2007: À Sombra do Sete

, por Alexandre Matias

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Anos terminados em sete testemunham grandes transformações comportamentais e gestam embriões que transformarão anos seguintes. Na verdade, consagram idéias que haviam sido lançadas no ano anterior colocando-as em prática na marra. Como nossa conta (el roque) começa nos anos 50, vale recapitular os cinco antecedentes de 2007, antes de começarmos a revê-lo.

1957 assistiu à aceitação em massa do rock’n’roll quando os EUA abraçam Elvis Presley. O rei aparece pela primeira vez de corpo inteiro no programa Ed Sullivan, exibindo para todo o país seu rebolado do demo. Logo o mostraria para o resto do mundo, quando conquistou o trono do novo gênero com o filme Prisioneiro do Rock (também de 57). Foi o mesmo ano em que comprou a mansão que se tornaria a primeira Meca de nosso cânone, Graceland. Do outro lado do Atlântico, numa quermesse de uma igreja em Liverpool (nossa segunda Meca), um certo John parou para ouvir um moleque dois anos mais novo, um tal Paul, tocar o solo de “20 Flight Rock”, uma das inúmeras canções libertárias americanas que os europeus ouviam através do rádio – não dava pra gravar música do rádio naquela época, imagina a tiração de onda. Naquele mesmo ano seria fundado o Cavern Club, em que a futura banda da dupla partiria rumo à sonhada dominação mundial. Cinqüenta e sete ainda foi o ano em que a geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, os tais baby boomers, começa a por as manguinhas de fora – muito justamente pelo estabelecimento do rock’n’roll como nova comunicação e ponto de partida para uma fração nova no imaginário mundial, o adolescente. No mesmo ano, são publicadas as obras iniciais do movimento beat, Uivo e Pé na Estrada, e aos poucos a cultura pop (arte feita pra vender) começa a ganhar relevância para o planeta.

Dez anos depois, a Inglaterra já havia invadido os EUA com pelo menos uma dezena de bandas que estabeleceram-se como cânones clássicos da nossa história e o rock (não mais rock’n’roll) já é um fenômeno global, influenciando diferentes modalidades da cultura popular. É o ano seguinte ao da descoberta da psicodelia, quando o movimento hippie junta o barroco vaudeville da Swinging London com o rock de garagem hippie da esquina das ruas Haight e Ashbury, na Califórnia numa mesma suruba. O ano de Sgt. Pepper’s, do primeiro disco dos Doors, do Jefferson Airplane, do Velvet Underground e do Pink Floyd. O ano do verão do amor, do LSD, do festival de Monterey, quando Jimi Hendrix conquistar a Inglaterra e do Cream invade os EUA. O ano de “Respect”, “Sittin’ on the Dock of the Bay”, “A Whiter Shade of Pale” e “Itchicoo Park”. O ano em que os Stones topam trocar a letra de “Let’s Spend the Night Together” no programa de Ed Sullivan (“the night” virou “some time”) e o Doors não topa trocar a letra de “Light My Fire” no mesmo programa (apesar de mentir que fariam isso nos bastidores). A revista Rolling Stone é lançada e os Rolling Stones são presos na Inglaterra. O empresário dos Beatles (Brian Epstein) morre de overdose de pílulas para dormir, eles protagonizam a primeira transmissão via satélite para o planeta (apresentando “All You Need is Love”), inauguram a Apple (que logo os levará à ruína) e tomam sua primeira bola preta da crítica e do público, com o filme Magical Mystery Tour. É quando começam os primeiros protestos contra a Guerra do Vietnä, vem o início da revolução sexual, Che Guevara é morto no sertão boliviano e a Inglaterra descriminaliza o homossexualismo ao mesmo tempo em que legaliza o aborto. Há uma sensação de plena transformação no ar e ela é posta em prática pelas pessoas, que começam a perceber-se parte de um coletivo gigantesco que habita todo o planeta. A TV via satélite, a ecologia e o mercado financeiro global são os principais veículos para esta consciência (com transmissões ao vivo do outro lado do planeta e taxas de câmbio corrigidas constantemente), mas o rock’n’roll – transatlântico, planetário, retribalista – canaliza todas as principais tensões da época.

