Pink Flag – Wire
A química que existe entre Estados Unidos e Inglaterra é o eixo que mantém o rock em movimento. Foi por causa do blues, rhythm’n’blues e rock’n’roll americanos que uma geração de adolescentes ingleses devolveu aos ianques uma versão ainda mais direta da rebeldia original dos anos 50, garantindo a sobrevivência do mesmo como gênero. A partir desta troca inicial (a Invasão Inglesa e a Beatlemania como decorrência da explosão inicial do rock), várias outras aconteceram no decorrer das décadas que vieram depois.
Em pouco tempo, o estereótipo estava pronto: os ingleses são os modernos e os americanos são os trogloditas. Enquanto o glam rock deu à Inglaterra David Bowie e Marc Bolan, os Estados Unidos devolveram Alice Cooper e New York Dolls. A psicodelia inglesa tinha a aristocracia clássica do Pink Floyd, dos Beatles e dos Soft Machine, enquanto na América ela saía de jam sessions barulhentas em garagens ou casas abandonadas (gerando Grateful Dead, Doors, Love, MC5). A cultura de rua negra americana é barra pesada e luta contra a repressão (o hip hop), enquanto a inglesa passeia pelos corredores do jetset com credenciais de acesso a todas as áreas (o trip hop e o drum’n’bass). O techno de Detroit e Chicago é agressivo e marcial, enquanto a música de duplas como Orb, Orbital e Chemical Brothers ganham adjetivos lúdicos e fantasiosos. É muito fácil detectar esse estereótipo, basta confrontar personalidades distintas dos dois países. Responda rápido: quem é o mais cool e quem é o mais mané? Brian Wilson ou Scott Walker? Sonic Youth ou Smiths? Iron Maiden ou Metallica? Dr. Dre ou Tricky? Black Sabbath ou Kiss? Who ou Stooges? Inevitavelmente os americanos acabam tendo essa aura de ignorância tacanha que talvez seja inerente às suas personalidades.
Mas em um momento da história do rock – sempre tem a exceção – os papéis foram trocados. E justamente durante o movimento punk, esse cataclismo natural que dividiu o rock em mainstream e underground, que esta inversão aconteceu. Enquanto o rock vinha tornando-se cada vez mais comercial, uma geração inteira de nova-iorquinos fugia do óbvio criando sua própria cena local. À medida que o sistema corrompia e engravatava toda geração hippie, que acreditou estar no poder pelo simples fato de dominarem a moda, um pequeno pedaço de história vinha sendo escrito nas noites da cidade que nunca dorme.
A semente foi plantada na Factory, de Andy Warhol, que providenciou as primeiras platéias para as apresentações do Velvet Underground. O grupo, liderado por Lou Reed e John Cale, ia de encontro às regras vigentes do rock e inaugurava a música popular moderna ao usar o gênero como pura expressão artística – erguendo as sobrancelhas dos mais modernos ao juntar música atonal, rock primitivo, percussão de lata, viola e refrões grudentos falando sobre sexo vulgar, drogas pesadas e violência. Da Factory, aquele espírito se espalhou em outras casas noturnas, como o Max’s Kansas City, e em bandas como Modern Lovers, Stooges, New York Dolls. Desta geração da primeira metade dos anos 70, saiu a primeira geração punk americana, com base na lendária casa noturna CBGB’s, o pulgueiro que deixou bandas como Ramones, Patti Smith Group, Television, Blondie, Devo, Heartbreakers e Talking Heads terem suas primeiras vezes em um palco.
Todos tinham um caráter intelectual avançado. Os Talking Heads criticavam a sociedade fazendo funk de branco, o Television costurava esculturas no ar entrelaçando solos de guitarra com inigualável paixão, o Blondie parodiava o pop fazendo-o de forma irresistível, Patti Smith citava Rimbaud, Jim Morrison, Artaud e Jesus Cristo criando a mitologia para uma geração – até os Ramones, primitivos e diretos, expunham as políticas niilistas de se atravessar a adolescência com a força de um soco na cara. Freqüentando a mesma noite que essa geração de bandas, todo o high society marginal reverenciado pela crítica local: velhos beats, artistas modernos, travestis, traficantes, empresários, adolescentes suculentas, jornalistas, junkies, escritores e diretores de cinema.
