A história oral de uma Fortaleza interior
Essa é mais uma que saiu na Simples deste mês.
Hoje ouvimos falar em uma cena do Ceará composta por nomes como Cidadão Instigado, Montage e Karine Alexandrino, mas estes são frutos de uma lenta ebulição cultural que muda radicalmente a paisagem musical por aquelas bandas.
Dustan Gallas (Forma Noise, Realejo Quartet): “Eu, Rian, Boca, Fernando, Regis temos praticamente a mesma idade e nos conhecemos de infância e adolescência. Fui vizinho do Rian, e conheci o Catatau gritando do outro prédio, perguntando se eu queria comprar um pedal heavy metal. Fomos vizinhos, tudo aqui pela Varjota onde moro ainda agora. Metidos a tocar desde que nos conhecemos, formamos bandas, e tínhamos até um código que a gente criou que quando um arrumasse um show levava o outro pra abrir.
Fernando Catatau (Cidadão Instigado): “Eu tive minha primeira banda em 1990. Se chamava Companhia Blue e nela tocavam o Jr. Boca, que cantava e tocava guitarra, o Regis Damasceno, que hoje toca guitarra do Cidadão mas que na época tocava baixo, e o Amilton”.
Dustan: “Desde sempre tinha esse negoço de música autoral, não sei porque. Eu e Rian éramos de de uma banda que chamava A Tribo – o Companhia Blue era um Santana Zérramalheado e nós queriamos ser o Red Hot Chilli Peppers. Lançamos uma demo em cassete, uma banda de cada lado. Depois de uns anos, o negocio ficou mais sério e praticamente todos das nossas duas bandas resolveram sair de Fortaleza pra estudar música”.
Thaís Aragão (jornalista, Gerador Music): “Eu era mais nova que eles, fã de uma banda chamada Velouria, que era a guitar band do Régis Damasceno, que também tocava no Companhia Blue e hoje toca com o Fernando no Cidadão Instigado. Nessa época eu fazia zine, porque achava incrível não ter nada escrito sobre as bandas que haviam surgido aqui. Tinha que ter registro, tinha que difundir. Só depois é que formei uma banda com umas amigas, e nós nem sabíamos tocar. Ensaíavamos numa casa vizinha à casa do Régis, e às vezes ouvíamos o ensaio deles e quando não conseguíamos afinar todos os instrumentos, o Régis vinha dar uma força. Nós tínhamos 17, 18 anos”
Catatau: “Nessa época tinham várias bandas em Fortaleza – como Maresia, Velouria… –que com o tempo foram se acabando. Algumas ainda resistentes estão por lá, mas é difícil manter uma banda por tanto tempo sem ter muitos espaços para tocar”.
Ricardo Castro (produtor, Montage): “Essa Nova Duna, que é como a gente tá chamando esse esquema que veio à tona agora, teve ponto de partida no meio dos anos 90, que foi quando todo mundo aí começou a trabalhar de alguma maneira com música. O Catatau, o Boca e o Dustan tinham uma banda que se chamava Companhia Blue. Depois o Dustan se juntou com a Priscila e fizeram o Forma Noise. A Karine era do Intocávei Putz Band, banda muito boa, meio teatral. O Leco teve várias bandas de metal e resolveu ir até a música eletrônica, desde então montou o Mary my Muse, de drum’n’bass, o Influenza, O Quarto das Cinzas e então, o Montage”.
Regis Damasceno (Velouria, Cidadão Instigado): “Apesar das pessoas se conhecerem, não existem vontades comuns, sentido de organização, muito menos um mesmo direcionamento musical. Em Fortaleza, as pessoas e as coisas acontecem de forma caótica e na música é a mesma coisa. Por acaso se encontram, tiram um som, saem fazendo”
Dustan: “Fernando e Boca foram pra São Paulo e depois Rio, e eu e Rian fomos pra Viena. A gente fez lá uma escola americana American Institute of Music. Essa saída coletiva foi 1994. Todos fizeram algum tipo de escola de música. Boca e Rian voltaram pra Fortaleza, algum tempo depois e Fernando e eu demoramos mais. O Fernando ficou entre o Rio e São Paulo e eu depois fui pros States, por mais um ano e Boca foi pra Bahia”.
