Vamos aos fatos: Breaking Bad não é a melhor série já feita. E, com seu final formal, não entra no panteão das melhores séries de todos os tempos. O crescendo criativo que tornou uma série cult em um dos maiores fenômenos da TV deste século prometia um final épico, megalomaníaco, impossível de ser batido. Fomos (ou pelo menos fui) vítima da própria expectativa. Toda última temporada de Breaking Bad (as duas partes) não fizeram jus à tensão que vinha acumulando-se por toda a série – elas apenas esticaram esta tensão, esta sim a grande qualidade da saga de Walter White. Só continue lendo a partir daqui se souber do final da série.
A cada novo capítulo, o drama do professor de química – que, à beira da morte, passa a apostar na fabricação e comércio de metanfentamina para deixar sua família com algum troco antes de morrer – tornava-se mais denso e complicado. Não apenas pelo fato da aposta ter dado certo. Sua ascensão profissional mexe com os brios de uma concorrência bem barra pesada, o que a torna cada vez mais perigosa. Mas o problema não é esse – é que nosso protagonista aos poucos vai tomando gosto pelo poder e vicia-se na adrenalina de ser o pior vilão. Em questão de meses deixa o ar assustado do professor e pai de família Walter White e transforma-se num bad guy de peso, assumindo características dos vilões que foi dando cabo na medida em que a série avançava. E o codinome Heisenberg que inventou para sua nova persona vai assumindo sua identidade com mais força que o câncer que o colocou nessa vida bandida.
Por quatro temporadas, assistimos a essa escalada com as unhas cravadas nos braços da poltrona. Na mesma medida que ia ganhando dinheiro, ia fazendo desafetos. Esses novos inimigos tentavam enquadrá-lo, mas, de alguma forma, Walter White conseguia reverter a situação, quase sempre usando os poderes da ciência (“science, bitch!”), sua mais fiel comparsa. Como num videogame escrito por Sam Peckinpah, cada final de fase apresentava seu chefão sinistro, um vilão repugnante que deixava o antagonista anterior com cara de frágil. A quarta temporada, pra mim, é o ápice de Breaking Bad, ao apresentar todo esplendor de seu pior vilão, Gus Fring, de forma crua e sem diálogo logo no primeiro episódio, e ao eliminá-lo de forma ainda mais crua e apoteótica num season finale histórico. O final da quarta temporada é infinitamente superior a quase toda a quinta temporada, à exceção do impressionante episódio Ozymandias, o antepenúltimo capítulo que, de certa forma, encerra Breaking Bad.
A principal qualidade da última temporada foi enfatizar o principal músculo da série – sua capacidade de reter a tensão. Não houve nenhuma grande sacada, nenhuma reviravolta emocionante ou segredo revelado que estivesse sob nossos narizes. Ninguém da família de Walt morre, como temíamos por diversos episódios, e a redenção de Jesse, mesmo que temporária, apenas proporcionou uma sensação de alívio trivial. A morte de Walt na última cena é só um desfecho melancólico e previsível, que em nada se pareceu com finais previstos que podiam traçar paralelos com o Scarface de Al Pacino ou O Poderoso Chefão, obras citadas como referência no decorrer da série. A melhor leitura do último episódio foi feita por um comediante americano, que pegou as falhas do season finale (a narrativa mecânica, os diálogos frios, a conclusão morna) para montar um desfecho paralelo em que Walt morre sozinho no exílio, cercado por policial num deserto gelado enquanto imagina, minutos antes de morrer de câncer, as cenas que assistimos no último episódio.
Mas até chegarmos ao final, passamos por uma temporada em que qualquer silêncio tinha triplo significado, qualquer troca de olhares podia resultar numa briga fatal, qualquer plano mirabolante podia desandar horrivelmente. A ascensão comercial de Walter White se estagna e não vemos ele se tornar um lorde traficante internacional. A eliminação de Gus Fring no último episódio da quarta temporada parecia que nos levaria ao grande rei do crime organizado, alguém ainda mais polido e vil que o personagem dono de uma franquia de lanchonetes de frango frito. A aparição da personagem Lydia parecia nos levar a uma outra esfera do negócio que Walter White invadia, aquela em que empresários e políticos frequentadores de colunas sociais são os grandes vilões. “Se você segue a droga, você chega em drogados e traficantes”, dizem as sábias palavras de Lester Freamon, um dos principais personagens da impecável série The Wire, que vai onde Breaking Bad não teve coragem de ir, pois “se você segue o dinheiro, ninguém sabe onde ele pode te levar”. Breaking Bad preferiu não seguir o dinheiro.
O grande trunfo de Breaking Bad é consagrar esta fase de ouro vivida pela produção para a TV no novo século. Se antes da HBO e do blockbuster superlativo “televisão” era uma forma de menosprezar a produção audiovisual, depois de Sopranos, 24 Horas, The Wire, Lost, Six Feet Under e Battlestar Gallactica este parâmetro mudou a ponto de quase ter se invertido. Não há mais distinções entre quem produz cinema e TV como antigamente e alguns dos principais astros de Hollywood (George Clooney, Will Smith) vieram da televisão. As principais produções em termos de faturamento e crítica são feitas para a TV e a geração Netflix ainda está em sua infância. Breaking Bad faz parte de uma geração que inclui Walking Dead, Game of Thrones, Mad Men, Orange is the New Black, Girls, Lie to Me e Sherlock (esta sim a grande série atual) – seriados com aspiração à grande arte, que não se fingem apenas de entretenimento vazio e buscam a consagração de obras com centenas de horas de duração. Aconteceu que ela foi apenas a primeira destas a acabar, daí tanto frenesi. Mas todas essas outras citadas também chegarão ao fim e causarão, umas mais que outras, níveis de fanatismo exagerado e declarações de que “esta sim é a melhor série de todos os tempos”.
Não creio que nenhuma destas barrará Sopranos ou The Wire nesse sentido. É preciso superar as expectativas, em vez de simplesmente atendê-las, como aconteceu no episódio final de Breaking Bad. Uma série que nos acostumou com o inusitado preferiu o conforto de um final justo. Não acho que uma obra que termine com uma conclusão considerada “honesta” (adjetivo usado à exaustão na semana do season finale) seja digna ao trono de qualquer linguagem.
Já perdi a conta de quantas vezes comecei a escrever esse texto. Comecei a rascunhá-lo como um processo de exorcismo à péssima notícia que meu amigo e irmão de coração Fred Leal havia sofrido um AVC, em Paracambi, a cidade que ele colocou em nosso mapa mental, no primeiro dia do mês de setembro deste ano. Danilo me ligou tenso, dizendo não ter mais informações além de que ele já estava internado no Rio de Janeiro e perguntando, já sabendo da resposta, se podia me incluir numa troca de emails de um grupo de amigos mais próximos que estavam acompanhando o fato trágico. Tatu, outro irmão dessa pequena família que construímos além da amizade, estava acompanhando tudo direto do hospital e nos mantinha informados sempre que podia. Não dava pra fazer nada a não ser esperar. Foi quando comecei a escrever esse texto, como uma carta para ser lida por ele quando saísse do hospital.