Quando essa geração aportou na Inglaterra, todo aquele intelectualismo soou apenas como um chamado às armas. Era o que toda uma safra de jovens adultos desempregados e marginalizados precisavam para se vingar contra o sistema que havia posto-os neste beco sem saída. Pegar uma guitarra e cantar contra qualquer coisa tornou-se palavra de ordem na Inglaterra e logo as bandas pipocavam como fungo por toda ilha – era a primeira vez na história do país que a música tornava-se um barulho tão violento e, pior, com tantas bandas ao mesmo tempo.
Cada banda, uma história, uma luta. Clash, Sex Pistols, Buzzcocks, Jam, Damned, Sham 69, Stranglers, Undertones, Specials, Gang of Four, Madness, Joy Division, The Beat, Siouxsie & the Banshees, Cure… Todas essas bandas surgiram na primeira grande onda do punk inglês (entre 1976 e 1979) e todas elas lutavam contra algum tipo de repressão, seja em nível pessoal, político, moral ou ideológico. Mas não tinham o glamour que a Inglaterra havia dado a seus filhos mais velhos, o aspecto nobre e diferenciado de ser inglês. Talvez apenas com a exceção ao Joy Division (cuja curta e turbulenta carreira galvanizou uma aura perfeita sobre o grupo), todos os outros conjuntos em seus primeiros anos de vida faziam questão de ostentar a rudeza de sua abordagem em relação tanto ao som quanto às letras. Depois, quase todos eles fizeram jus ao clichê da ascendência inglesa e criaram seus próprios parâmetros de britanicidade, abandonando a aspereza dos primeiros discos.
Apenas um grupo soube utilizar a rispidez do primeiro punk inglês em prol de sua própria erudição. Estudantes de arte do mesmo colégio ao sul de Londres, Colin Newman (guitarra e vocais), Bruce Gilbert (guitarra), Graham Lewis (baixo e vocais), and Robert Gotobed (bateria) eram um grupo ao mesmo tempo tosco e primitivo, como anarquistas conceituais. O Wire era aquilo que Karl Marx chamava de intelectual orgânico: o sujeito que pensa e age ao mesmo tempo, sem escolher uma das funções. Levando o conceito punk a todos os aspectos da canção, o Wire não esperava muito tempo em uma música, cortando suas asas assim que ela ameaçava o improviso. Podando ritmo, melodia e estrutura, o grupo dava uma urgência minimal às suas composições, repletas de referências ácidas ao estilo de vida capitalista.
Em seu primeiro disco, Pink Flag, lançado em dezembro de 1977, o Wire condensava todo seu ímpeto artístico em canções com pouco mais de um minuto, em 21 canções (22, com o acréscimo de “Options R”, que não constava na versão em vinil) que sequer totalizam 40 minutos de duração. “Prestem atenção, nós somos o Wire” – sua saudação nos primeiros shows não era um aviso ou um golpe de marketing: cada palavra irrompida por Colin ou Graham no meio de suas canções era responsável pelo todo. Pareciam compor todo tipo de gênero e submeter suas músicas a uma censura de excesso tachada pelo punk. “Punk foi uma forma de confirmarmos o que queríamos fazer: música de uma forma muito simplificada”.
Depois de uma participação na coletânea pau-de-sebo Live At The Roxy, a gravadora EMI os contratou no selo Harvest e deu-lhes carta branca para fazer o que quisessem. O produtor Mike Thorne, em seu primeiro trabalho de produção, encarnou com exatidão o espírito “menos é mais” que o grupo queria passar em seu primeiro disco. E creditando-se apenas como Colin (“cabelo escuro”), Robert Gotobed (6’3″), B. C. Gilbert (“olhos azuis”) e Lewis (“9 st. 6 lbs.”), o grupo dava início ao mais espetacular disco de estréia da história do punk rock.
Pink Flag abre com “Reuters”, batizada após a mais tradicional agência de notícias alemã. A introdução consiste do baixo e da guitarra repetindo notas que ecoam no horizonte, como ondas de rádio. À entrada da bateria, toda banda responde ao mesmo acorde, contando quatro compassos para Colin Newman entrar berrando, ainda que cético. “Nosso correspondente lamenta informar/ Um tempo difícil, em que tudo vai mal/ Movimentos nas fronteiras/ Problemas nas colinas/ Pouca comida, crime em dobro/ Preços subiram desde que o governo caiu/ Acidentes aumentam enquanto o inimigo bombardeia/ O clima é nocivo, moscas e ratos florescem/ Mais cedo ou mais tarde o fim vai chegar”. O punk é visto como uma guerra onde todos correm para não ser atingidos e lá está o Wire, observando tudo de fora. Até o final da canção: “Este é seu correspondente, a fita está acabando/ Aumentam os tiroteios”, e toda banda ajuda com os gritos finais, “saques, incêndios, estupro”. A música termina aos poucos, à medida que os gritos vão desaparecendo no horizonte. Um acorde final espera o relógio completar os dois minutos que compõem a música e a guerra se vai. Ou não?
