Introdução a Thomas Piketty
O Capital no Século 21, do economista francês Thomas Piketty, foi lançado em agosto do ano passado e desde então vem causando um amplo debate entre os economistas sobre a questão da desigualdade de renda. O livro é um catatau de quase 700 páginas e de leitura tranquila, mesmo para quem não está habituado a ler livros de economia, e superpõe conceitos marxistas a uma versão acadêmica do slogan “Nós somos 99%” do movimento Occupy Wall Street, que mostra o abismo que separa 99% do resto da população do 1% de uma elite de multibilionários. Sua proposta é clara: se as coisas não mudarem de rumo, principalmente no que diz respeito à concentração de renda e a desigualdade social, o mundo entrará em colapso.
O livro, contudo, não é só um lamento sobre o estado das coisas como também propõe soluções. O Capital no Século 21 será lançado em português pela editora Intrínseca no dia primeiro de novembro, mas a editora Veneta já antecipou sua publicação ao lançar a coletânea Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos, organizada em parceria com o Le Monde Diplomatique Brasil, reúne 11 artigos de nomes como Luiz Gonzaga Belluzo, Kostas Vergopoulos, Frédéric Panier, Geoffrey Geuens, Russel Jacoby, Samuel Pinheiros Guimarães e do próprio Piketty. O livro tem 144 páginas, custa R$ 24,90 e já está nas livrarias. Abaixo, a introdução da antologia, escrita pelo professor brasileiro Ladislau Dowbor, foi cedida pela editora para ser republicada abaixo – e tanto o texto abaixo quanto os outros no livro funcionam como aperitivo e contraponto à discussão aberta por Piketty em seu livro, que já pode ser considerados um dos livros mais importantes deste século.
Entender a desigualdade: reflexões sobre O Capital no Século XXI¹, por Ladislau Dowbor
20 de junho de 2014
O livro de Thomas Piketty está nos fazendo refletir, não só na esquerda, mas em todo o espectro político. Cada um, naturalmente, digere os argumentos, e em particular a arquitetura teórica do volume, à sua maneira. O estudo é amplo e não se trata de resumi-lo, e sim de apontar alguns eixos interessantes de deslocamento da discussão sobre o que está acontecendo com as nossas economias. Inclusive como tira-gosto para a leitura do original.
A verdade é que Thomas Piketty, com a força da juventude e uma saudável distância das polarizações ideológicas que tanto permeiam a análise econômica, abriu novas janelas, trouxe vento fresco, nos permitiu deslocar a visão. Se bem que o problema da distribuição da renda sempre estivesse presente nas discussões, a teoria econômica terminou centrando-se muito mais no PIB, na produção de bens e serviços, e muito insuficientemente na repartição e nos mecanismos que aumentam ou reduzem a desigualdade.
Esta atingiu níveis obscenos. Quando uma centena de pessoas são donas de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto um bilhão de pessoas passa fome, francamente, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental avançada. Um sistema que sabe produzir, mas não sabe distribuir, é tão funcional quanto a metade de uma roda. Para quem controla o sistema, no nível das elites, ou consegue nele se agarrar, no nível da classe média, o processo parece funcional. Para o grosso da humanidade, há dúvidas sobre esta funcionalidade.
Já não se fazem pobres como antigamente. Aqueles bons pobres que diziam humildemente “sim sinhô” nas fazendas do interior, ou os indígenas de cabeça baixa, ou os africanos do bwana, ou ainda os coolies da Ásia, toda esta gente hoje tem hoje informação e consciência de que poderiam ter acesso a uma escola decente para os seus filhos, saúde para as suas famílias, um tratamento menos desigual nos confrontos do cotidiano. Há um imenso saco cheio que hoje varre o planeta. A progressiva desagregação e perda de governança planetária tem um denominador comum: o contrato social que deveria embasar o nosso convívio como sociedades está cada vez mais corrompido, e a desigualdade está no centro deste processo.