Cheguei a ir ao Rio de Janeiro dias após o acontecido, fiquei horas na sala de espera do hospital em que ele estava internado, mas não consegui visitá-lo. Os médicos não disseram na hora, mas depois fiquei sabendo que o quadro dele havia piorado enquanto o esperava e não seria possível ninguém vê-lo naquela quarta-feira. Tatu continuava mandando notícias sobre os altos e baixos típicos de alguém que estava internado naquelas condições. Cada dia uma nova leva de novidades, boas ou ruins. Até que, alguns dias depois, na meia-noite do sábado 7 para o domingo 8 de setembro, recebo uma mensagem no celular, com a Bia pedindo para que eu ligasse para ela urgente – estava na praia e o celular não pegava direito, embora houvesse wi-fi. Fui correndo para a beira da praia onde o sinal do celular pegava melhor, já temendo o pior – e com ela a drástica notícia. Fred não havia resistido. Nunca havia perdido alguém tão próximo. Entrei em estado de choque e não consegui sequer ir ao enterro de um dos meus melhores amigos, naquele domingo triste em Paracambi.
Fred Leal era uma das melhores pessoas que todos nós conhecíamos. Como muitos amigos que conheci primeiro online, não me lembro de nosso primeiro contato virtual, mas lembro finalmente te-lo conhecido pessoalmente no show de lançamento do primeiro disco dos Los Hermanos, no saudoso Ballroom, no Rio de Janeiro, em 1999. Fred, ainda adolescente, era uma dos muitos fãs de primeiríssima hora do grupo carioca e já havia perdido a conta de quantos shows do grupo já havia assistido antes daquele, mas estava especialmente animado com o show daquela noite – afinal era a consagração de uma intuição que já havia sido percebida por um pequeno grupo de cariocas do qual Fred fazia parte. E, como acontecia com a maioria das pessoas que conheceu Fred, o primeiro contato offline com foi de empatia instantânea. Nos dias seguintes já o tratava como alguém que conhecia há anos e nossa diferença etária (era seis anos mais velho que ele, diferença significativa quando flutuamos ao redor dos vinte) havia simplesmente desaparecido.
Desde então o contato online tornou-se permanente – há mais de dez anos trocava informações sobre discos, livros, filmes e frilas com Fred, sempre o chamando nas diferentes empreitadas que me envolvia. Coloquei-o para entrevistar personagens no site da velha revista Play, chamei-o para cobrir shows do saudoso projeto Trama Universitário, convidei-o para escrever no livro 300 Filmes para Ver Antes de Morrer, que editei para a revista Época em 2006 e quis o destino que ele não escrevesse nada pra Galileu – era questão de tempo para que o chamasse. Mas não era só troca de conhecimento – Fred era um coração gigantesco pronto para ouvir seus lamentos e desventuras e muitas vezes segurei suas barras emocionais depois de pés na bunda ou ressacas morais. Trocávamos links pra shows inteiros no YouTube enquanto um lia o outro falando sobre as desilusões e esperanças recentes, indicações de novos autores vinham misturadas de confissões hilárias ou de sermões intensos. Uma dica de culinária lembrava velhas namoradas, brigas com parentes, a monotonia do emprego. Exercícios de futurologia, filmografias completas, ombro amigo, artistas desconhecidos, filosofias de vida – qualquer meia hora conversando com Fred via email, MSN, ICQ, Gtalk ou mensagens do Facebook valia por cursos intensivos das coisas que importam na vida.
O contato online, a poucos toques e cliques do teclado, se tornou uma amizade de coração, e, mesmo na maior parte do tempo morando em cidades diferentes, pudemos conviver proximamente em vários momentos. Desde as temporadas que eu passava no Rio no início da década passada aos shows de Paul McCartney que assistimos juntos em Buenos Aires, quando ele havia se mudado para a capital argentina. Mas dois períodos de convivência foram intensos: 17 dias em Recife no início de 2006 e o quase ano que trabalhamos juntos em São Paulo no Estadão, entre 2009 e 2010.
O primeiro foi em fevereiro de 2006, quando fui convidado para palestrar na segunda edição do Porto Musical, em Recife, uma semana antes do carnaval. Eu havia acabado de sofrer o acidente que me deixou parado por seis meses, braço direito na tipóia e sem movimentar a mão devido a um estiramento de nervos e uma das conversas mais frequentes que tinha com Fred à época era sobre a produção de conteúdo feita pelo usuário comum através da recombinação de mídias já existentes – a cultura do remix que é a base da produção cultural na internet, aquela feita por qualquer um (no final daquele ano a revista Time escolheria “você” como “pessoa do ano”). Pensei em apresentar este tema no simpósio e convenci a organização do evento a pagar a passagem de Fred, que havia topado desenvolver melhor a palestra comigo. Como estava de licença médica, poderia emendar o período da palestra com o carnaval pernambucano, uma velha utopia. Ao ir em dupla para Recife com Fred ainda tivemos a vantagem de descolar um apartamento no bairro de Boa Viagem, onde passamos duas semanas em dos carnavais mais psicodélicos da minha vida. Foi quando eu criei o Vida Fodona, que começou a princípio como um podcast de entrevistas – aproveitamos a movimentação cultural promovida pelo Porto Musical e, claro, pelo carnaval, e saímos entrevistando artistas, produtores e amigos sobre aquele momento. Na véspera da viagem, passei antes por seu apartamento no Leme (o clássico Tchose Inn), onde editamos o vídeo que apresentamos na palestra pouco antes de irmos ao histórico show que os Rolling Stones fizeram em Copacabana. Os causos e lendas deste carnaval (o misterioso segundo disco do Mombojó, a festa que Dani Arrais – que ainda morava no Recife – conseguiu agitar para que tocássemos antes de irmos embora, o famoso caso do psy às quatro da manhã) estão entre alguns dos meus melhores momentos pessoais. Vida Fodona indeed – e sempre ao lado do Fred.
O segundo aconteceu depois que me tornei editor do Link e consegui convencer o Estadão a contratar um repórter que não tinha diploma – Fred veio com a chinfra de “personal nerd”, título criado por ele que usei para atualizar a antiga seção “Saiba Como”, e logo encantou a todos, se tornando uma peça central em uma das melhores equipes que já fiz parte, a equipe que conduzi a partir de 2009. A convivência diária com Fred nos presentava com doses cavalares de gentileza e bom humor – Fred sempre tinha aquela tirada na hora certa, seja com um link, uma citação, uma lembrança inusitada ou apenas seu senso de humor ao mesmo tempo sisudo e sacana (sempre seguido daquele “HEHEHEHE” rido com força na garganta). Ele morava do lado de casa, no mesmo prédio que a Tati, e várias vezes emendávamos um terceiro tempo pela região – seja dividindo o táxi ou trocando idéia até altas em seu apartamento, bebendo, fumando, ouvindo música e jogando Beatles Rock Band. Foi em sua passagem pelo Estadão que ele conseguiu entrevistar dois de seus ídolos na música – Robert Schneider, dos Apples in Stereo, e Bill Withers. “Direto eu lembro das nossas conversas de fumódromo”, foi uma das últimas coisas que ele me escreveu, “hahaha, grandes momentos”. Grandes momentos :~
Essa convivência foi interrompida pelo próprio Fred que, em sua segunda passagem por São Paulo, havia percebido que não nascera para morar nesta cidade. Abandonara mais uma carreira, entre tantas, desta vez para morar em Buenos Aires. Seis meses depois me chamava no Gtalk – “estou te devendo um uísque, vou voltar pro Brasil”. Mas em vez de voltar para o Rio enfurnou-se em Paracambi. Logo depois vieram as notícias da morte de sua mãe e de seu pai (mesmo que não falasse mais com o pai, a notícia lhe baqueou, embora não transparecesse) e cada vez mais Fred foi se escondendo em Paracambi. Por trás da extrema simpatia havia uma tristeza que pairava sob sua personalidade. Era essa tristeza que o tornava tão doce e sentimental, mas ao mesmo tempo arrastava-o para baixo com força. Aos poucos, a ida para Paracambi parecia uma fuga da realidade para os mais próximos, que de algum jeito tentavam trazê-lo de volta à convivência. Mas ele parecia disposto a ir. Meu último gesto nesse sentido foi dar-lhe um blog nOEsquema – uma forma de contribuir não apenas aos anos que me deixou hospedado na Fubap (que antes chamava-se Badtrip) como também de fazê-lo voltar a escrever, mas o Axioma teve apenas quatro posts. Num deles, deslumbra-se com o grande disco de Frank Ocean do ano passado e cita uma entrevista do rapper para definir sua amplitude lírica. Sem querer, Fred estava falando de si mesmo:
“Quando você está feliz, você curte a música. Mas quando você está triste, você entende a letra.”
Fred era letra e música – e todos cantávamos com ele. Quem sente, sabe. Vamos seguir cantando-o.
Há um ano terminei minha última coluna no Link em 2012 com a seguinte previsão:
Eis a minha aposta para 2013: menos olhos na telona, mais olhos na telinha. Menos tempo sentado, mais tempo em pé. Menos escritório, mais rua. É claro que temos que esperar melhorias drásticas no nosso parco 3G e num utópico 4G que nem sequer é realidade. Mas, com certeza, usaremos mais celulares que computadores. Se é que já fazemos isso hoje, sem nos dar conta.
Um exercício de futurologia bem fácil de ser acertado – a chave está na última frase, que cogita a possibilidade de que a previsão já esteja acontecendo. E é uma realidade: estamos usando cada vez menos o computador e cada vez mais o celular.
A onipresença da internet em nossas vidas finalmente tornou-se fato a partir do momento em que não precisamos ir para um lugar específico para acessar a rede. Lembram-se que, antigamente, em vez de ligarmos diretamente para uma pessoa, ligávamos para os lugares mais prováveis em que ela estivesse? E os números “de casa” e “do trabalho” eram anotados à mão (e muitas vezes rasurados) em um volume de papel que simplesmente saiu de nosso dia-a-dia, a “agenda telefônica”? O celular extinguiu esses conceitos, na medida em que foi se popularizando pela metade dos anos anos 90 em direção a este século 21. Ele expandiu os horizontes de uma das últimas novidades da telefonia fixa, o telefone sem fio, para o infinito (ou ao menos até onde o sinal aguentar).
Telefone portátil uma excentricidade que só parecia fazer sentido para pessoas que viviam trabalhando com o novíssimo mercado global, quando você precisava saber o que estava acontecendo do outro lado do mundo exatamente quando estivesse acontecendo, algo que parece trivial atualmente mas era uma novidade restrita a um círculo de poucos convidados há menos de duas décadas. Telefonia celular era um conceito tão fora do comum quanto ter telefone no carro ou poder fazer uma ligação de dentro de um avião (algo que ainda é meio alienígena, mas que se tornará rotina ainda nessa década, outra profecia fácil de ser arriscada). Em pouco tempo, esse mesmo tipo de aparelho nos apresentaria a uma forma de conversar pelo telefone que não requeria nem mesmo a voz, com as mensagens de texto. Aí veio o smartphone e aposentou a pré-histórica internet wap e a rede de fato chegou aos telefones.
Da mesma forma que aconteceu antes com o telefone, ocorreu com a internet: tínhamos que estar em um determinado ponto geográfico pré-definido se quiséssemos ter acesso à rede. Eram os tempos do “computador da casa”, do “quarto do computador”, em que o desktop bege era o centro de um cômodo em apartamentos pelo planeta. Com o notebook e a popularização da tecnologia Wi-Fi isso mudou de repente e videochats começaram a acontecer na cozinha, a mesa de jantar poderia servir de escritório fora das refeições, dava pra assistir filme na cama ou mandar emails deitado numa rede. O smartphone com tela touchscreen, representado iconicamente pelo iPhone que a Apple revelou em 2007, se tornaria o dispositivo móvel de acesso à internet definitivo (e não o tablet, um smartphone feito para pessoas mais velhas acertarem as teclas), mas foi preciso que meia década se passasse para que parássemos de pensar no celular como uma forma de nos conectar a rede – e sim para que a rede começasse a ser desenvolvida para também o celular. O boom da economia dos aplicativos deu origem a uma nova série de softwares e redes sociais pensados especificamente para o telefone móvel, além de fazer todo desenvolvedor tradicional a pensar em versões paralelas para seus serviços funcionar melhor via celular.
E em 2013 pudemos usar essa nova rede à exaustão, a ponto de deixarmos o computador em segundo plano. Comprar ingressos? Pedir táxi? Jogar videogame? Pedir comida? Ir ao banco? Os aplicativos feitos para o Brasil já estão funcionando bem e nossa internet 3G tem melhorado (ainda está longe do ideal) a ponto de conseguirmos finalmente usar o smartphone de forma mais plena – e isso tem nos deixado mais distante do computador, que nos deixa encurvados em frente à tela, costas arqueadas, luz branca fritando os olhos full-time. Com o celular, podemos fazer quase tudo que fazemos no computador deitados, enquanto estamos cozinhando, a caminho de algum lugar, à espera de alguma coisa, em movimento.
