Belchior: “Viver é melhor que sonhar”

, por Alexandre Matias

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Resgatei, lá no meu blog no UOL, uma entrevista que Belchior deu em 1976 que captura a essência do Dylan cearense falecido no fim de semana.

“Viver é melhor que sonhar” – se conseguisse escolher um único verso para lembrar da importância de Belchior seria esse, parte do monumento chamado “Como Nossos Pais”, esse pequeno livro de contos em forma de canção eternizado por Elis Regina e também uma das melhores músicas da história de nosso país. Morto neste fim de semana, o ícone cearense finalmente foi eternizado após seu sumiço definitivo, em vez de ironizado como tantas vezes foi em outros sumiços recentes. Inevitavelmente o preço de seus discos em vinil irá disparar, mas felizmente ele pode ver seu clássico Alucinação ser reverenciado como um dos grandes discos da nossa história recente. Como acontece quase sempre, sua morte servirá de gatilho para entusiastas se debruçarem sobre sua obra, neófitos vagarem com mais atenção por sua discografia e para apresentá-lo para pessoas que só o reconheciam pelo nome – ou pelo indefectível bigode.

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Não vou emendar mais um texto sobre sua importância (deixo este a cargo de seu atual biógrafo, o grande Jotabê Medeiros, que escreveu a análise definitiva sobre o autor). Em vez disso, chamo o próprio compositor para falar em seu nome, resgatando uma entrevista que ele deu há mais de quarenta anos, à revista Hit Pop, quando lançava seu já festejado segundo álbum e destrinchava a filosofia daquele verso favorito meu, citado ao início: “O que é velho tem, realmente, que morrer”, reforçava na entrevista. Encontrei-a a reprodução do texto de Eduardo Athayde no ótimo blog Velhidade (vale perder umas duas horas fuçando em suas tags) e transcrevo-a a seguir:

Belchior: O que me interessa é amar e mudar

A cara larga de vaqueiro. A fome insaciável pelo novo. A rebeldia. A provocação. O indiscutível talento. Tudo isso somado, resulta em Belchior, nascido Antonio Carlos Gomes Belchior Fontinelli Fernandes, cearense de 29 anos.

E afirma, apenas, que é um “rapaz latino-americano”. E eu digo que isso quer significar três coisas: não cede, não concede, se impõe.

O seu novo LP, intitulado Alucinação, vai fazer a cabeça de todos os que estiverem atentos à música e principalmente à letra. É o LP do ano, não tenho a menor dúvida. Quem não se tocar, dançou. Reparem no repertório selecionado, todo de lavra sua: “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais”, “Sujeito de Sorte”, “Como o Diabo Gosta”, “Alucinação”, “Não Leve Flores”, “A Palo Seco”, “Fotografia 3 x 4”, “Antes do fim”.

Vou pecar pela repetição, mas acho que o trabalho de Belchior se resume no verso: quero que meu cantotorto feito faca corte a carne de vocês. O torto, no caso, talvez se reflita na simplicidade do fraseado musical. Mas o afiada da faca pinta em cada um dos versos que ele faz, ele que é um letrista da pesada.

É esse Belchior que vem com tudo – seu canto torto e sua lâmina afiada – nesta entrevista concedida com exclusividade para o Hit-Pop. É um papo comprido, do geral ao particular, sempre denso de ideais e ideias. Eu dou fé.

É possível rotular sua música?
Olha. Fundamentalmente, eu faço música nordestina contemporânea. Transo de xaxado, xote, baião. Mas não dispenso o elemento eletrônico e tampouco as influências que recebi. E foram várias, variadas: Luiz Gonzaga, Beatles, cantadores de feira, ciganos nas estradas do Ceará, música de igreja. Some esses elementos todos e você terá, digamos, uma arte mestiça…

E a latinidade? Qual é, de fato, a dimensão deste (novo) elemento musical chamado som latino-americano ou influenciado por ele?
O que me impressiona é a possibilidade de nós, latino-americanos, podermos nos comunicar com uma linguagem nova, comovente, revolucionária. Aliás, o tango argentino é a autêntica linguagem das minorias latino-americanas. É claro que não sou contra o blues, forma de expressão dos negros americanos. Nem sou contra o samba ou contra o rock – um grito da juventude. O que eu não gosto – de músicas ou letras apenas contemplativas, passivas. Eu falo – e devo falar – dos enganos que nós, os jovens, sofremos por ver nossas esperanças caírem por terra. Assim, não abro mão da agressão. Acho que é preciso fazer um trabalho irreverente e insolente. Caso contrário, vira aquele negócio de música de fundo de restaurante, sabe como é? As pessoas estão comendo e a arte serve apenas de relaxante, entretenimento. Facilitador da digestão.
Se o meu canto vai chegar a todas as pessoas, eu não sei. O que eu sei é que mantenho meu trabalho sob controle absoluto. Eu digo: “sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco. Por favor, não saque a arma no saloon, eu sou apenas o cantor…”

