O Papa do Pancadão
Duas com o Marlboro.
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22 de janeiro de 2003
Electro é funk de butique, diz DJ Marlboro
“É muita hipocrisia”, desabafa o lendário DJ Marlboro. Pai do funk carioca, Fernando Luís Mattos da Matta, 39, se refere ao sucesso da passagem da DJ e cantora francesa Miss Kittin pelo Brasil. “Aconteceu o mesmo com a lambada, que teve de ser sucesso lá fora para ser reconhecida por aqui. Quem sabe o funk não tem a mesma trajetória?”
Passado, o gênero já tem. Criado em 1989, começou como os muitos filhotes da disco (hip hop, dancehall, house, tecno), em torno do quatro por quatro eletrônico e gritalhão executado pela dupla MC e DJ, que, no Rio de Janeiro, ganharam ares manhosos e gaiatos, típicos do comportamento da metrópole praiana.
Desde então o funk carioca não pára de se espalhar e ganhar território. Dos populares bailões ao “Planeta Xuxa”, passando pelos gráficos e viscerais Proibidões até o estouro de Kelly Key, suas dimensões apenas aumentam. Miss Kittin, sob esta lógica, é apenas mais um passo do gênero: “Esse funk disfarçado, de butique -com as mesmas batidas quebradas e os mesmos BPM do funk- é apenas uma maneira que alguns DJs encontram para dizer que não tocam funk”.
Aproveitando vácuos artísticos para mostrar sua cara, o funk carioca nasceu do fascínio de Marlboro por um brinquedo novo: a bateria eletrônica. E a história desta descoberta entra para os autos da psicologia popular ao lado de “Yesterday”, dos Beatles, e “Satisfaction”, dos Rolling Stones, como músicas compostas durante o sono. O DJ conta que a primeira vez que viu o instrumento foi nas mãos do antropólogo Hermano Vianna. “Mas ninguém sabia mexer”, conta, lembrando do entusiasmo que mal o deixou dormir naquele dia.
“No sonho, aprendi a mexer e programei”, diz. “No dia seguinte, liguei para ele logo de manhã e pedi para apertar os botões do jeito que eu havia sonhado e deu certo. Aí ele me deu a bateria. Foi um dos melhores presentes que eu ganhei na minha vida, pois como disseram, “é como se fosse dado um rifle a um chefe indígena”.”
Lançando a coletânea “As Melhores do DJ Marlboro”, o DJ se coloca como papa da eletrônica: “O funk é eletrônico antes de existir essa denominação. Quem define o que é eletrônico e o que não é?”, briga, enfatizando o papel do DJ no mercado. “É ele quem descobre, produz e executa, todo o esquema da indústria fonográfica completo numa só pessoa.”
Montado em seu próprio império (a produtora Big Mix), Marlboro é orgulhoso de seus números: “Entre CDs próprios, artistas que lancei, coletâneas internacionais e remixes produzidos, pode colocar que eu lancei mais de 200 CDs. Isso em vendas ultrapassa a marca de 4 milhões de discos, certamente”. Toca em três festas, além de passar por outras 12 (“dou uma passadinha e sorteio uns brindes”), agitando o que estima ser uma pequena multidão de 12 mil pessoas por fim de semana. Fora uma coluna semanal no jornal “O Dia”, um portal na internet (www.bigmix.com.br), os 350 mil ouvintes por minuto em seu programa de rádio e a segunda audiência da TV Bandeirantes carioca.
Mesmo assim, Marlboro acha que o funk carioca ainda não se estabeleceu.
“Acho que só seremos realmente reconhecidos quando resolverem fazer um funkódromo, quando as escolas fizerem concursos de funk para incentivar a garotada a escrever e expor suas idéias. Quando o funk for visto como instrumento de pesquisa para a sociedade descobrir o que essa galera pensa e a partir daí criar oportunidade e perspectiva de vida aos jovens, que sempre manifestaram essas reivindicações por meio da música -como um dia foi a MPB, a bossa nova, a jovem guarda e a tropicália. Hoje é o funk.”
AS MELHORES DO DJ MARLBORO
Artista: DJ Marlboro
Gravadora: BMG
Quanto: R$ 18, em média
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5 de junho de 2004
DJ Marlboro conduz o funk carioca à Europa
DJ Marlboro entra em seu escritório no bairro Lins de Vasconcelos, nas redondezas do Méier, zona norte do Rio, e a primeira coisa que faz é correr em direção à sala onde está seu computador para baixar mais de 800 e-mails –em 15 contas de correio eletrônico diferentes. “É que ontem não deu tempo para baixar”, desculpa-se, sem tirar os olhos do monitor, alternando do programa de e-mail para o de navegação da internet, no qual responde mensagens em um de seus quatro fotologs que atualiza pessoalmente.