Um amplo estudo do Banco Mundial ajudou bastante ao mostrar que basicamente quem nasce pobre permanece pobre, e que quem enriquece é porque já nasceu bem. É a chamada armadilha da pobreza, a poverty trap. Esta pesquisa mostrou que a pobreza simplesmente trava as oportunidades para dela sair. Com Amartya Sen passamos a entender a pobreza como falta de liberdade de escolher a vida que se quer levar, como privação de opções. O excelente La Hora de la Igualdad da CEPAL mostrou que a América Latina e o Caribe atingiram um grau de desigualdade que exige que centremos as nossas estratégias de desenvolvimento em torno a esta questão. Isto para mencionar algumas iniciativas básicas. O livro do Piketty não surge do nada, sistematiza um conjunto de visões que vinham sendo construídas.
E há naturalmente o acompanhamento do desastre crescente através de tantas instituições de estudos estatísticos. Hoje conhecemos o tamanho do rombo, temos dados para tudo, sabemos quem são os pobres. O The Next 4 Billion do Banco Mundial mostra que temos quase dois terços da população do planeta “sem acesso aos benefícios da globalização”, outros dados nos mostram os dois bilhões que vivem com menos de dois dólares ao dia, outros ainda se debruçam sobre os que vivem com menos de 1,25 dólar ao dia (um pouco mais de um bilhão de pessoas), temos inclusive os detalhes dos 180 milhões de crianças que passam fome, de 4 milhões de crianças que morrem anualmente por não ter acesso a uma coisa tão elementar como água limpa. O Working for the Few, da Oxfam/UK, apresenta uma visão geral da desigualdade, em particular a da riqueza (patrimônio familiar acumulado), que ultrapassa de longe a desigualdade da renda.
Os próprios mecanismos foram se tornando mais claros nos últimos anos. O Tax Justice Network mostra que os ricos detêm em paraísos fiscais entre 21 e 32 trilhões de dólares, entre um terço e metade do PIB mundial, escapando por tanto da tributação. O Economist confirma estes dados e os arredonda para 20 trilhões. O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica mostra em pesquisa planetária que 147 grupos controlam 40% do capital corporativo mundial, sendo três quartos deles bancos, intermediários financeiros e não produtores. Basicamente, a partir dos anos 1980 o capitalismo entra na fase de dominação dos intermediários financeiros sobre os processos produtivos – o rabo passa a abanar o cachorro (the tail wags the dog) é a expressão usada por americanos como Joel Kurtzmann – e com isto a desigualdade entra no processo cumulativo de desigualdade.
Os nossos dilemas não são misteriosos. Estamos administrando o planeta para uma minoria, através de um modelo de produção e consumo que acaba com os nossos recursos naturais, transformando o binômio desigualdade/meio ambiente numa autêntica catástrofe em câmara lenta. Enquanto isto, os recursos necessários para financiar as políticas de equilíbrio estão girando na ciranda dos intermediários financeiros, na mão de algumas centenas de grupos que sequer conseguem administrar com um mínimo de competência as massas de dinheiro que controlam. O desafio, obviamente, é reorientar os recursos para financiar as políticas sociais destinadas a gerar uma economia inclusiva, e para financiar a reconversão dos processos de produção e de consumo que revertam a destruição do meio ambiente.
Falta convencer, naturalmente, o 1% que controla este universo financeiro diretamente através dos bancos e outras instituições e crescentemente de modo indireto através da apropriação dos processos políticos e das legislações. As pessoas não entendem o que é um bilionário, e realmente não é um desafio que faz parte do nosso cotidiano. Mas uma forma simples de entender esta estranha criatura nos é apresentada por Susan George: um bilhão de dólares aplicados em modestos 5% ao ano numa poupança, rendem ao seu proprietário 137 mil dólares ao dia. O que ele vai fazer com este dinheiro? Por mais guloso que seja o bilionário, não há caviar que resolva. O dinheiro, portanto, é reaplicado, e a fortuna se transforma numa bola de neve, gerando os super-ricos, os que literalmente não sabem o que fazer com o seu dinheiro.