Catatau: “O Cidadão Instigado comecou a ser idealizado em 1994. Eu morava aqui em São Paulo e comecei a compor minhas musicas de acordo com o que eu estava vivendo na época”.
Thaís: “Nossa banda se chamava Devótchkas, e depois de dois anos tocando mal e em lugares muito ruins, decidimos dar um tempo. E quase acabou. Até que ressurgiu aquele sentimento: tem que registrar, tem que difundir o que fomos ou ainda somos, sei lá. Acho que é o medo de se perder de si. Pois bem: voltamos para gravar um CD. O nome mudou para Alcalina, vendemos 800 camisetas, fizemos rifa, levantamos alguma bilheteria com shows que nós mesmos produzíamos e ganhamos alguns cachês decentes com shows no Centro Cultural Banco do Nordeste. Tínhamos a grana e pensamos em comprar um Macintosh para gravar sozinhos”.
Karine Alexandrino: “Antes do Fernando Catatau fazer seu primeiro CD, eu o conhecia de shows e de uma demo que ele gravou. Eu estava à procura de um produtor que cultivasse as mesmas idéias ou algo parecido. Que entendesse o meu momento: primeiro disco e tal, eu não queria imitar ninguém, tinha o romantismo de procurar fazer algo meu, sincero que tivesse a ver com minhas referências da infância, o que eu ouviae estava com sérios problemas pois absolutamente não havia ninguém por aqui, naquele momento em que eu pudesse confiar pra fazer música, meu disco. Eu levava muito à sério esta história toda”
Laya Lopes (O Quarto das Cinzas): “Eu vi pela primeira vez o Cidadão Instigado quando tinha 15 anos, num campeonato de skate, nunca tinha visto algo parecido, fiquei impressionada. Anos depois já estava cantando com um projeto de música brasileira no Porão do Theatro José de Alencar quando assisti a um show de Karine muito original, todas as pessoas entravam no camarim e a viam dentro do banheiro através do espelho”.
Ricardo: “As pessoas acabaram se conhecendo por se encontrar muito e por terem muitos amigos em comum. Lugares pra fazer show nessa época era ainda mais difícil que hoje. Rolava um circuito universitário bem capenga, que até hoje se arrasta, que tem um monte de banda cover e outro monte de banda imitação”.
Dustan: “Em 97, nos reencontramos todos aqui em Fortaleza. Já cada um fazendo mais coisa. O Fernando já tinha musicas pro Cidadão e tava formando o grupo. Ainda era meu vizinho, e mostrava as musicas pelo telefone, pra cada um de nós… Era engraçado. O Rian tinha virado músico profissional, acompanhando cantor, e o Boca entrou pra Faculdade de musica, aqui. Aí pronto, começamos a tocar juntos de novo. Nesse encontro depois de todo mundo voltar, a gente começou a fazer coisas mais interessantes que se desdobraram no que a gente faz agora”.
Karine: “Então encontrei num jantar o Catatau, não sabia nada da vida dele, mas resolvi confiar. Nós conversamos e eu então entendi naquele momento que era ele, o cara. Ele entendeu que teria que fazer um árduo trabalho de fazer o primeiro disco de uma cantora. A primeira coisa que combinamos naquele momento foi que a gente iria conversar muito, pra que tudo soasse verdadeiramente meu. E dele – como depois ficou claro nossa paixão em comum pela música popular, Roberto Carlos, os teclados toscos que adorávamos e o profundo respeito que tive por ele desde o começo do meu encontro com ele. Sentia que ele era uma cara que iria dar o que falar e tinha uma personalidade forte como a minha e que, assim como eu, iria defender seu trabalho e sua busca por originalidade, custasse o que custasse.
