A jornada de Kika

, por Alexandre Matias

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A cantora e compositora paulista Kika continua seu rumo devagar, sem pressa, passo a passo, e começa a viagem que planejava ao lançar seu segundo disco, Navegante, que pode ser ouvido em primeira mão aqui no Trabalho Sujo. Produzido por um dos papas do dub no Brasil, o nova-iorquino paulistanizado Victor Rice, o disco reforça a veia reggae que ela já exibia em Pra Viagem, mas sem perder o prumo nem o foco, colocando em movimento o que parecia ser apenas uma intenção no disco anterior. Sua voz pequena parece inofensiva, mas deixe-se levar…

Ela me contou a história da gravação do disco, que interessante para entender sua sonoridade:

“Eu e o Victor começamos a pensar nesse disco em julho do ano passado. Ele tinha uns dias livres e eu fui ao Copan mostrar as ideias. Ele ouviu tudo e se empolgou, e a partir de então fomos marcando as sessões nas janelas que surgiam na agenda superlotada dele. Gravei as bases em casa, com voz e ukulele, voz e violão, tudo já com mapa, no click, no jeito pra encaixar os instrumentos. A primeira parada foi mandar essas bases pro incrível Loco Sosa, que gravou as baterias no home estúdio dele – Loco Sosa’s Noise Factory – e mandou em faixas super organizadas pra gente começar. A segunda parada foi no estúdio do Klaus Sena – Klaus Haus -, em que ele e o João Leão fizeram uma sessão de baixo e teclado para “De noite desconfia”, “Armour” e “Se você soubesse”.

Depois dessa primeira etapa quase tudo foi feito no Copan. Eu e o Victor rendemos muito juntos, ele vai puxando os timbres e tendo ideias, e eu fico do lado à disposição. Ficamos muitas horas em silêncio profundo enquanto ele trabalha, e quando chega o momento levantamos e gravamos nossas linhas de voz, baixo, guitarra, escaleta, pandeirola, etc. Gravamos poucos takes, na concentração e na confiança mútua. Nossa relação profissional e nossa amizade são fortalecidas por essas horas de silêncio, que são intercaladas pelas sessões de gravação tranquilas e divertidas.

As guitarras a gente gravou na casa do Gui Held, fomos eu e o Victor e trabalhamos lá, pra que ele ficasse bem à vontade e pudesse usar os pedais dele, e pudesse se inspirar com calma. Pra gravar os metais marcamos um dia no Estúdio Traquitana, o Victor escreveu os arranjos, o Cuca chamou o Gralha e fomos. Tudo delícia também, tranquilo, astral, do jeito que a gente queria.

Uma parte importante que acabou surgindo no disco foi a música corporal. Eu sou muito amiga da Helô Ribeiro, dos Barbatuques, acompanho a carreira deles há 20 anos e também sou adepta das auto-batucagens. Atualmente sou integrante de uma Orquestra Corporal que o Barba criou, em que fazemos várias pesquisas de improvisação, harmônicos da voz, e tal. Então resolvi fazer uma sessão livre com o Barba, a Ritamaria, Zuza Gonçalves, Barulho Max e a Helô Ribeiro. Ficamos no Traquitana improvisando e as palmas, chiados e estalos entraram em várias músicas. Nessa mesma sessão gravamos os coros da Helô e da Rita na faixa “Navegante”. Elas são grandes amigas e companheiras musicais, adorei ouvir uma da cada lado do fone cantando “imagina… imagina…”. A Helô gravou também as flautas de “Janela” nesse dia.

Outro personagem importante nessa história: o Alex Tea. Esse cara é um norte-americano que ama capoeira e música brasileira e fala português fluentemente. Ele tem uma carreira bem ligada ao reggae, com a banda Kiwi. Conheci o Alex há alguns anos quando participei de alguns shows com ele e a banda Massa Rara e depois cantei no disco da Orquestra Raiz, produzido pelo Klaus, com músicas do Alex interpretadas por uma galera, tipo o Saulo Duarte, a Luê, Daniel Groove, etc. O Alex gravou na casa dele em New Jersey, fez os coros e a guitarra de “Armour”.

A metáfora do “Navegante” é muito recorrente na língua portuguesa, até meio batida, mas não consegui fugir dela porque realmente consigo uma síntese que percorre o disco todo.

O disco inteiro fala de limites, alguns são transpostos, outros não. As margens do barco e da mente separam o extraordinário do cotidiano, as possibilidades parecem infinitas, mas nem sempre nos atiramos à dúvida, muitas vezes estamos apenas cumprindo a demanda diária, mesmo que tenhamos consciência de todo mistério.

No primeiro disco eu fiz uma viagem bem distendida, sempre de passagem, sem fugir da chuva, sem grandes tensões. A maior diferença é que nessa viagem agora eu assumi vários riscos. Procurei diferenciais musicais e poéticos que saíram um pouco dos limites, tentando desfrutar de outro tipo de prazer que ultrapasse o autoengano, mesmo sob o risco de se perder na noite do mar.

