suicídio – simultaneamente cortando os pulsos, tomando cápsulas de nembutal e se encerrando dentro de um carro ligado, com a garagem fechada. Algo não funcionou, porém, e o escritor salvou-se, indo posteriormente convalescer numa clínica.
Essa experiência está contada de modo fragmentário em Valis, tendo sido quadrinizada por Robert Crumb em 1985 (uma versão em português, traduzida por Alexandre Matias). K. Dick também expôs detalhes do 2-3-74 na sua Exegese, que pode ser lida em partes no site do autor. Objeto de culto, a Exegese não tem previsão para ser publicada; os herdeiros do escritor publicam trechos de tempos em tempos, e há sites e mais sites que se dedicam a interpretá-los. São divagações metafísicas que aproximam violentamente conceitos do cristianismo, gnosticismo, hinduísmo, budismo, filosofia pré-socrátrica, conceitos alquímicos e teorias neurocientíficas até hoje controversas – como por exemplo The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind (A Origem da Consciência na Quebra da Mente Bicameral, nunca traduzido para o português), do psicólogo norte-americano Julian Jaynes (1920-1997).
O livro de Jaynes, que também influenciou escritores do porte de William S. Burroughs e é obra de cabeceira de neurocientistas respeitados como o brasileiro Sidarta Ribeiro, diretor do NatalNeuro, propõe algo muito semelhante ao exposto por K. Dick em Valis: há três mil anos, o cérebro humano era dividido em dois – o hemisfério direito seria o homem, executante, e o esquerdo, o deus, executivo. Uma das idéias justamente expostas no romance de PKD, quando o narrador demonstra que Horselover Fat é um homem que vive em 1974 e outro que vive nos primeiros anos da cristandade – tudo ao mesmo tempo. Para K. Dick, afinal, o Império Romano continuava sob o nome de Estados Unidos: a frase “O Império nunca acabou”, um mote de sua obra, teria surgido em um sonho recorrente que tinha, durante a infância.
Entre o sonho e a ficção científica
Sim, mas o que seria Valis? A dada altura, o narrador leva Fat ao cinema para assistir a um filme de ficção científica com este nome – e então percebemos que se trata de uma sigla para “Vast Active Living Intelligence System”, Vasto Sistema de Inteligência Viva e Ativa. Fat tem contato com o casting do filme e afinal descobre que VALIS – essa inteligência extraterrestre, um outro nome para Deus – é que teria iluminado seu cérebro com o raio rosa. A partir daí, o livro colapsa entre teorias conspiratórias, esoterismo setentista e um humor vagamente psicodélico – como se K. Dick, ao mesmo tempo em que formulasse um novo conceito místico, o ironizasse com crueldade.
“Estrangeiro, os sonhos são verdadeiramente confusos, ambíguos e, para os homens, nem tudo se cumpre”, escreveu Homero na Odisséia. “Pois são dois os portões dos tênues sonhos: um é feito de chifre, e o outro de marfim. Os sonhos que passam através do cerrado portão de marfim enganam, trazendo promessas que não se cumprem; mas, os que saem pelo polido portão de chifre, esses se cumprem, para os mortais que os vêem.” Dissolvendo a identidade do narrador, brincando com os limites do falso e do verdadeiro, impondo uma realidade plástica, em Valis Philip K. Dick propõe que no mundo em que vivemos os portões de chifre e de marfim sempre irremediavelmente nos confundam. Que portão abrir, só o leitor saberá responder.
Uma mina de ouro para o cinema
William Gibson é o mais copiado e menos louvado (a trilogia Matrix é descaradamente chupada de seu Neuromancer); Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisséia no Espaço), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e Isaac Asimov (Eu, Robô), os mais conhecidos; Stanislaw Lem (Solaris), o mais cultuado. Mas é K. Dick de longe o autor de ficção científica mais adaptado ao cinema. O primeiro livro que foi levado às telas – e até hoje o que teve resultados mais ambiciosos – é O Caçador de Andróides (Blade Runner), adaptação do romance Sonharão os Andróides com Ovelhas Elétricas? realizada por Ridley Scott. Misturando os gêneros noir policial com sci-fi, dirigindo Harrison Ford, Hutger Hauer e Sean Young em atuações clássicas, Scott revitalizou o gênero (o que o estraga um pouco é a trilha tecnobrega de Vangelis, que foi depois usada até em comerciais televisivos de motel).
Apesar de ter assistido – e apreciado – o director’s cut de Blade Runner (que chega este ano às lojas, marcando o 25º aniversário do filme), PKD não viu a cor do sucesso de público: morreu duas semanas antes da estréia do filme. Seguiram esse caminho Total Recall, de Paul Verhoeven, Confessions d’un Barjo, de Jerôme Boivin, Screamers, de Peter Dugway, Impostor, de Gary Fleder, Minority Report, de Steven Spielberg, e Paycheck, de John Woo. Somente este ano, dois filmes baseados em K. Dick chegaram aos cinemas: o perturbador A Scanner Darkly (O Homem Duplo), em que Richard Linklater usa a revolucionária técnica de rotoscopia, e Next, de Lee Tamahori. Este último, com Nicholas Cage, Julianne Moore e Jessica Biel, estréia no Brasil no segundo semestre.
O oscarizado Paul Giamatti personificará PKD em uma biografia ainda em produção, The Owl in the Daylight, a ser concluída em 2008. A obra de K. Dick é uma mina de ouro: calcula-se que as bilheterias das adaptações somem US$ 1 bilhão. Se lembrarmos que só uns 15% de sua obra foram levadas às telas, é provável que assistamos a muitos outros filmes kdickianos – pelo menos até que o futuro imaginado por ele rime com o presente.