Uma outra Céu

, por Alexandre Matias

ceu-apka

Mais uma vez Céu me chamou para escrever o texto de apresentação de seu disco – e em seu quinto álbum, chamado Apká! e lançado de surpresa nesta sexta-feira, a cantora paulista repete o time de produtores que inclui Pupillo e Hervé Salters, resumindo sua trajetória musical ao mesmo tempo em que aponta para novos caminhos para seu futuro próximo – inclusive, como intérprete, lançando canções que Caetano e Dinho dos Boogarins fizeram para ela.

Timbres sintéticos, beat digital, vazios sônicos, um “olá” dissimulado, uma protagonista artificial – “Off (Sad Siri)”, faixa que abre o quinto disco da cantora paulistana Céu, parece dar uma ideia oposta à vibração que paira sobre esta nova obra. Composto logo após o nascimento de seu segundo filho e gravado no início deste ano, APKÁ! – assim mesmo, com maiúsculas e exclamação – consolida a jornada inicial da carreira da cantora e compositora mais importante de sua geração num disco quente e minimalista, que junta extremos sonoros, temáticos, musicais e conceituais como se repassasse as viagens que ela fez em seus discos anteriores. E faz com que ela deixe esta crisálida transformada em uma nova compositora e intérprete, pronta para começar uma nova fase de sua carreira.

O título veio do caçula Antonino, uma expressão gritada pelo bebê de apenas um ano para designar satisfação plena. Sorrindo feliz, o filho de Céu com o produtor e baterista Pupillo berra a estranha palavra inventada para mostrar que está feliz com tudo que acabou de acontecer, seja uma refeição ou uma brincadeira, num misto de excitação, plenitude e agradecimento. E, de certa forma, APKÁ! é Céu fazendo exatamente isso – em forma de música.

Ainda em “Off (Sad Siri)”, ela já começa a mostrar a colcha musical que compõe o novo trabalho, reunindo teclados chorosos e um violão melancólico aos seus vocais sussurrados e entrelaçados com os do vocalista congolês Leonardo Matumona, um dos poucos convidados do disco. Ao seu redor, ela repete o mesmo time do festejado Tropix, seu disco anterior: o francês Hervé Salters, da banda General Elektriks, repete seu papel como coprodutor e tecladista, bem como o baixista e fiel cúmplice Lucas Martins e Pupillo na bateria, programações e coprodução. O guitarrista Pedro Sá, que já tinha participado do disco de 2016, consolida o quarteto que acompanha Céu por quase todas as faixas. Aliadas à primeira, as duas faixas seguintes, “Coreto” (que foi composta com Gal Costa na cabeça) e “Forçar o Verão” fazem a ponte direta com o universo noturno da pista de dança do disco anterior, mas APKÁ! está longe de um Tropix 2.

Isso começa a se provar a partir da difusa “Corpocontinente”, que abre um atalho inusitado no percurso fluido que o disco parecia optar. Psicodélica em câmera lenta, ela começa a mostrar que Céu passa a experimentar para além do que poderia ser facilmente associado à sua produção: a partir da quarta canção, as composições, os vocais e os arranjos musicais – tudo inspecionado pessoalmente pela própria Céu -, começam a fundir as diferentes influências e referências musicais que exibiu em toda discografia.

Seus discos anteriores poderiam ser resumidos em determinadas paisagens: enquanto o homônimo disco de estreia apresentava-a ao lado de sua paleta inicial de influências (do samba ao reggae, passando por rock, MPB, soul, pop e música africana), os seguintes a fizeram percorrer por diferentes ambientes, quase todos imaginários: Vagarosa descia pela árvore genealógica do reggae, Caravana Sereia Bloom explorava o deserto e a estrada, Tropix era noturno, sintético e dançante. APKÁ! converge estes diferentes universos ao mesmo tempo em que apresenta novas experiências musicais. No novo disco, Céu experimenta novas formas de composição e novas formas de utilização de sua voz, cada vez mais segura de sua personalidade artística e de como consegue trazê-la para a superfície.

Dois dos bons exemplos estão nas duas únicas versões do disco – momentos desafiadores especificamente para Céu. Ela que é uma das principais responsáveis por mostrar para toda uma geração de cantoras que era possível compor em vez de apenas interpretar – papel das principais vozes femininas da história da música brasileira -, em APKÁ! se reinventa como intérprete a partir de composições inéditas que pediu para que dois compositores distintos – Caetano Veloso e Dinho, dos Boogarins.

“Pardo”, de Caetano, é uma das grandes composições do baiano neste século e ganha um corpo quase mágico na voz de Céu, que convidou Seu Jorge para cantarolar seu refrão sem palavras. “Make Sure Your Head is Above” foi uma encomenda inédita que Céu fez para Dinho – compor em inglês. O resultado é uma das melhores canções da carreira do compositor goiano, jogando uma luz solar pouco vista em seu grupo original. Esta faixa, um dos pontos centrais do disco, conta com um convidado de luxo, o guitarrista norte-americano Marc Ribot, que acompanha a cantora e Pupillo, fazendo discretos beats, numa canção deslumbrante. Nas duas composições, momentos únicos de APKÁ!, Céu domina seu timbre criando universos sonoros únicos a partir da relação de sua voz com os outros instrumentos – mostrando como já está partindo para outra forma de lidar com as canções, mesmo apenas como intérprete.

Como autora, mantém este amálgama musical pelo resto do disco, buscando graves gordos da Jamaica, guitarras desérticas, beats artificiais, em que seu surge cada vez mais confiante de si. “Nada Irreal” sobe ao espaço sideral em belos arpeggios digitais, “Fênix do Amor” resume um renascimento artístico ecoando tecnopop, pós-punk e electro, a deliciosa “Rotação” é tão radiofônica quanto experimental. Quase ao fim do disco, “Ocitocina (Charged)”, entrega sua principal influência. É uma canção sobre o parto de seu filho mais novo, cheia de metáforas e analogias que tornam-se evidentes na hora em que ela a batizou com o nome do hormônio liberado pelas gestantes pouco antes de dar a luz. Ela quis capturar a sensação mágica do parto, que joga a mulher para um lugar “fisicamente inexistente, mas sensorialmente real – pra dentro de si mesma”, um lugar imaginário que ela chama brincando de “partolândia” (que quase foi o título da canção).

O disco não foi apenas batizado por Antonino, mas puxado por sua existência. Gerido musicalmente enquanto o filho era gestado, começou a tomar forma logo que o menino nasceu. “Ocitocina” foi a primeira música a tomar forma quando ela começou a pensar no disco, no segundo semestre de 2018, e logo que ela conseguiu o primeiro rascunho de canções, pegou o filho e foi sozinha para Berlim, cidade em que mora Hervé, amigo e um dos produtores do disco, depois de trabalhar várias músicas com o outro produtor, Pupillo, ainda no Brasil. O pouco tempo que ficaram sozinhos – acompanhados do recém-nascido – serviu para consolidar as canções que foram finalizadas no Brasil no início de 2019. O disco termina tão artificial quanto começou, com a dupla Tropkillaz, transformando Céu numa diva dance androide.

APKÁ! parece inofensivo – como um bebê – mas é cheio de camadas de interpretação – como um bebê. “Alpha by night” é um programa de rádio ou uma senha para uma caçada noturna? Quem são os protagonistas de “Pardo”? As faixas de abertura e encerramento são irmãs? “Forçar o Verão” é uma música sobre o momento político atual do Brasil? “Fênix do Amor” é sobre a própria Céu? Ela dá as respostas, nem se importa com elas, só provoca.

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