Um segundo mecanismo a ser entendido, é a diferença entre a renda e o patrimônio. A renda é anual – resultado de salário, de aluguéis, do rendimento de aplicações financeiras etc. – enquanto o patrimônio (net household wealth, patrimônio domiciliar líquido) – constitui a riqueza acumulada, sob forma de casas, contas bancárias (menos dívidas), ações e outras formas de riqueza. A verdade é que quem ganha pouco compra roupa para os filhos, paga aluguel, gasta uma grande parte da sua renda em comida e transporte, e não compra belas casas, fazendas e iates, e muito menos ainda faz aplicações financeiras de alto rendimento. O pobre gasta, o rico acumula. Sem processo redistributivo, gera-se uma dinâmica insustentável a prazo.
Como este rendimento não pode ser absorvido pelo consumo individual, transforma-se em mais aplicações, gerando uma espiral ascendente de enriquecimento, enquanto a renda das famílias na base da sociedade estagna. Gera-se assim um processo cumulativo de desigualdade. A partir de um certo nível, o grosso do ganho resulta não do esforço produtivo, mas do próprio mecanismo de aplicações financeiras.
Nas cifras da tabela acima, do Crédit Suisse, banco que tem tudo para entender de fortunas acumuladas, constatamos que 0,7% da população mundial, 32 milhões de pessoas, se apropriaram de 41% da riqueza do planeta (patrimônio acumulado, não renda), enquanto 68,7%, 3,2 bilhões de pessoas com patrimônio inferior a 10 mil dólares têm apenas 3%. Cifras muito mais interessantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente. ²
Não só a riqueza se acumula no topo da pirâmide social, mas o rendimento financeiro, que é como os muito ricos acumulam, evolui num ritmo muito superior a crescimento da economia em geral. As grandes fortunas, inclusive, permitem aplicações financeiras de alto rendimento, muito além das pequenas aplicações típicas da classe média. Tomando o exemplo do fundo de aplicações da universidade de Harvard, cujos dados são abertos e detalhados no longo prazo, trata-se de rendimentos da ordem de 10% líquidos, enquanto a economia cresce entre 1,5 e 2%.
O fato do livro do Piketty se basear na distinção entre o fluxo anual de renda e o estoque de riqueza acumulada, permite assim deixar muito mais claro o processo cumulativo de desigualdade que se construiu na sociedade moderna. Como além disto o poder político dos mais ricos permitiu passar leis que desregulam a especulação financeira e que reduzem drasticamente o imposto sobre a fortuna ou sobre transmissões de herança, fica clara a falha estrutural do sistema em termos de equilíbrios de longo prazo. ³ “A evolução geral não deixa nenhuma dúvida: para além das bolhas, estamos assistindo sim a um grande retorno do capital privado nos países ricos desde os anos 1970, ou melhor à emergência de um novo capitalismo patrimonial”.(273)
As projeções para o nosso século, que é o que Piketty apresenta, mostram a necessidade de intervenções reguladoras: “Uma conclusão parece desde se delinear com clareza: seria ilusório imaginar que exista na estrutura do crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que levem naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a uma harmoniosa estabilização” (598)
O livro do Piketty não é apenas muito bom, é oportuno. Pois é nesta situação explosiva de desigualdade no planeta, quando até Davos (Davos, meu Deus!) clama que a situação é insustentável, que surge uma explicitação de como se dão os principais mecanismos que geram a desigualdade, como evoluíram no longo prazo, como se apresentam no limiar do século XXI, e em particular como o problema pode ser enfrentado.
