Querida Patti Smith

, por Alexandre Matias

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Sonhei que você vinha para o Brasil numa das piores épocas da história do país – e, em nosso histórico, isso não é pouco. No sonho você aparecia três vezes para todos, como se reforçasse o mágico número três como prova de que era você mesmo.

“Three times is a charm”, diz o ditado quase intraduzível em sua língua-mãe – intraduzível porque “charm” em inglês não é o literal “charme” em português: é praga e benção, mandinga e encanto. Em cada uma das aparições você falava com uma voz, embora sempre falasse a mesma coisa: na primeira, conversando, sentada para um público também sentado; na segunda, cantando e rugindo, em pé para um público também de pé; na terceira, cantando, conversando e rugindo em pé para um público que deveria estar sentado. Nas três vezes, você sublinhava, nas orações que nos ensinou a rezar como canções, um mantra fadado a ecoar nas cabeças de quem o ouvir: “Seja livre!”

No sonho você surgia linda e deslumbrante, mas sem o magnetismo divino que associa-se à sua persona. Não era um Mick Jagger feminino, um Rimbaud do século seguinte, um Jim Morrison literato; também não era uma matriarca sobrenatural, uma entidade de outro plano, uma orixá descendo pro aiyé. Você era uma pessoa comum, de carne e osso, cabeça e voz, lembrando a cada um dos sonhadores que basta se apegar às próprias qualidades humanas para se tornar algo próximo a um deus andando na terra.

Que a transcendência da arte é feita por gente. Para cada vez que sua voz implacável urgia para que o povo tivesse o poder ou que entoava que a noite pertence aos amantes ou que celebrava dançar descalça ou sangrava os pecados de outras pessoas para quem Jesus Cristo morreu, você também tossia, cuspia, ria, dava tchauzinho, fazia declarações apaixonadas. “Tudo que está acontecendo aqui é um reflexo de vocês”, dizia sorrindo.

O sonho esticava sua aparição por três dias – os mesmos três dias que o próprio Cristo levou para renascer – naquele tempo estranho dos sonhos, em que uma hora parece passar num segundo e um minuto parece levar dias. Maestra de um tempo além do tempo, no sonho você transformava uma canção de Neil Young em uma era geológica, um manifesto rhythm’n’blues de nascimento do punk rock em uma catarse de proporções bíblicas, Midnight Oil, Velvet Underground, Rolling Stones e sua própria genealogia musical misturavam-se com William Blake, Vincent Van Gogh, Jean Genet, William Burroughs, Lou Reed e até mesmo Beethoven em personagens de uma opereta tão curta quanto interminável, como um centésimo décimo quinto sonho de Bob Dylan se materializando em nossa frente – personagens fictícios, mitológicos, divinos, históricos e mundanos misturavam-se com amigos, parentes, conhecidos e famosos que a ajudavam a costurar esta imensa rapsódia sentimental que era tão real que parecia que era verdade.

Não sei se mais me emocionou a mistura de “Land” com “Gloria” em que você destruía uma guitarra como ápice de um transe de mais de quinze minutos ou o bem-vindo silêncio reverente que lhe acompanhou na segunda vez que você tocou “After the Goldrush” no Brasil.

No final do sonho, você olhava em nossos olhos e dizia sorrindo: “Obrigada a todos, foi realmente divertido. Nós todos temos muitas coisas sérias pra se pensar e coisas sérias para lutar, mas ainda é importante nos divertir.”

Podemos acordar. Para agradecer nos ensinar que esperança se cultua e vem do trabalho, da luta. Ela não vem do nada.

Amém.

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