Você imagina ter sua obra imortalizada, assim com os clássicos da música popular brasileira?
Não me interessa, como artista, produzir e criar pensando na eternidade da obra. Eu quero dar toques, e isso é fundamental para mim, pois o homem é o fim e o objetivo de si mesmo. Eternidade não é um dado humano, comum. Aliás, em qualquer nível é uma farsa, uma mentira. Sou contra. Eternidade é o tédio dos deuses, que gostariam de ser mortais. Minha ligação é com a terra, ouça: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Longe o profeta que a Laranja Mecânica anuncia. Amar e mudar as coisas me interessa mais!” Essa é a minha proposta. Isto é, suportar o dia-a-d-a e a experiência com coisas reais.

Seu novo LP está na praça, seu talento é reconhecido, a crítica elogia. Como você encara o sucesso?
O sucesso me interessa porque me dá possibilidade dedizer e cantar até chegar às pessoas. O disco é a chance que o artista tem, em se oferecer integralmente, com suas ideias, mensagens, reflexões. Neste momento, estou montando minha banda, para correr todo o Brasil. Já estou com o Liminha, o Áureo de Souza, o Rick, só busco um tecladista.
O meu disco tem um título que eu gosto, Alucinação. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade. Eu estou tranquilo quanto às consequências do meu trabalho. Acho importante que ele cause polêmica. É para desafinar mesmo! Desafinar sempre, que esse é o desafio. Hoje em dia, já não se pode mais criar sem correr riscos. E eu quero enfrenta-los. Minha expectativa é para os jovens compositores. Sobre eles, recaem todas as dificuldades pra fazer qualquer coisa. E também costumo tomar o trabalho de compositores mais velhos como marco para começar tudo de novo. Artista reconhecido é importante, claro, mas no momento eu quero dar as mãos a Fagner, Alceu Valença, Luís Melodia, Ednardo, Marcos Vinícius… A todo o pessoal dessa geração violentada. Temos que encontrar uma forma de mostrar que estamos vivos. E isso só se consegue fugindo do convencional, optando definitivamente pela juventude. A cultura precisa se rejuvenescer sempre voltada para a nossa realidade. O que é velho tem, realmente, que morrer. Até agora, com raras exceções, a música tem sido uma forma artística com tendências à fuga, à evasão. Meu trabalho é uma colocação do real, pois nada muda por si mesmo…

Essas transas de misticismo, ioga, oriente… Elas têm significado pra você?
Fui criado comendo boi com abóbora, no interior do Ceará. Por isso, tenho a mente aberta para ver se existe algo, nisso tudo que você fala. Mas sou completamente desinteressado. Não acredito, não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões. Sinto necessidade de falar das aspirações imediatas: dormir, comer, sentir alegria, dor, prazer, tristeza, coisas claras, entende? Não sou, de fato, místico. Sou mal comportado por opção: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém.”

Como é que foi sua vinda para o sul, a barra que você encarou?
Minha família é nordestina, patriarcal. Somos 23 irmãos, vendo com grandeza e honradez o trabalho que fazíamos com as mãos. Aos 16 anos, eu não aguentei a barra, saí de casa, tentando buscar uma alternativa… Não vejo mal nenhum em sair por aí, botar o pé na estada. O nordestino tem a alma de emigrante, é uma ave de arribação, como diz Luiz Gonzaga, em “Asa Branca”. O jovem nordestino quer, um dia, voltar para lá, mas sempre tem necessidade de sair. Agora, quem põe o pé na estrada precisa estar preparado para aguentar a barra. De 1971 até hoje, o negócio não foi fácil. Dormi em muita calçada. Segurei de perto a barra da Lapa (RJ). Senti fome e frio. Fiquei de pires na mão, nas salas de espera das gravadoras. Hoje, comparando, digo que fazer beicinho porque o papai não deu grana pro cinema é a mais completa infantilidade. Não passa disso. As soluções estão dentro da gente, é lá que a gente deve ir buscá-las. É como digo em “Fotografia em 3 x 4: “Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava, pedia meus documentos e depois sorria, examinando o 3 x 4 da fotografia e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.”

Qual a alternativa que você sugere?
Cada um tem a sua. Pelo amor, sexo, conhecimento, experiência de vida, o jovem, isolado, terá tempo de refletir e encontrar o seu próprio caminho. É o toque que eu dou, por exemplo, na música “Como o Diabo Gosta”.

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