O raciocínio básico é simples e transparente: os avanços produtivos do planeta se situam na ordem de 1,5% a 2% ao ano, enquanto as aplicações financeiras dos que possuem capital acumulado aumentam numa ordem superior a 5%. Isto significa que uma parte crescente do que o planeta produz passa para a propriedade dos detentores de capital, que passam a viver da renda que este capital gera, o que justamente nos leva à fantástica concentração de riqueza nas mãos de poucos. E do lado propositivo, esperar que mecanismos econômicos resolvam o desequilíbrio crescente faz pouco sentido: precisamos criar ou expandir, segundo os casos, um imposto progressivo sobre o capital. O que inclusive seria produtivo, pois incitaria os seus detentores a buscar realizar investimentos produtivos em vez de observarem sentados o crescimento das suas aplicações financeiras.
Utópico? Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. E tributar o capital parado nas cirandas financeiras, rendendo sem produção correspondente, é particularmente interessante. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões, e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero, e geraria o equivalente a 2% do PIB europeu (cerca de 300 bilhões de euros), o suficiente para liquidar por exemplo o endividamento público em pouco anos, e tirar os países membros das mãos dos intermediários financeiros. (889). Seria um bom primeiro passo.
É interessante puxar esta análise para a realidade brasileira. Na listagem da Forbes2014 apresenta-se os 15 bilionários do país. ⁴
1) Marinho, Organizações Globo, US$ 28,9 bilhões
2) Safra, Banco Safra, US$ 20,1 bilhões
3) Ermírio de Moraes, Grupo Votorantim, US$ 15,4 bilhões
4) Moreira Salles, Itaú/Unibanco, US$ 12,4 bilhões
5) Camargo, Grupo Camargo Corrêa, US$ 8 bilhões
6) Villela, holding Itaúsa, US$ 5 bilhões
7) Maggi, Soja, US$ 4,9 bilhões
8) Aguiar, Bradesco, US$ 4,5 bilhões
9) Batista, JBS, US$ 4,3 bilhões
10) Odebrecht, Organização Odebrecht US$ 3,9 bilhões
11) Civita, Grupo Abril, US$ 3,3 bilhões
12) Setubal, Itaú, US$ 3,3 bilhões
13) Igel, Grupo Ultra, US$ 3,2 bilhões
14) Marcondes Penido, CCR, US$ 2,8 bilhões
15) Feffer, Grupo Suzano, US$ 2,3 bilhões
Veja-se que se trata essencialmente de bancos (concessão pública, com carta patente, para trabalhar com dinheiro do público); de meios de comunicação (concessão pública de banda de espectro eletromagnético para prestar serviço de comunicação à população); de construtoras (as grandes, que trabalham com contratos públicos, nas condições que conhecemos); e de exploração de recursos naturais (solo, água, minérios) que são do país e que não precisaram produzir: o Imposto Territorial Rural, por exemplo, praticamente não existe no Brasil. É o divórcio crescente entre quem enriquece e quem contribui para o país. Piketty é claro: “A experiência histórica indica ademais que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm grande coisa a ver com o espírito empreendedor, e não têm nenhuma utilidade para o crescimento”. (944)
Novo? Não, não é novo, mas é apresentado no livro do Piketty de maneira muito legível (inclusive para não economistas), extremamente bem documentada, e com uma clareza na explicação passo a passo que transforma a obra numa ferramenta de trabalho de primeira ordem.
1) Thomas Piketty – Le capital au XXIo siècle – Paris, Seuil, 2013 (edição em inglês e em espanhol disponíveis online, em português prevista para novembro) – Os números no nosso texto se referem às páginas desta edição original francesa.
2) Sobre estes dados, ver o excelente relatório da OXFAM, 2014; a tabela do Crédit Suisse está na p. 9
3) Piketty aponta “o interesse em se representar assim a evolução histórica da relação capital/renda e de se explorar desta maneira as contas nacionais em termos de estoque e de fluxo”. Thomas Piketty, Le Capital au XXIo Siècle, p. 305.
4) Ver artigo.
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