Na mesma época, ele abriu um bar, o famoso Bar do Catatau ou Esquina da Silva, lugar que eu freqüentava diariamente, afinal a gente tinha que se conhecer. Lá a gente ouvia de tudo em vinil e o meu repertorio foi aparecendo à partir dos vinis que a gente ouvia, e que eu reconhecia como músicas que eu já ouvia desde pequena. Depois de porres homéricos, dos quais prefiro não lembrar de alguns”.
Dustan: “A gente circulava no Paredon, na Praia de Iracema toda, na Biruta, no Café da Praia – fiz uma musica pra lá, no disco do Realejo -, e principalmente no bar do Celso, o Celso 90 graus”;
Catatau: “Eu lembro que tinham muitos lugares pequenos em que a gente se apresentava, a maioria na Praia do Futuro, como o Kafuá, onde moravam uns hippies, o Loco Maluco, o Biruta quando ainda era uma barraca pequena e legal, o Igrejinha… A maioria fechou por causa da violência, os que ainda existem são tapados com madeira e paga-se pra entrar. Antes era de graça mesmo”.
Ricardo: “Como em Fortaleza são poucas as pessoas interessadas e com acesso a informações novas, acaba que esse todo mundo das artes de lá são muito poucas pessoas e acabam se esbarrando sempre. Os lugares onde esses encontros aconteciam eram geralmente bares, como o Esquina da Silva, que era do Catatau, o ateliê do artista plástico Marcelo Santiago, chamado Peixe Frito, onde aconteceram alguns shows do Cidadão. Havia uma festa grande de música eletrônica que acontecia uma vez por ano em parceria com um selo holandês chamada Disco Voador, que deu um gás pro tecno e pro trance em Fortaleza. Houve também um lugar chamado Cidadão do Mundo – nome bem ressaca do mangue beat – onde rolaram as primeiras festinhas eletrônicas nos moldes das de hoje em dia”.
Catatau: “Foi uma época muito boa. Fico pensando que se hoje fosse como era naquela época, eu pensaria duas vezes antes de vir morar em São Paulo. Era difícil, mas tinha um grande prazer”.
Dustan: “Nessa mesma época conhecemos a Karine. O Rian tocava com ela antes numa big-band-putaria chamada Intocáveis Putz Band, tinha a foto de um jumento no encarte e manifesto e tudo. Quando ela chamou o Fernando pra produzir o primeiro disco dela, o Fernando me arrastou, pra ajudar. Eu fiz um disco de eletrônica com um duo que eu tinha chamado Forma Noise. Fui tocar no Crato (interior do Ceará) e conheci o Daniel Peixoto, ainda pré-teen. Ele era da trupe que nos levou pra tocar lá. Reencontrei com ele anos depoi ja aqui em Fortaleza”.
Karine: “Voltando ao disco, o Catatau chamou o Dustan pra fazer a parte eletrônica do disco, e aí que ele entrou nesta história. Todos freqüentávamos o bar, este bar é importante nesta história porque todas estas pessoas envolvidas planavam por lá. O Boca tocava com o Catatau numa banda de blues bem antes de eu “nascer”, era desta banda que eu o conhecia. Depois, o disco já pronto, ele, o Boca, dirigiu o show de lançamento do Solteira Producta, fez a banda, “canetou” as músicas pro resto da banda – cinco músicos, entre eles o Regis Damasceno, do Cidadão – e me deu uma força enorme. E nesse meio tempo sempre bebíamos e nos encontrávamos frequentemente lá no Bar do Catatau”.
Thaís: “Eu era repórter de informática, ficava super empolgada sobre as tendências sobre as quais eu mesma escrevia e ia tentar ver qual era também. Procuramos quem estivesse vendendo um equipamento assim. Foi quando conhecemos o Dustan. Na hora de fazer o negócio, perguntamos se dava mesmo pra gravar um disco ali. Aí ele nos mostrou algumas coisas que conseguiu fazer naquele mesmo G3: faixas dos primeiros álbuns da Karine Alexandrino e do Realejo Quartet. Piramos! