A morte de Adam Yauch e a importância dos Beastie Boys

, por Alexandre Matias

Não dá para ter a menor idéia do impacto que os Beastie Boys tiveram quando apareceram para o resto do planeta há mais de um quarto de século. Não lembro quando foi que ouvi falar deles pela primeira vez – provavelmente via Bizz, mas o rádio também era uma boa fonte de notícias sobre música naqueles tempos -, mas a mera descrição do trio desafiava a compreensão daquela década tão careta: era um grupo de rap formado por adolescentes nova-iorquinos brancos rimando palavrões e perversões sexuais sobre riffs do AC/DC e do Led Zeppelin. Isso numa época em que o rap tinha meros cinco anos de idade e só há pouco começava a descobrir seu papel social como “a CNN dos negros”, resumiria Chuck D anos depois. Num tempo em que não se sampleava música dos outros (o verbo sequer existia) e os gêneros musicais eram separados por paredes mais firmes que o Muro de Berlim. Quando era moralmente antiético falar palavrões em público – um dos trampolins para o sucesso dos Sex Pistols fora da Inglaterra foi o fato da banda falar “fuck” em um programa de TV. A simples aparição dos Beastie Boys já havia gerado controvérsia o suficiente para que a sociedade norte-americana discutisse a criação de um selo nas capas de discos indicando que o conteúdo musical era impróprio para menores. Essas pequenas notícias se misturavam ao fato de que os Beastie Boys eram nomes com uma popularidade em clara ascensão e seu primeiro disco – Lincensed to Ill – vendia mais a cada semana – até se transformar no primeiro disco de rap a chegar ao topo da parada da Billboard e o disco de rap mais vendido nos anos 80.

Mas lembro-me direitinho da primeira vez em que pude ver o trio em ação – as fotos faziam o grupo parecer apenas três moleques tirando onda de popstar, não uma banda de verdade. E o clipe de “No Sleep Till Brooklyn”, que gravei num velho VHS que tenho em algum lugar aqui em casa, mostrava que não era só isso. Eles sim eram três moleques tirando onda de popstar, mas também eram personagens de um filme adolescente, um trio de comédias, rindo de coisas que ninguém ria porque não tinham a faixa etária adequada para entender aquele humor.

O clipe começa com um empresário esperando uma banda aparecer para fazer o show. Batem à porta, são os Beastie Boys. “Nós somos a banda”, MCA é o primeiro a abrir a boca. “A banda? Cadê seus instrumentos?” e Ad-Rock mostra um disco. “What the…”, pausa o empresário antes de quebrar o vinil na cabeça do jovem Jerry Lewis e bater a porta na cara dos três. Batem à porta de novo, são os Beastie Boys com perucas e uma guitarra no ombro, falando como se fossem roqueiros de araque. O empresário sorri feliz e os coloca para tocar no palco, mas logo que a música começa o grupo começa a se desfazer de sua fantasia – na marra – para mostrar que são do rap. E da quebradeira.

O que se assiste é uma crítica pesada à indústria fonográfica e seus mecanismos de sucesso, contrapondo a arruaça contínua daquele hip hop branco com os piores chavões do rock fonográfico dos anos 80 – o hair metal, a importância do solo de guitarra, as groupies, as fantasias, o comportamento no palco. O clipe começa com os três fantasiados de banda de hard rock fuleira e antes do refrão ser cantado pela primeira vez, o grupo é deixado usando apenas cuecas para logo depois surgirem com seu próprio uniforme: jeans, camiseta, tênis, boné, óculos escuro, jaqueta de couro. Não bastassem tirar o rock do palco para substitui-lo com uma letra que é pura tiração de onda (lembro de ter detectado “Beastie Boys always on vacation” na primeira vez que ouvi a música – e do impacto deste conceito), os Beastie Boys ainda destroem o palco (Ad-Rock usa um taco de beisebol para destruir amplificadores, Mike D quebra uma guitarra, Yauch metralha – ! – uma parede de Marshalls) e fogem com o dinheiro, encerrando o clipe com uma cena em que arrombam o cofre da casa noturna como se fossem os irmãos Marx (britadeira, pé de cabra, estetoscópio). Com o cofre aberto, eles fogem com o dinheiro em sacos com um cifrão desenhado, não sem antes passar pelo palco e exibi-lo ao público. Os irmãos Metralha venceram.