Sempre fui arredio à telefonia móvel pois não queria ser encontrado, mas abri mão dessa inconveniência graças à série de benefícios que não consigo imaginar deixando de lado hoje em dia. O contato com a minha família ficou muito mais frequente via Whatsapp (meus pais e irmãos usam mais o aplicativo do que mandam email, ligam pelo telefone ou atualizam o Facebook), qualquer situação pode ser registrada e publicada quase que instantaneamente (que vão de motivos nobres como a cobertura cidadã dos protestos de junho desse ano ou vis como a publicação de vídeos ou fotos tiradas durante trepadas como motivo de vingança), as notícias chegam mais rápidamente, boas ou ruins. Fora aquela foto tirada (ou publicada) naquele momento certo, o acesso a todo acervo de vídeos e músicas do mundo (pagas via streaming ou baixadas por download) e softwares que nos ajudam a medir tudo sobre o que fazemos, transformando atividades antes monótonas (programar uma viagem, seguir uma dieta, lembrar de tomar remédios) em equivalente a jogos.
Mas ainda não é o fim da história: falta alguém inventar uma ferramenta de interface tão boa quanto o conceito de mouse e um substituto decente para o teclado (de preferência que não use a voz). E, claro, deixarmos de se referir a este aparelho como “telefone” – afinal, usá-lo para conversar é uma das coisas que menos fazemos através dele… Mas isso é questão de tempo.
13 de junho de 2013: mais um protesto em São Paulo organizado pelo Movimento Passe Livre e muitos olhos fixos no que estava acontecendo, pessoal ou virtualmente. Havia algo no ar, era táctil – aquela noite não seria uma noite comum e não apenas por sediar uma nova manifestação. Os dois jornais da cidade haviam dado o recado para a PM em seus editoriais – tinham que “retomar a Paulista” pois chegara a “hora do basta” -, o que poderia ser entendido como “podem baixar o sarrafo nesse bando de vagabundo protestando e quebrando vitrines que a gente faz vista grossa”. Queria ter ido pra rua, mas estava no fim do fechamento da edição de julho da Galileu e não tinha outra alternativa a não ficar na frente do computador, esperando as últimas páginas da revista chegarem para finalmente sair do trabalho (algo que não aconteceu antes da meianoite). Mas à medida em que a coisa começou a ficar feia e tornou-se claro que a violência policial era regra e não exceção, fiz minha parte, como milhares de outros: comecei a distribuir links de vídeos e de comentários de quem estava na rua para o resto da internet. Logo logo começavam a me enviar links quando viram que meu foco online estava em cima disso e minha audiência foi crescendo consideravelmente – até OEsquema saiu do ar porque não aguentou a nova leva de acessos e muitos vieram me perguntar se era uma conspiração (eu ria internamente pois estava fechando uma edição cuja capa era sobre teorias da conspiração – batizei minha Carta ao Leitor de “Dias Estranhos” não por outro motivo). Era uma quinta-feira e, madrugada adentro, milhares estavam grudados às telas para ver o show de covardia e violência da PM liderada por Geraldo Alckmin. A farta distribuição de vídeos e imagens tornou impossível uma provável vista grossa da imprensa. Nem “Gangnam Style”, “Harlem Shake” ou a canela do Anderson Silva sendo partida ao meio: o grande viral de 2013 aconteceu durante a virada do dia 13 para o dia 14 de junho.
Depois disso, os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre tomaram uma proporção inacreditável e a segunda-feira seguinte, dia 19, foi o dia em que o Brasil travou. Milhões foram às ruas, boa parte influenciada contra a covarde violência policial do dia 13, mas milhares sem a menor noção do que estava fazendo ali além de participar de uma passeata histórica. Novos gritos de guerra foram surgindo e o “não são só 20 centavos” (sobre o aumento do preço da tarifa de ônibus em São Paulo) levou as manifestações seguintes para lugares mentais que ninguém havia cogitado. Aos poucos slogans de publicidade (“vem pra rua” e o infame “o gigante acordou”) foram adotados pelos novos manifestantes e muitos viram uma oportunidade de se aproveitar do momento – e por algumas horas muitos temeram o pior (ou “o melhor”, dependendo do ponto de vista) – guerra civil, quebra-quebra generalizado, golpe de estado. A multidão foi às ruas contra o que parecia ser um pífio aumento de passagem de ônibus e logo bandeiras se levantavam genéricas contra a corrupção, contra partidos políticos específicos e até contra a política de representatividade. Todo mundo quis tirar um naco do recém-acordado “gigante”, que, na infância de sua política, deslumbrou-se com a própria força e perdeu a noção nos dias que se seguiram ao #sp19j. Agências de bancos e concessionárias de automóveis foram quebradas, carros da imprensa foram queimados, muitos foram presos sem motivo e tanto a Mídia Ninja e quanto os black bloc encontraram na fúria das ruas a deixa perfeita para crescer em público.
Junho de 2013 foi um marco político importante para o Brasil: são as chamadas “dores de crescimento” por qual todo adolescente passa. Só agora estamos tomando consciência de nossas obrigações e direitos políticos, de nossa cidadania, daquilo que já deveria ser nosso. Temos uma nova classe média usufruindo de bens de consumo mas que, passo a passo, percebe que não basta apenas comprar – é preciso que as instâncias governamentais funcionem além das iniciativas tapa-buraco. A classe política brasileira tomou um susto do qual ainda não se recuperou – e é bom que percebam logo isso, pois cada político brasileiro, por mais desprezível e insignificante que seja, sabe exatamente qual é a sua parcela de culpa nessa história (não se esqueçam da respeitabilidade que o senador Demóstenes Torres tinha antes de vir a público sua participação na máfia de Carlos Cachoeira no ano passado – há muitos outros Demóstenes bradando por ética até hoje). Cada político, cada empresário e agora… cada cidadão. Os ecos deste mês ainda permanecem no ar e pairarão sobre nossas cabeças por um bom tempo. E a expressão “quero ver na Copa” ganhou um sentido inusitado e otimista.
Mas olhando para o quadro geral, não estamos falando apenas dos protestos de junho nem da política com “p” minúsculo – essa de câmaras de vereadores, prefeitos, governadores e presidentes. Parte da motivação dos protestos é inconsciente e tem mais a ver com horas parados no trânsito, terrenos baldios que viram estacionamentos para depois erguerem-se prédios, da especulação imobiliária e da onipresença dos shopping centers no Brasil há duas décadas. Queremos as ruas, “ocupar o espaço público” como repete o silencioso mantra por trás da eleição de Haddad em São Paulo, dos protestos contra Cabral no Rio de Janeiro e ações publicitárias que vão de carona nesse zeitgeist. Política com “P” maiúsculo pois não se faz apenas no voto nem em exigências contra “nossos representantes” – ela pode ser feita em nível comunitário. Quando você quer melhorar a calçada em frente da sua casa, poder sair mais ao ar livre, utilizar transporte público decente e começa, você mesmo, a fazer alguma coisa nesse sentido – em vez de esperar ou reclamar do governo – está sendo mais político do que os que se dizem políticos. Foi assim que o Movimento Passe Livre começou em 2005 e, oito anos depois, virou o país do avesso.
Outros protestos virão, mas não basta apenas protestar: é preciso fazer. Mas, como acabamos de descobrir isso, pode ser que essa ação leve mais tempo que esperamos. Afinal, é um processo cultural sobre um país que formou-se entre a violência e a corrupção. Não basta pedir o fim disso (pedir pra quem?), é preciso começar a dar exemplos – denunciar quem fura a fila, não aceitar nem pagar suborno, não falsificar carteira de estudante pra pagar mais barato (que tal não ir?). Vai levar tempo. Mas era preciso começar isso, de alguma forma: e começamos tomando o que já é nosso, o espaço público.
Afinal, a Paulista ficou parada com protestos noturnos durante um mês inteiro e nem por isso São Paulo entrou em colapso. Que tal transformar a avenida-símbolo da cidade num calçadão. Seria uma boa metáfora para um futuro próximo. Vamos?
De novo usei shows como desculpa para desbravar duas cidades que ainda não conhecia: emendei minha primeira visita ao festival Primavera em sua cidade de origem, Barcelona, a um show de Neil Young cavalgando seu Crazy Horse na capital alemã. Foi minha primeira vez na Espanha e na Alemanha em cidades conhecidas por seu legado histórico e atual movimentação cultural e meu interesse queria saber como uma coisa estava ligada à outra. A chave está no dia-a-dia, nas ruas, no que as pessoas fazem com seu tempo e como o utilizam para viver melhor. Fiquei entre os shows e os inevitáveis passeios turísticos – afinal ir à Barcelona sem passar pela Sagrada Família ou pelo Parque Güell ou não passar por alguns dos prédios que habitam a ilha dos museus de Berlim é perder partes da alma das duas cidades. Entre um e outro, circulei por restaurantes, praças, livrarias, mercados, lojas de discos, centrinhos comerciais, parques e ruas querendo entender o quanto falta para que a gente atinja o nível destas duas cidades.
E a resposta está na forma como seus cidadãos lidam com elas. Cidades não são casualidades que temos que lidar entre a nossa casa e o nosso trabalho. Elas fazem parte da nossa vida de uma forma mais intensa do que pensamos, são continuações não apenas dos espaços que habitamos com freqüência, mas também de nossos corpos. Só uma visão holística sobre arquitetura, urbanismo e cidadania explica o funcionamento e a lógica por trás dessas duas cidades tão distintas. O que as une é justamente a forma como seus habitantes conversam com suas ruas. E tudo passa por educação: não adianta colocar latas de lixo por toda a cidade se as pessoas não sabem que o menor papel atirado no chão é responsável por enchentes ao entupir bueiros. Há uma vivência que não se restringe apenas aos próprios interesses – todos cuidam de tudo e há bem menos serviços particulares do que estamos acostumados. A coleta seletiva de lixo é regra, ninguém tem empregada doméstica, o trânsito respeita os ciclistas, que respeitam os pedestres, que respeitam o trânsito. Todo mundo sabe que tudo está interligado, não adianta querer se dar bem em um determinado aspecto da vida sem que isso acabe acarretando em um problema para outra pessoa. O metrô de Berlim não tem nem catraca e mesmo assim todos pagam o ingresso e o validam antes de subir nos carros. Ninguém tenta dar uma de malandro pra passear de graça.
Foi bem curioso tomar esse banho de civilidade alguns dias antes dos protestos começarem no Brasil – protestos que uniam a população (ao menos a princípio) ao redor do transporte público. Acendeu uma leve esperança de que, após o crescimento econômico, devemos começar a nos preocupar com a nossa educação – e não estou falando de escolas e ensino, e sim com a boa educação, com civilidade e civilização. Ainda temos muito que andar por aqui, mas ao menos me bateu uma sensação de que estamos indo no caminho certo. Tomara.
PS – Os shows foram ótimos: o Primavera em Barcelona funcionou como um relógio, apresentando shows memoráveis do Tame Impala, Blur, Nick Cave, My Bloody Valentine, Chris Owens, Breeders, Bob Mould, Dinosaur Jr. e Jesus & Mary Chain, e o Neil Young fez o melhor show de 2013 com quase três horas de guitarradas na incrível arena de Waldbühne, um dos lugares mais lindos que já vi. Isso sem contar as companhias, foi uma das melhores viagens que já fiz. Saca só os vídeos abaixo:
Quando completei cinco anos no Link, em maio de 2012, me caiu uma ficha: nunca tinha passado tanto tempo num mesmo emprego. E com essa ficha veio a determinação que não iria completar o sexto ano ali. Não foi um “basta”, mas apenas a constatação de que mais doze meses no comando de um caderno semanal de tecnologia em um dos maiores jornais do país me tirariam a empolgação que me deixou tão à vontade para fazer um dos trabalhos que mais gostei na vida. O que era novidade estava se tornando rotina – a transformação do telefone celular num computador de bolso havia se tornado uma maçante sequência de novos lançamentos da Apple e seus concorrentes, a ascensão de uma nova rede social que ultrapassaria fronteiras nacionais para unir o mundo num mesmo ambiente digital transformou-se num curral motivado apenas por publicidade para encher os bolsos de um jovem e desinteressante Bill Gates (Zuckerberg, óbvio), além da sensação de que em pouco tempo tecnologia e internet se tornariam tão onipresentes que não faria sentido ter uma seção específica num veículo de comunicação.
Mas já tinha uma cirurgia marcada para o segundo semestre (para consertar, finalmente, meu braço direito) e não queria sair correndo esbaforido para um outro lugar. Não me sentia pressionado no Estadão, muito pelo contrário – minhas criatividade e invenção eram estimuladas à medida em que o Link se estabelecia como um dos principais veículos a cobrir este setor. O que me incomodava era o tédio e a monotonia que não pairava sobre o caderno, mas sobre mim. Ao completar o quinto ano na edição do Link, estava decidido a mudar de ares com o novo ano. Não queria mais editar um caderno no piloto automático.
E é engraçado como basta você apertar um botão no seu cérebro para que as coisas comecem a acontecer. No fim do primeiro semestre do ano passado fui convidado para o cargo de editor-executivo da revista Época Negócios e no início do semestre seguinte, para assumir a edição do blog do Instituto Moreira Salles. Dois desafios enormes que me levariam para áreas que nunca havia cogitado no meu currículo (economia e cultura erudita), mas poderiam acrescentar muito à minha carreira. Áreas que tenho pouca atuação e interesse vago, mas nada que me assustasse – quem já trabalhou comigo sabe que repito o mantra que o jornalismo é das poucas profissões em que você é pago para aprender. Mas já havia assumido o compromisso médico comigo mesmo e não mudaria de emprego às vésperas de uma cirurgia que me tiraria de circulação por pelo menos dois meses. E com muito pesar declinei os convites feitos pelo David Cohen e pelo Flávio Pinheiro.