“Eu quero ser”, ruge Colin logo após o silêncio dominar, chamando toda a banda de volta, “um campo de treinamento para os domingos, assim eles podem foder com a minha vida/ Aborrecer minha esposa e deixar um gosto ruim/ Que a pasta de dentes listradas não pode tirar na manhã de segunda”. A urgência do Wire pode ser sentida em todas suas microcanções, mas é “Field Day for the Sundays” quem inaugura a série. “Quero ser alvo para os diários/ Assim eles podem tirar fotos minhas com uma pessoa nua na página 3/ Tão vulgar/ Tocando à cintura/ Parecendo hesitante com são as manhãs de segunda”. Não completamos os 28 segundos da canção e o grupo volta para um segundo final, repetindo apenas o último verso.
Entram os dois acordes que o Elastica usou para compor “Connection”. É “Three Girl Rhumba”, seguida da bateria mecânica e de um baixo escorregadio e quadrado. Ela inicia os jogos de palavras nas músicas de Pink Flag, misturando mágica de botequim com metafísica: “Pense num número/ Divida-o por dois/ Algo é nada/ Nada é nada/ Abra a caixa/ Rasgue a tampa/ Então pense num número/ Não pense numa resposta/ Abra os olhos/ Pense num número/ Não deixe passar/ Um número é um número”. A faixa quebra a linearidade numa espécie de refrão: “Uma chance de encontro que você quer evitar/ Inevitável/ Então você faz/ Sim, faz/ O impossível”. Voltando ao tema original, “você não tem um número/ Só quer dançar rumba/ E não há jeito de ficar por baixo”. Sim, uma canção de amor. Sim, um minuto e quinze segundos.
Estão disposto então os três conceitos centrais da desconstrução artística proposta pelo Wire. Nas três canções, o grupo cria imagens em cada verso, mas não obriga-se a construir uma paisagem com estas (o que ocorre apenas – e durante todo o disco – em “Reuters”). As palavras são simples, as situações cotidianas, mas eles não estão atrás de respostas fáceis. Questionando a própria sociedade capitalista com sua lógica fragmentada, Pink Flag busca um ângulo que possa enxergar todos os alvos ao mesmo tempo e eliminá-los com a quantidade mínima de munição. Se o punk é uma reação a uma ordem de prisão, o Wire espera sentado dentro de casa, com uma armadilha mortal esperando em cada porta.
A variação de acordes, por exemplo, é, ao mesmo tempo, plural e limitada. Eles usam diferentes combinações dos três acordes básicos do punk no começo de cada faixa, deixando estas se desenvolverem sobre um único acorde, geralmente esticados ao máximo. E por máximo, entenda no máximo dois minutos – a velocidade e a eficácia das canções estão intimamente ligadas. Experimentando no estúdio formas de se explorar as inúmeras variantes do rock básico, eles podavam todo refrão repetido, toda possível entrada de solo, toda estrofe que não tivesse o que dizer.
Suas letras também não estavam interessadas em desvendar nada para o ouvinte. Para o grupo, este tinha que ter o mesmo trabalho – e portanto ter a mesma recompensa – que os músicos tiveram para compor as canções. Não que Pink Flag seja um disco difícil (musicalmente, ele lembra um disco dos Ramones se o referencial destes fosse o Velvet Underground e não Chuck Berry), mas atravessar suas letras não é tarefa para qualquer um. “Three Girl Rhumba”, por exemplo, é uma canção que fala da dificuldade de tirar uma garota para dançar. Só que ela é transformada num truque de mágica que te induz ao erro ao propor um número no título da canção – e, olha só, é a terceira música do disco. Assim, o grupo compara a margem de erro que você tem em ambas situações, que é sua própria passividade. Se você não for, você perde, não sai do lugar. Se você for, já ganhou.