De repente eu consegui entender o impacto dos Sex Pistols no final dos anos 70, os cabelos compridos dos Beatles no início dos anos 60, Elvis não ser filmado do quadril para baixo em sua primeira apresentação no programa de Ed Sullivan. Tinha apenas doze anos, mas gostava de ler sobre os mitos e causos da história do rock, que transformaria em mitologia pessoal durante minha adolescência, e inevitavelmente me levaria a definir alguns rumos na minha vida (não estou escrevendo isso por outro motivo, afinal). E sempre que tentava absorver o impacto de um Led Zeppelin ou dos Mutantes em seu tempo, sentia que estava perdendo algo. Justamente o ponto central da transgressão, afinal uma vez que ela transgride, estabelece um novo limite. Os quadris de Elvis eram quase ingênuos, nasci na mesma época da disco music, assistia às Chacretes na TV no sábado à tarde. Os cabelos dos Beatles eram longos na época da Beatlemania? Por que tinham franja e deixavam cobrir as orelhas? A regra entre todos os artistas nos anos 80 eram cabelos compridos – e tanto pra gente do rock quanto do country, da MPB, do jazz, da dance music. Era impossível entender como homens de cabelos compridos podiam ser algo transgressor. Mesmo o palavrão dos Sex Pistols era minimizado pelo refrão de “Bichos Escrotos” dos Titãs ou pela íntegra do terceiro disco do Camisa de Vênus, o censurado Viva!

Aí vêm os Beastie Boys e facilitam o entendimento destes choques anteriores para a minha geração. Havia o fator putaria, originalmente concentrado nos quadris de Elvis e expandido para jaulas que, nos shows dos Beasties, abrigavam go-go girls – algumas delas puxadas do próprio público. Havia o fator diversão e acabação, uma versão turbinada da Beatlemania com PCP no lugar de anfetamina e o ethos do hard rock substituindo o cânone da primeira geração do rock’n’roll. O choque dos Sex Pistols também estava no DNA do trio, que parecia ter surgido com o único intuito de escandalizar o público. Outras formas de afrontas históricas do mundo pop eram referidas à medida em que a banda crescia – quartos de hotel destruídos como nos clássicos causos do Led Zeppelin, o grupo se apresentava com um pênis inflável gigante como os Stones faziam no início dos anos 70, eram comuns brigas entre a banda e o público, um gesto que ecoava shows de artistas tão diferentes quanto o Pink Floyd e o Clash. E por pouco não batizaram seu primeiro disco de Don’t Be a Faggot – Não Seja Viado, em português claro.

Eram o gêmeo mau de Ferris Bueller, o Charlie Sheen que a irmã de Ferris encontra na delegacia ao final de Curtindo a Vida Adoidado, o prenúncio da vinda de Bart Simpson. Um filme de humor negro de John Hughes, o Clube dos Cafajestes de John Landis às vésperas do século 21. Não foi por outro motivo que conseguiram levar o hip hop para um público que adorava aquele novo ritmo, mas se identificava de outra forma – menos racial – com a violência, a pobreza e a opressão da cidade grande. Não eram uma gangue de rua, eram uma turma do fundão.