Até que, na semana em que voltei ao Estadão, fui chamado novamente pela Editora Globo para assumir outro cargo em outra publicação – o de diretor de redação da revista Galileu. Aí era outro papo: era uma publicação que eu era mais familiarizado com um dos assuntos que eu mais gosto (mas que nunca havia lidado profissionalmente), ciência. E me explicaram nas duas entrevistas que participei antes de ser contratado que meu trabalho não se restringia à revista – cuidaria da marca Galileu, funcionando como um embaixador do título, levando o título para além do papel. 2012 estava quase no fim e vi na oportunidade a chance que esperava para sair do periódico centenário do bairro do Limão. Foi bom enquanto durou, mas estava indo nessa.
Assumi o cargo em dezembro do ano passado, no início do fechamento da edição de janeiro. E me dei conta que o desafio não era pequeno – além do mercado de revistas estar vivendo seu pior momento, Galileu havia acabado de passar por uma mudança de identidade que me impedia de dar outra guinada editorial. A revista abandonou o formato clássico de revista de ciência em 2009 para se tornar uma revista com foco pesado em tecnologia, copiando pautas e páginas da Wired na caruda. Com isso, ela deixou de falar de história, uma das principais áreas neste tipo de publicação. Uma nova mudança na direção de redação a fez caminhar para algo que era referido como “ciência útil” – como a ciência poderia ser utilizada para melhorar seu dia-a-dia. E com isso tecnologia ficou em segundo plano. Esta última mudança, que trouxe o slogan “Questione, Entenda, Evolua” aconteceu cinco meses antes da minha entrada na editora, então estava claro que não poderia mudar projetos gráfico e editorial tão logo sem causar uma sensação de esquizofrenia no leitor da revista.
Mais do que isso: não costumo trabalhar de forma vertical, mandando e desmandando. Queria conhecer as pessoas da redação e me aprofundar no título como um todo. Levei o ano inteiro de 2012 das revistas para a casa para lê-las de cabo a rabo e percebi, felizmente, que a revista era ótima. Não fazia sentido sair demitindo ou contratando, era muito mais uma questão de ajustes e de postura. Assim, durante 2013 fui mexendo aqui e ali na revista sem desmerecer os trunfos e talentos que ela já apresentava, valorizando-os. A revista não era ruim, muito pelo contrário, era ótima – mas poucos se davam ao trabalho de lê-la de ponta a ponta. Os 100 mil assinantes já sabiam disso, mas era preciso atrair mais leitores.
Por isso comecei a expandir os horizontes da Galileu. Negociei um boletim semanal com a rádio CBN (apresentado por mim, todos os domingos, às 13h30), tornei a marca presente em diferentes tipos de eventos (Campus Party, Fronteiras do Pensamento, Semana do Cinema de Culto no MIS, Arq.Futuro, YouPix), integrei a revista com o site (algo que não acontecia antes, site e revista eram dois mundos à parte), trouxe novos temas (tivemos, neste meu primeiro ano no comando da revista, capas para previsões do MIT, futebol, teorias da conspiração, música, livre arbítrio, o futuro do trabalho, agrotóxicos, cerveja, maconha, consciência animal e os principais nomes da internet brasileira em 2013), tornei os colaboradores frequentes mais próximos e aos poucos fui introduzindo mudanças no formato e acabamento da revista (dei uma coluna sobre ceticismo para o Carlos Orsi, um dos melhores jornalistas de ciência do Brasil, e outra para o Diogo Rodriguez, do Me Explica, sobre atualidades, criei uma Agenda para sugerir dicas de programa para os leitores, criei o Ecossistema para falar de todas essas novas novidades), mudei a cara do site. Fora alguns trunfos pessoais, como resgatar a querida Tatiana de Mello Dias do Estadão no momento em que o barco do Link começou a afundar (quando virou uma página dupla em economia e pareceu ter perdido seu brio, retomado no final do ano pelo velho bróder Camilo Rocha, atual editor do Link) para assumir a edição do site e entrevistar nomes como Cory Doctorow, Slavoj Žižek, James Gleick, Peter Diamandis e Tobias Andersson, do Pirate Bay. E consegui pautar matérias com nomes como Ronaldo Evangelista, Juliana Cunha, Ramon Vitral, Gaía Passarelli e Antônio Xerxenesky, jornalistas que gosto e respeito e que talvez nunca teriam escrito em uma revista de ciência se não tivesse os convidado. Isso sem sair dos trilhos do projeto gráfico e editorial que já existia quando comecei a cuidar do título.
Além disso tive que aprender a gerir um título, trabalhando diretamente com o marketing, com venda em bancas, com assinaturas, com publicidade, com o industrial e outras áreas da publicação que nem chegava perto durante os anos no Estadão. Como frisei no editorial da última edição de 2013, foi um aprendizado e tanto – em que acertei e errei, por isso reforço o agradecimento à equipe com quem trabalhei mais de perto durante esse ano, especialmente o redator-chefe Tiago Mali (que já falei que considero um dos nomes mais promissores do jornalismo atual) e a equipe liderada pelo diretor de arte Fábio Dias (os talentos da editora de arte Ana Paula Megda e da designer Gabriela Oliveira), além da repórter Luciana Galastri, que me ajudou a reconstruir a lógica do site. Obrigado, mais uma vez, pela paciência e dedicação.
E agora vem 2014… E acho que vai ser ainda melhor. Aguardem.
Não é (só) a maconha. A atitude de Juan “Pepe” Mujica em relação à droga ilícita mais popular do mundo – legalizando-a e estatizando-a – é apenas uma das várias mudanças que nosso pequeno vizinho está proporcionando ao inconsciente coletivo global. E não é (só) o aborto ou o casamento gay (nem o oferecimento de uma saída para o mar para o Paraguai). Acho que a principal contribuição do atual presidente do Uruguai para o resto do mundo está em possivelmente esfacelar o garbo fake que paira sobre nossos representantes políticos (resumido magistralmente em uma frase dita em uma entrevista à Folha: “o pior de ser presidente é a parafernália fedal que sobrevive na república” e posto em prática menos de um mês depois, quando o presidente – “oh!” – compareceu a uma solenidade oficial – “oh!” – de chinelos – “OH!”). E por mais insignificante que o país possa parecer, Mujica foi à Assembléia da ONU em setembro e fez um discurso que deverá ser lembrado por muitos anos (a transcrição traduzida segue abaixo) – se você não o viu/ouviu/leu, leia antes que 2013 acabe, pra começar 2014 com a cabeça certa:
Não foi à toa que a revista Economist escolheu o Uruguai como sendo o melhor país de 2013. Mujica pra presidente do mundo!
Tive uma crise de pressão alta há um ano e meio e depois de todos os exames, o médico veio com o resultado: “Tudo normal, mas você bebe, fuma, tem quase quarenta anos, sedentário e é jornalista, uma profissão desregrada. Natural que o corpo venha pedir a conta uma hora ou outra. Você vai ter de mudar de hábitos”. Era o chamado que esperava. Sempre deixei minha saúde em segundo plano à espera deste médico, que me dissesse que, por algum motivo, teria de cuidar da minha saúde. Lá estava ele, anunciando uma profecia que eu já esperava ser anunciada.
O destino me ajudou em algumas coisas: ao mudar de emprego, do Link para a editora Globo, parei de fazer plantões aos fins de semana. Mais do que isso – agora eu havia fugido de vez do noticiário mais quente, o que me deu mais tempo para cuidar de mim. E ser vizinho do compadre Camilo Rocha me ajudou também – ele havia começado a caminhar todos os dias pela manhã e no final do ano passado comecei a andar diariamente. Inventei um apelido – uma hashtag – para estas caminhadas: #thewalk, inspirado em um hit da minha adolescência, do Cure.
Elas me obrigaram a por em prática o hábito de acordar cedo. Há uns cinco anos acordo um pouco antes do sol, mas demorava para sair de casa – entre um lento despertar e um longo café da manhã. Agora não: antes das nove já estava na rua, sentindo o frio fresco do ar da matina ao mesmo tempo em que caminho pouco mais de três quilômetros pelo meu bairro. Isso me aproximou ainda mais da minha vizinhança – aos poucos reconhecia o pessoal de uma padaria que pouco frequentava, cumprimentava os porteiros e vigias que estavam sempre no mesmo ponto todos os dias, reconhecia taxistas e outros caminhantes – com bebês, cachorros ou sozinhos – que cruzava pelo caminho. Mais do que botar o próprio corpo para trabalhar (lentamente) começava a entrar em contato com o meu próprio bairro de forma mais íntima, menos à distância. Um aprendizado duplo – que ainda se mantém.
O próximo passo foi retomar a natação, meu esporte favorito. Nadei por dez anos entre a infância e adolescência e a competição contra si mesmo, o silêncio mental submerso e o contato com a água sempre me fizeram um ávido nadador. O problema agora seria recuperar essas atividades quase vinte anos depois de deixar de praticar qualquer exercício físico, mas tem dado certo. Convidei Camilo para repetir a dobradinha das caminhadas, mas ele tornou-se pai no meio do ano, o que lhe obrigou, inclusive, a parar de caminhar. No fim, foi bom: retomar a natação sozinho me colocou em contato com uma das melhores coisas do esporte – o aspecto meditativo de percorrer raias e raias sozinho. E, como nas caminhadas, batizei esse novo hábito com outro apelido – outra hashtag -, #downbythewater, que veio de outro hit, da minha pós-adolescência, da PJ.
O corpo dói no início, a preguiça tenta a não sair de casa, é difícil achar o melhor horário, mas tem valido à pena. Os resultados vêm aos poucos, mas os benefícios são sentidos de cara. Além de sentir o corpo evoluir – o fôlego melhorar, o peso diminuir, a disposição para tudo aumentar -, o impacto mental de colocar-se em funcionamento é crucial para seguir nesta evolução. Uma mudança drástica num ano ímpar, que recomendo a todos os sedentários que conheço. Não é pra largar discos e livros e virar um beato bitolado geração-saúde, contando quilocalorias, nem o infame “projeto verão”. No meu caso está mais para “projeto 100 anos”, que é para lá que eu vou.
O próximo passo é abandonar o cigarro, mas isso é papo pra 2014.
Há dez anos alimento a idéia de uma festa vespertina. Que começaria um pouco antes de um almoço lento e demorado num sábado, teria chefs convidados e bandas e DJs tocando um sonzinho tranqüilo à medida em que a tarde cai. Cheguei a tentar algo do tipo na época da Gente Bonita, quando comecei a conversar sobre isso com o pessoal do Espaço +Soma, mas não foi pra frente – e olhando em retrospecto, foi bom que tenha sido dessa forma. Até que, quando o Alberta #3 suspendeu suas atividades por quase três meses no início do segundo semestre, bateu a crise de abstinência de discotecagem e comecei a caçar lugares onde poderia fazer uma edição extra das Noites Trabalho Sujo. Falei com o velho compadre Dago sobre a disponibilidade de noites do Neu e ele me falou que pra agendar alguma noite tava meio em cima da hora e emendou “mas estamos começando a fazer festas no domingo, começando a tarde e o próximo domingo está vago…”
Plim!, acendeu-se a velha lâmpada sobre minha cabeça. Acionei os suspeitos de sempre da Noites Trabalho Sujo – meus queridos irmãos Babee, Danilo e Pattoli – e o Klaus, com quem já vinha conversando sobre esse tipo de festa devido a afinidades sonoras, e os lembrei da idéia da Sussa. “Vamos nessa!”, responderam todos em uníssono digital. O famoso “plus a mais adicional” veio por intermédio da minha esposa, cujo recém-sócio Bruno Alves (2014 promete!), estava disposto a levar seus hambúgueres artesanais, que ele só fazia para os amigos, para a rua. Acionei o Silvano, que faz os flyers das Noites Trabalho Sujo, para pensar em um conceito visual para a festa, criei uma conta no Instagram apenas para a novidade, conversa daqui, conversa de lá e no dia 29 de setembro estreamos a primeira Sussa no quintal do Neu. O tempo estava dos piores, aquele domingo domingo nublado em que você implora para não ter de sair da cama, mas mesmo assim 70 heróis vieram ver o que seriam a versão vespertina da festa que começou no Alberta #3.
A festa evoluiu intercalando edições entre o Neu e a Casa do Mancha – pois já havia assuntado outro velho compadre, o Mancha, quem havia chamado para dividir outra festa na Trackers, sobre a possibilidade de fazer uma Sussa em sua casinha na Vila. Soube que a Fefa vinha para São Paulo com seus Sweet Grooves, que já acompanhava via internet, e perguntei se eles não queriam fazer uma jornada dupla depois da festa em que tocariam no sábado, e eles vieram. Na edição seguinte, o Dago perguntou se eu não era a fim de fazer shows e, no domingo anterior à terceira edição da festa, morreu o Lou Reed. Perguntei pra Lulina se ela não animava fazer um show em homenagem ao nosso herói e, no estilo “vambora” que tem sido uma das marcas da festa, ela topou e ensaiou um show em menos de uma semana. Na última edição do ano foi a vez de colocar Rafael Castro e Bárbara Eugênia para tocarem músicas próprias e de compositores de sua geração. E o tempo frio foi desanuviando, o sol começou a abrir e o clima foi ficando cada vez mais na medida.