1977 (“two sevens clash”) começa sob a égide de duas grandes manifestações – a discoteca e o punk rock – que já vinham crescendo entre Londres e Nova York como culturas distintas e filhotes da megalomania do rock nos anos 70. Enquanto o punk se firmava como anulação dos valores representados em bandas de rock progressivo, shows de arena, soft rock e pop baba, a disco vinha buscando, através do ritmo, pontos em comum entre diferentes manifestações estéticas da época. O ano vê a explosão destas duas tendências: a primeira na forma de uma banda-símbolo (o Sex Pistols) e de uma seqüência irrepreensível de discos clássicos (Never Mind the Bullocks… Here’s the Sex Pistols, os primeiros do Clash, do Talking Heads, do Jam e do Damned, o Pink Flag do WireMarquee Moon do Television, Blank Generation do Richard Hell, o My Aim is True do Elvis Costello, os primeiros do Motörhead e do Suicide e o Lust for Life do Iggy Pop), a segunda na forma de um filme (Os Embalos de Sábado à Noite) e de um hit tocado por uma banda australiana (“Stayin’ Alive” dos Bee Gees). As duas culturas musicais foram arrancadas do gueto original e levadas à escala global, proporcionando transformações de comportamento que foram sentidas em todo o planeta – logo, logo as pessoas não precisavam saber sequer tocar um instrumento para ser um popstar e a discoteca ampliaria ainda mais o faça-você-mesmo do punk ao ser abandonada repentinamente pela mesma indústria do disco que a criara – sem discos sendo lançados, restou a uma geração de novos fãs criarem suas próprias versões de discoteca na década seguinte (e assim nasceram o hip hop, a house, o jungle, o techno, o Miami bass, o funk carioca…).

“Que porra está acontecendo?” perguntava-se o KLF no disco batizado com o ano 7 dos anos 80. Boa pergunta. A década do eu encontrava-se em hipérboles improváveis e nenhuma tábua de salvação, consagrando como pop dois subgêneros nascidos com o punk – de um lado, o pós-punk inglês atingia as paradas de sucesso; do outro, a primeira geração indie americana flertava com a MTV; as duas metades se reencontrariam no emblemático 1991, impulsionados por Kurt Cobain. Mas quatro anos antes, Michael Jackson e Madonna consolidavam seus status gigantescos, ao mesmo tempo em que um popstar negro (Prince) e uma banda punk (Hüsker Dü) tentam discos duplos sérios e adultos, vinte anos depois dos Beatles apresentarem esta proposta como plano B em Sgt. Pepper’s. Dois Beatles (Paul e George) davam sinais de boas fases ao mesmo tempo em que Yoko preparava um novo filme sobre Lennon e a EMI lançava o catálogo do grupo no novo formato da indústria, o compact disc. O Guns’N’Roses surge na Califórnia ao mesmo tempo em que o Pink Floyd volta a caminhar sobre a Terra, na maior turnê de todos os tempos, e o U2 segue testando os limites de seu tamanho. É o ano de “With or Without You”, “It’s the End of the World (As We Know It)”, “Sweet Child O’Mine”, “Never Gonna Give You Up”, “Pump Up the Volume”, “Bring the Noise”, “Bad”, “Just Like Heaven”, do último disco dos Smiths. Os anos 80 sofriam de obesidade mórbida de informação e sucumbia ao próprio tamanho em um ano turbulento.

O mesmo pode ser dito sobre 1997, dez anos depois – às avessas. Enquanto o parâmetro dez anos antes confundia qualidade com tamanho, o ano sete dos anos 90 inverte a lógica e valeu tudo – é quando indústria do disco pisa no acelerador do sucesso rápido, imediato, e entope as veias do imaginário coletivo com gordura saturada em forma de hits de rádio. Assim, o ano viu a morte do britpop, do gangsta rap e do rock alternativo, ao mesmo tempo em que ascensão da eletrônica inglesa e do nü metal americano era coadjuvante de um mundo pop em que o mundo de celebridades e da música pop começam a inchar juntos. Paul McCartney torna-se Sir, Elton John chora a morte da princesa Diana. É o ano das Spice Girls e do OK Computer, de “Bittersweet Symphony” e “Mmmmbop”, de “Block Rockin’ Beats” e “Firestarter”, mas também de “Barbie Girl” e da música do Puff Daddy com sample de Police. O pop vive uma de suas fases mais prolíficas e esquizofrênicas – e o Napster dois anos depois só entortariam as coisas ainda mais, ao tirar o controle das gravadoras de disco.

E assim, chegamos a 2007. O que o ano que termina hoje tem a ver com o ano que viu a internacionalização do rock, o ano da psicodelia, o do punk e o da discoteca, o dos últimos gigantes e o do domínio da indústria de discos? Você acha que nem os anos têm a ver entre si, muito menos com fatos típicos do ano que acaba hoje, como o experimento Radiohead, o fenômeno emo, o show do LCD Soundsystem, a decadência pública de Amy Winehouse, o fim do Los Hermanos, a ascensão do celular e da música instrumental? Tou começando a retrospectiva 2007 do Trabalho Sujo com atraso, mas o sete desse ano não foi em vão.