Uma seqüência de acordes interrompida pela bateria abre a faixa seguinte. “Ex-Lion Tamer” (“Ex-Domador de Leões”) ironiza daqueles que sempre seguiram as regras do sistema, olhando com pesar as aposentadorias do Cavaleiro Solitário (o policial antigo, “o mais solitários de todos/ Sem balas de prata/ Tonto saiu de cena) e do Batman (o policial moderno, “sem o disfarce da justiça/ Robin deixou o ninho”). Ao refrão (“garrafas de leite vão ficando vazias/ Continue grudado em seu televisor”) volta duas vezes, na segunda repetindo a última frase várias vezes, enquanto as guitarras vão construindo panéis de ruído por trás de tudo, até que Colin termina tudo com um grito.
Dois acordes bêbados caminham vagarosamente em “Lowdown”. “O tempo é curto/ Mas nunca o suficiente pra chegar à frente/ Projetar a imagem/ Que, se em tempo, tornaria-se um sonho concreto”, o vocalista canta com igual despojo, “Outro cigarro, outro dia/ De A a B/ Novamente evitando C, D e E/ Porque com E é onde toca-se o blues”. A brincadeira com as letras vem do fato da seqüência de acordes E, A e B (mi, lá e si) ser uma das básicas do blues. “Evitar a morte é ganhar o jogo/ Evitar renegação, o grande E”. A banda sai dos dois acordes e cai no grande E (mi maior) e o vocalista canta o blues: “Afogando-se na grande piscina/ Surgindo à superfície/ O cheiro teu/ É um lowdown”. “Lowdown” é uma expressão que pode tanto dizer “provas concretas”, “informações confidenciais” e “repugnante”, se usado como adjetivo. O grupo usa o significado ambíguo da palavra para deixar em aberto o que sente em relação ao cheiro da pessoa a quem se refere. Novamente, uma canção de amor: a monotonia dos primeiros acordes e versos refletem apenas a rotina insuportável de quem acabou de levar um fora. O refrão faz referência à depressão, comparando afogar-se com o blues. Nos dois últimos versos, o protagonista culpa sua ex-amada pelos maus bocados que vem passando. Antes do fim da música, Newman ajuda Gilbert nos golpes em sua guitarra, aumentando a violência lenta da canção, mais uma vez encerrada com uma frase gritada.
“Start to Move” injeta energia e velocidade com a entrada da bateria de Gotobed. Três acordes na introdução e durante o mesmo acorde repetitivo que preenche o volume para que a letra fale da futilidade do dia-a-dia: “Foi bom, mas carne apodrece logo/ Emoções: todos temos esportes”. “Brazil” segue o ritmo com uma letra sobre a ignorância das massas frente a verdade dos fatos: “É verdade querida, te levarei pra casa/ Serei seu namorado para sempre/ Eu te amo, sempre amarei/ Até dividirem o átomo”. Nosso país sempre foi visto pelos estrangeiros como uma utopia cega, em que todos se divertem sem a mínima noção da realidade. A faixa termina com uma indecisão ideológica repetida várias vezes para ganhar em ritmo, ao alternar as palavras “esquerda” e “direita”, antes de terminar a faixa com um “salute!”.
“It’s So Obvious” canta a revolução nas ruas, só não ver quem não quer: “É tão óbvio, está aqui e está lá”. Colin canta sobre os tempos que vive, espantado com o fato não estar claro para todos: “Estamos em 77, próximos do céu/ É preto e branco e rosa, pense”. Quando ele fala da cor rosa, o título do disco se justifica. Se o punk gritava através de fanzines xerocados a revolução em preto e branco, o Wire explica sua existência. O rosa contrasta-se com as duas cores básicas – é o elemento artístico da revolução. Ao erguer a bandeira rosa na capa do disco, o Wire explica-se a que veio: eles são a arte no punk. “Há mais para vir”, anunciam no meio da canção.
“Surgeon’s Girl” novamente coloca o flerte (numa sala de espera de médico) como eixo central da trama, fazendo o protagonista pensar num caso de amor com uma pessoa que mal conhece: “Eu te vi numa revista grã-fina”, repete o refrão, sobre o mesmo e insistente acorde. A faixa-título encerra o lado A do disco com uma visão aterradora de um campo de concentração atemporal. A letra faz referência ao aprisionamento indígena, à guerra fria e ao filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, e termina aumentando o volume e a velocidade à medida que o vocal pergunta: “Quantos vivos ou mortos?” até atingir o máximo de ruído que quatro caras numa banda de rock podem fazer com apenas distorção de guitarras. O final – gritos abafados após rufares de tambor – é quase épico.