A mudança é uma realidade da vida, as pessoas que nunca se arriscam podem estar ainda mais expostas. Eu acredito mais na atitude de acompanhar o movimento, e assim ficar mais sujeito às ondas, e assim conseguir chegar mais perto do sublime. Meu maior medo é desviver.

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Ela também comentou cada uma das faixas do disco, que deve virar um dez polegadas em vinil (como o primeiro) em breve…

“Navegante”
“A canção surgiu de uma ideia musical, eu queria compor uma música em compasso 5/4, sentei no piano e fiquei tentando. Eu queria fazer uma letra que fosse emocionante, por isso pensei muito em “Lets get Lost”, do Chet Baker, que é uma proposta de fuga para os braços um do outro. Essa imagem também me trouxe “Imagina” do Tom e do Chico, e então veio a noite e o mar. A sessão de cordas tem arranjo do Victor, foi gravada no sábado de carnaval no Traquitana, com Buda Nascimento no violino, Renato Rossi na viola e o Victor no cello. Eu mesma operei a gravação esse dia, pra ele tocar. Gravamos também um violão lindo do Lucas Bernoldi.”

“Flor de Maracujá”
“Essa eu queria gravar desde 2012, quando incluí norepertório do show Pra Viagem. O Victor sugeriu uma versão reggae desde o início, mas quando fomos gravar ele resolveu radicalizar ainda mais. Pegou um riddim jamaicano e pediu pra eu cantar em cima, sem a harmonia do João Donato. Ele foi falar pessoalmente com o João Donato, que acabou curtindo e dançando.”

“De noite desconfia”
“Uma composição de um grande amigo, Danilo Monteiro. Eu gosto tanto das composições do Danilo que já fiz um show só com músicas dele, em 2009. Criamos uma banda chamada Miudezas e Afins, com ele mesmo no violão de aço, Décio7, Pipo Pegoraro, Mauricio Fleury, Cris Scabello e Marcelo Dworecki. O Danilo é jornalista, nos conhecemos na ECA, ele escrevia na revista Bizz e agora é diretor de teatro, uma grande figura. Essa música era do nosso repertório, resolvi regravar porque achei que a letra tinha a ver com minha ideia de narrativa do disco, já falo sobre isso.”

“Por aí”
“Essa é o xodó do Victor. Surgiu também de uma ideia musical. Eu estava estudando harmonia e queria fazer uma canção com dois centros tonais. A letra fala de uma sensação que eu tenho sempre, quando estou numa situação de rotina intransponível, quando penso nas infinitas possibilidades de sublimação que não estou desfrutando…”

“Armour”
“Aqui o ponto de partida foi a letra, já escrevi um texto sobre ela, lá vai: ‘A vida é linda e mágica, o ser humano chegou a níveis adoráveis em poesia e precisão, e mesmo assim ainda gastamos tempo com bobagens. Um dia todos iremos embora e vai ter sido uma pena cada momento de sabedoria e amor perdido. Nos escondemos e nos defendemos e brigamos, e depois vamos embora para sempre.'”

“Janela”
“Essa música surgiu de um groove que eu faço no violão que é uma bossa em 7/4. A letra é simples, ela imita as mulheres do Chico Buarque, a Januária, a Noiva da Cidade… Uma beleza distraída que passa a vida sem mudar de lugar, que suspira de amor pela sua rotina, que nunca faz diferente. Eu tinha a feito faz tempo, mas depois abri a parceria pro Fernando TRZ e pro Bruno Morais. Eles mudaram umas partes da melodia que eu não gostava muito, o TRZ criou esse riff de flauta, o Bruno Morais gravou o coro e deu um molejo bem legal na melodia.”

“Pra ficar na sua vida”
“Eu e a Tika estamos fazendo várias músicas juntas, já fizemos duas pro disco dela também. Essa fala de um amor que já começa com hora pra acabar, como quando nos apaixonamos no meio de uma viagem. Ela é triste, mas a ideia é se manter livre mesmo no meio de uma paixão, e dar um jeito de transformar as despedidas. Acabamos nos tornando parceiras do Vinícius de Morais, porque citamos a “Serenata do Adeus” abrindo um cânone no final. É uma faixa bem diferente das outras. Gravamos em trio, na casa do Pipo Pegoraro. Fizemos tudo no mesmo dia, o Pipo gravou charango e umas guitarras bem lindas, a Tika cantou e assoviou – acho maravilhoso saber assoviar, e também adorei a melodia, que ela criou na hora. Toquei piano elétrico também, fizemos quase tudo ao vivo, muito astral.”

“Se você soubesse”
“Ela parece uma baladinha prafrentex, mas na verdade eu estava pensando em petróleo, em capitalismo, em consumo e desejo. É uma minirreflexão sobre nosso modo de vida. Nós nascemos no meio de um processo e não dá tempo de reverter nada sozinho, vamos cumprindo as regras sociais e nos encantamos com prazeres, mas existe um lado obscuro, a exclusão, a seletividade…. Mas somos uma peça pequena, chegamos sem manual de instruções e a vida passa depressa.”

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