Enquanto o Bruno virava seus Kød Burgers Artesanais e o som variava entre o Washed Out, o Blood Orange e os Boogarins, crianças corria pelo quintal e a pista virava atração secundária – estamos mais preocupados em fazer uma boa trilha sonora pra gente legal bater papo numa tarde de domingo do que fazer as pessoas dançar. E o povo vinha me cumprimentar sobre a iniciativa, que para mim sempre me pareceu inevitável e, com o passar dos anos, óbvia. Às vésperas dos 40 anos (faço 39 no próximo dia 13), muitos amigos que lamentam não poderem ir às minhas outras festas noturnas (ou por terem filhos pequenos ou por não se verem mais fora de casa depois das três da manhã) finalmente puderam comparecer e aos poucos estou definindo meu futuro na manha. Fora que depois de uma certa idade, a noite fora de casa perde um pouco o sentido se for além de um jantarzinho.
Só tivemos cinco Sussas até agora. Por isso, aproveito esse momento retrospectiva 2013 para agradecer publicamente o empenho de quem esteve diretamente envolvido na festa – Dago, Gui e o povo do Neu, Mancha, Tomáz e a rapeize da casinha, Klaus, Danilo, Babee e Pattoli (que ainda tá devendo a discotecagem numa Sussa – do ano que vem não passa!), a Dre (♥) e a Helena (♥) que toparam fotografar, além da Lulina, Bárbara Eugênia, Rafael Castro e os Sweet Grooves, que aceitaram tocar de tarde quase sempre de supetão – e de coração aberto. A festa já é um sucesso graças ao carinho de vocês – e prometo fazer tudo para que 2014 seja bem mais… Sussa 😉
A primeira vez que ouvi a voz de Lou Reed foi quando um professor de história me emprestou uma fita cassete com o terceiro disco do Velvet de um lado, algumas músicas do Loaded do outro e “Venus in Furs” no final. Eu era adolescente em Brasília no início dos anos 90 e o acesso à informação em geral (principalmente se comparado a hoje em dia) era praticamente nulo. Comecei a gostar de música com uns 10 anos de idade e descobri o rock clássico ao mesmo tempo em que o rock brasileiro dos anos 80 paria um de seus principais representantes na minha cidade-natal – e enquanto os Beatles puxavam toda uma linhagem clássica e estabelecida (Stones, Cream, Hendrix, Doors, Led, Pink Floyd), o Legião Urbana citava toda a geração pós-punk (Smiths, Joy Division, Cure, Echo & the Bunnymen, Jesus & Mary Chain) além dos próprios punks ingleses (Sex Pistols, Clash, Buzzcocks) e americanos (Patti Smith, Talking Heads, Ramones). O raro contato com esse universo acontecia através da única revista regular de música (a Bizz) e especiais esporádicos de outras editoras (em geral, as revistas-pôster da Somtrês), em programas específicos de rádio (uns contrabandeados do Rio e de São Paulo em fitas cassete) e discos que raramente entravam no circuito, seja através do relançamento em CD (a novidade da indústria fonográfica da época) ou de amigos que traziam discos importados em raríssimas viagens ao exterior. Haviam duas dezenas de livros sobre música nas prateleiras das livrarias (dois do Nelson Motta, dois da Ana Maria Bahiana e vários Songbooks do Almir Chediak) e não existia internet.
Nesse garimpo de informações musicais começou a pintar, vez por outra, o nome do Velvet Underground. Sempre apresentado com excesso de estranheza, o grupo nova-iorquino não estava preso a nenhuma cena musical específica e era cria da mente de dois cérebros pervertidos – o estudante de música John Cale e o estudante de literatura Lou Reed. Os dois universitários negavam suas origens acadêmicas num projeto musical que misturava sexo, drogas e rock’n’roll sem um pingo do hedonismo bicho-grilo de seus contemporâneos. O clima do Velvet Underground era sujo e noturno, quase sempre barra pesada, com alguns ecos sentimentais funcionando como clareiras emocionais no meio do caos ali representado. Além da fita do professor de história, meu outro contato com a música de Lou Reed havia sido no disco VU, lançado em 1984, com as gravações daquele que deveria ter sido o terceiro disco do Velvet ainda com John Cale. Umas músicas do terceiro disco, outras do quarto, a íntegra do VU, “Venus in Furs”, algumas poucas fotos e muitos textos sobre a ruptura provocada pelo primeiro disco, as performances nos shows, os temas tabu, a baterista unissex, a viola elétrica, a microfonia de duas guitarras histéricas, a associação com Andy Warhol, a vocalista Nico vindo direto da Europa para ganhar três músicas-chave no primeiro disco. A biografia do Velvet é uma lenda sedutora para qualquer fã de rock’n’roll e o mínimo glamour combinado ao excesso sonoro e cênico até hoje é uma das matrizes do que chamamos de punk rock.
Mas não só. Lou Reed é desses marcos do rock que expandem suas fronteiras. Depois dos Beatles, talvez apenas o Velvet Underground tenha ampliado tanto os horizontes de uma música que nasceu como som do inconformismo adolescente norte-americano para tornar-se a trilha sonora do século 20. Tudo bem que o pacto feito com John Cale antes da banda existir (fazer música para agradar apenas a si mesmos) tenha suas raízes em bases opostas: Lou Reed não aguentava mais escrever músicas sob encomenda na gravadora Pickwick e John Cale havia chegado à conclusão de que a música erudita contemporânea o limitava. Mas o acordo entre os dois mudou completamente o rumo do rock – e da históra. Fodam-se os fãs, a indústria, os pais, o país. A única coisa que realmente importava era fazer barulho com outros amigos em uma garagem qualquer e falar do que viesse à cabeça. Esse é o principal legado do Velvet Underground.
Já a principal contribuição de Lou Reed veio da aspiração erudita em elevar a carpintaria do gênero às esferas da alta literatura – e para isso, contou com o submundo. A noite eterna, que se arrasta por bares, puteiros, ruas mal iluminadas e frequentadas por trambiqueiros, estelionatários, marginais e outras almas que se perderam na ingenuidade de um dia ser alguém. Contraposto ao mondo pop criado ao redor do padrinho do Velvet, Andy Warhol, aquele cenário fora habitados séculos antes por personagens de Shakespeare, Dostoiévsky, Dickens e agora vinha colidir-se com o mundo das artes do século 20. De repente prostitutas e viciados tornavam-se modelos e atores e a desolação do gueto era combustível para letras e riffs que cantavam as dores de Janes, Candys, Bills e Lisas e a transformavam em poesia mudana, suja, cantada com um sorriso irônico e um olhar perdido.
Sua morte é a mais importante no pop de 2013, pois vivemos num mundo que um dia só existiu na imaginação de Lou Reed. Poucos podem gabar-se de fazer a própria criatividade ter dado origem a uma mudança de comportamento que se espalhou pelo planeta. Lou Reed era um desses.