Patrono do gênero popularmente conhecido como funk carioca, Marlboro é um dos principais DJs do Brasil e seu talento finalmente ganha reconhecimento internacional, mesmo ainda sendo tratado com o desprezo típico que o brasileiro médio dedica a artistas que se comunicam com classes sociais mais baixas. O DJ carioca é uma das atrações do festival SónarClub, que aconteceria ontem no clube Ocean, em Londres. O evento é uma versão de bolso do festival espanhol Sónar, cuja edição 2004 começa no próximo dia 17, em Barcelona, onde DJ carioca também bate cartão.
Ele ainda volta ao Brasil antes de retornar à Europa para a apresentação no Sónar, quando, ao lado do coletivo Instituto e do DJ Nego Moçambique, compõe o painel Eletronika Brazil, no espaço SónarPub. Após os brasileiros, o mesmo palco recebe nomes como a dupla belga 2 Many DJ’s e o coletivo garage So Solid Crew.
E Barcelona é só o ponto de partida de sua primeira turnê européia, que ainda conta com datas em Paris (dias 22 e 23), Londres (dia 24), Liubliana (capital da Eslovênia, dia 25) e Zagreb (capital da Croácia, dia 26). A moral de Marlboro, principal porta-voz do funk carioca, ainda cresce com o lançamento de quatro coletâneas de suas produções na Europa.
Mas ele ainda é o mesmo sujeito que, há 24 anos, atravessava todo o Rio de Janeiro a pé ou de bicicleta, carregando os vinis na mochila, para discotecar. A humildade do DJ é estranhamente proporcional ao nível de controle que ele exerce em todo o império de entretenimento que criou, o Big Mix, cujo slogan (“É Big Mix, ô mané!”) é reverberado por milhares de cariocas diariamente, seja em intervenções de ouvintes em seu programa de rádio diário ou em adesivos espalhados por todos os lados da cidade maravilhosa.
É ele mesmo quem tira as fotos em todos os bailes que toca (mais de 20 por fim de semana) e descarrega em seus fotologs (como o www.fotolog.net/bailefunk). Ele ainda supervisiona todos os mixes feitos por sua equipe, responde pessoalmente aos e-mails e às mensagens que são enviadas via ICQ, discute com detratores do funk e dirige o próprio carro todo o dia rumo à rádio, no centro.
Viciado em trabalho, ele não pára um minuto e está constantemente ao celular, alternando papos com velhos amigos e conversas sobre promoção de eventos. Vê-lo revezar entre a locução ao vivo do programa “Big Mix” e o papo com o MC Serginho (o da “Égüinha Pocotó”) ao telefone é desesperador e inspirador –ao mesmo tempo em que parece que vai se atrapalhar e pôr tudo a perder, pode-se perceber o senso de ritmo e a presença de espírito que o tornam um grande DJ.
“O negócio é fazer o povo dançar. Não tem dessas de Billboard, de ver na revista de moda a música que tá tocando lá fora…”, explica. “Se o pessoal dançou, deixa; se não, joga fora. Não importa se é sucesso no exterior.”
Sentado em seu estúdio, teoriza sobre a fagocitagem do funk carioca em relação aos outros gêneros de música, comparando com a mestiçagem e mistura de culturas característica do Brasil: “O funk absorve tudo, seja folclore brasileiro ou música gringa. É o gênero com menos preconceito em relação aos outros gêneros e, talvez por isso mesmo, seja o que mais preconceito sofre”, explica. “E, se você for ver bem, é a mesma coisa do Brasil, que também absorve tudo e sofre preconceitos por não ter preconceito.”
“Mas eu queria mesmo era ouvir o funk com os ouvidos do gringo”, lamenta, lembrando das excursões recentes que fez aos EUA –desde que se apresentou pela primeira vez em Nova York, em junho do ano passado, ele já voltou outras duas vezes ao país.
“Não sei inglês até hoje e gosto de música em inglês independentemente do que ela diz, sem saber do que ela está falando. Não sei se o estrangeiro também ouve assim, então vou tentando, devagar, colocando alguma coisa instrumental, outras músicas mais silábicas, umas com uns baixões…”
Assistindo lentamente ao crescimento do gênero no exterior (ele interrompe a entrevista várias vezes para falar de reportagem do “Fantástico” sobre o estouro do funk na Grécia ou de um amigo que avisou que ouviu funks em um clube em Portugal), Marlboro orgulha-se de colher em vida os frutos que semeou: “Eu achava que só iam me reconhecer quando eu estivesse velhinho, quando você não pode fazer mais nada, e aí vem o pessoal e homenageia, como aconteceu com o Cartola”.