“The Commercial” reinicia o disco como a única instrumental de toda coleção (por isso mesmo, “a comercial”). Aqui, o grupo exercita seu entrosamento, deixando tanto baixo quanto bateria definirem momentos específicos da faixa. “Straight Line” critica a falta de maturidade masculina em relações amorosas: “Minha mente está a contragosto e sua carne é tão fraca/ Meus movimentos traem os segredos que penso?/ (…) Estou movendo numa linha reta?”, pergunta em menos de um minuto de um riff de guitarra que aos poucos se transforma na própria seqüência de acordes. “106 Beats That” (cuja seqüência de acordes foi ditada pelas letras de uma estação de trem por onde Graham Lewis passeava um dia) continua o questionamento sobre a sexualidade: “Com aplauso ele ascende/ Com mudança ele cresce/ Acha isso tão importante/ Odeia esperar/ Não estimula/ Gosta de celebração/ Não entende porque é tão engraçado/ O sexo”. “Mr. Suit” encerra a seqüência de faixas velozes com o típico brado antissistema do punk – “Cansei de me dizerem o que pensar/ Cansei de me dizerem o que fazer/ Cansei de farsas/ Isso, cansei de você” -, grita, com o dedo em riste, na cara do Sr. Terno-e-Gravata do título.
Entra a mais bela seqüência do disco. Começando com “Strange” (regravada pelo R.E.M. no disco Documento no. 5), ela arrasta duas duplas de acordes como se exercitasse os instrumentos numa maratona. O vocal antevê algo acontecendo, uma surpresa iminente: “Há algo estranho acontecendo hoje à noite/ Algo que não está certo/ Joey está nervoso e as luzes são claras/ Algo está acontecendo e não está certo”, o vocal de Colin soa ansioso e certo do que está falando, “Há algo que não havia antes/ Mantenha os olhos grudados no chão/ Ninguém irá salvar sua vida/ Há algo estranho acontecendo hoje à noite”. A banda é cativada pela atmosfera de paranóia e apreensão que domina a letra da canção, ecoando gritos que aos poucos “desligam” a banda, na pequena jam session em seu último minuto.
“Fragile” é o mais belo momento do disco. Com menos de um minuto e meio e quatro acordes, o Wire canta sua mais perfeita balada. Canta seu próprio amor “fugaz, que queima quando chega/ Frágil/ Precisando de mãos preciosas/ Frágil” e sua sensibilidade à flor da pele, estampada no tecido da canção. “Mannequin” transfere estes valores para o pop com duas seqüências de três acordes perfeitas, backing vocals apaixonados e sua letra do contra, atirando desta vez contra a beleza fútil das modelos: “Você é um desperdício de espaço/ Sem graça natural/ Tão magra/ Que mal começa”.
“Different to Me” começa a última parte do disco com o nervosismo que a questão central da letra passa: “Queria saber o que está acontecendo?”. Champs usa da ironia para acertar o ponto fraco do esporte: o vazio da agressividade, o berço da violência: “Outro morto, não chore/ Você tem velocidade/ E pode sangrar/ Mas isso é na próxima vez”. A balada punk “Feeling Called Love” questiona o amor e, na dúvida, pede para ser amado. “12XU” (o X funcionando como autocensura proposital, entrando no lugar de um certeiro “fuck”) cospe em direção a uma ex, vista “em uma revista/ beijando um cara”. “One, two/ Ex You!” grita o grupo contra quem possa se achar ofendido. É o fim do disco (não antes sem entrar o baixo melódico e um mesmo acorde de guitarra que conduzem “Options R”, a única inédita do CD).
Em pouco mais de meia hora, o Wire convence seus ouvintes que é possível ser agressivo e inteligente ao mesmo tempo, sem perda de intensidade para nenhum dos lados. A equação desenhada pelo grupo – muito o que dizer no menor tempo possível – renderia ainda dois bons discos, Chairs Missing e 154, mas sem o brilho genial de Pink Flag, talvez o disco que melhor resume o punk rock. E tudo que viria depois dele.