E, como os quadris de Elvis, os cabelos dos Beatles e o “fuck” dos Sex Pistols, aquilo só horrorizava os mais velhos. Quem regulava na faixa etária do grupo – ou menos, como era o meu caso e de toda a minha geração nascida nos anos 70 – sentia até um certo alívio ao vê-los em ação. Parecia que havíamos sido libertado de um pop careta que aos poucos transformava o rock’n’roll em uma guitarra de plástico de videogame. Os Beastie Boys apavoravam uma cena que tinha como seus principais nomes gigantes como Prince, Bruce Springsteen, Dire Straits, Supertramp, Madonna, Van Halen, Michael Jackson – carreiras surgida com a transformação de todo o excesso cafona dos anos 70 em um modelo de negócios. Richard Gere no papel de Elvis Presley. Os Beastie Boys apareciam como três personagens dos Looney Tunes segurando o riso em uma cerimônia religiosa, como se Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão fosse Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Tudo isso dentro do imaginário clássico do rock que fez com que o trocadilho infame do nome do grupo os colocasse eternamente entre os Beach Boys e os Beatles nas prateleiras de disco.

E isso tudo foi apenas o primeiro momento da banda (na verdade, o segundo; o primeiro foi a brevíssima carreira como uma das primeiras bandas de hardcore de Nova York, que penava por ser do Brooklyn numa época em que Nova York era sinônimo de Manhattan). Para além do primeiro disco, quando romperam com o produtor que os colocou no mapa (o mesmo Rick Rubin que gravaria os melhores discos do Red Hot Chili Peppers e ressuscitaria a carreira de Johnny Cash) e com a gravadora que os lançou (a pioneira Def Jam de Russell Simmons, que também lançou o Run DMC e LL Cool J, entre muitos dos primeiros nomes do hip hop).

Assinaram com a Capitol Records e mudaram-se para Los Angeles, onde conheceram a dupla de produtores Dust Brothers e piraram na nova autonomia na Costa Oeste dos EUA. Com rimas que pareciam falar sobre qualquer tipo de assunto (a história da ciência, beisebol, Bob Dylan, perseguições policiais, filmes dos anos 70), elas encontraram a base perfeita na colagem magnífica feita pela dupla John King e Mike Simpson (que anos mais tarde produziria o disco Odelay, do Beck). Os Dust Brothers levavam a iniciante arte do sample para uma outra dimensão, colidindo trechos curtos de filmes e músicas com bases tiradas de loops improváveis. Paul’s Boutique, o segundo disco dos Beastie Boys, é uma enorme colagem caótica de referências enciclopédicas tanto nas vozes dos três MCs quanto na sequência interminável de citações musicais usadas sem que, na época, houvesse qualquer tipo de legislação sobre tal uso de samples. Por isso, um disco que originou discos que só puderam sair em determinados países específicos, devido ao excesso de citações (o belga As Heard on Radio Soulwax Pt. 2, do 2ManyDJs, e o australiano Since I Left You, dos Avalanches) teve uma máquina de marketing global a seu favor. Não foi nem de longe o sucesso instantâneo do primeiro disco. Mas funcionou como o Sgt. Pepper’s para seu público – a colagem não estava mais na capa, e sim no próprio som, e era – é – possível debruçar-se sobre o Paul’s Boutique repetidas vezes, contemplando apenas algumas facetas de sua genialidade. Não à toa a mesma Rolling Stone que cravou “Três idiotas compõem uma obra-prima” sobre Licensed to Ill, explicava que Paul’s Boutique era “o Dark Side of the Moon/Pet Sounds desta nova geração”.

Em dois discos, o trio foi de um extremo a outro e assim mapeou sua área de atuação – entre o mais brega e o mais cool, o mais inconsequente e o mais canônico -, abrindo o caminho para dominar os anos 90. Foi o que fizeram – e, à medida em que a década passava, foram aos poucos deixando a irresponsabilidade de lado para ampliar ainda mais os próprios horizontes. Logo tinham sua própria gravadora (a Grand Royal, que lançou Luscious Jackson, Sean Lennon, Ben Lee, entre outros), seu estúdio, sua quadra de basquete, sua revista (a impagável Grande Royal Magazine) e eram responsáveis não apenas por uma banda, mas por uma carreira. O conceito mágico de “No Sleep Till Brooklyn” (“Beastie Boys always on vacation”) poderia ser adaptado para o mundo dos negócios. A maturidade financeira, no entanto, foi conseqüência de outro amadurecimento, o individual. O primeiro a rever seus conceitos em público foi Adam Yauch, que abria sua participação no quarto disco da banda, Ill Communication, desculpando-se pela misoginia dos discos anteriores, como diz na letra de “Sure Shot”:

“I want to say a little something that’s long overdue
The disrespect to women has got to be through
To all the mothers and the sisters and the wives and friends
I want to offer my love and respect to the end”

O mesmo beastie boy que era obcecado por armas também fez seu mea culpa sobre o assunto mais tarde, ao assumir o budismo como religião e o Tibet como causa – foi Yauch quem bolou o Tibetan Freedom Concert, concerto beneficente que em 1996 reuniu nomes como De La Soul, Fugees, Sonic Youth, Beck, Foo Fighters, Björk, Smashing Pumpkins, A Tribe Called Quest, Pavement, John Lee Hooker, Red Hot Chili Peppers, Rage Against the Machine, Skatalites, Yoko Ono e os próprios Beastie Boys, entre outros, e que se repetiu por mais cinco anos. Sua voz ríspida e grave já era o contraponto perfeito para as vozes esganiçadas de Mike D e Ad-Rock e o fato de assumir o baixo quando o trio voltava a ser uma banda (com Mike na batera, e Ad-Rock na guitarra) reforçava o papel de terra firme que MCA tinha junto ao trio. Suas contribuições para o imaginário da banda reforçam este papel: além de diretor de clipes sensacionais sob o pseudônimo de Nathaniel Hornblower (mandando um “Imma Let You Finish” impagável na MTV anos antes de Kanye West), tinha sua própria produtora de filmes (sem sua Oscilloscope não teríamos Precisamos Falar Sobre Kevin, Exit Throught the Gift Shop de Banksy, A Film Unfinished, O Mensageiro, o Howl com James Franco, entre outros) e dirigiu seu documentário sobre basquete (Gunning for That #1 Spot) e outro sobre sua própria banda (Awesome; I Fuckin’ Shot That!, com imagens feitas pelo público), além de ter feito um dos riffs de baixo mais emblemáticos da história do rock, com “Sabotage“.

Soube de sua morte de forma quase casual – Douglas veio comentar algo comigo achando que eu já tinha ouvido a notícia -, e até agora a ficha não caiu direito. Assisti a dois shows dos Beastie Boys na vida (o histórico concerto em 1995 no Olympia, com abertura do Planet Hemp, e a apresentação strictly hip hop que fizeram dez anos depois no Tim Festival no Rio de Janeiro) e os encontrei comprando discos na Tracks, na Gávea, após o segundo show, indo cumprimentá-los pelo show e pela influência positiva em minha vida. O sorriso de MCA ao ouvir aquilo me pareceu sincero por ser familiar – parecia que eu estava só encontrando pessoalmente um amigo que já conhecia faz tempo. E mesmo que a idéia de sua ausência no planeta ainda não tenha sido digerida (nem por mim nem por tantos outros marmanjos compadres e meninas espertas com quem tive a oportunidade de lamentar a passagem do cidadão, todos engolindo em seco e segurando a lágrima no olho), uma coisa eu soube na hora da notícia: não haveria mais Beastie Boys.

Adam Horovitz e Michael Diamond sabem disso melhor que a gente. Eles eram três e os dois restantes vão continuar sendo beastie boys para o resto da vida. Mas a tríade perfeita deformada pela morte de Yauch foi dissolvida, não faz o menor sentido tentar voltar com o grupo, embora isso não invalide a continuação de suas carreiras musicais. Mas soube – no momento em que ouvi a notícia na redação em que trabalho todos os dias – que aquele grupo que me ensinou o conceito de ousadia e diversão que funciona até hoje como um dos nortes da minha vida, não existiria mais. E que só me restava agradecer por tantos anos de farra, folia e expansão de consciência.

Namasté!

Tags: ,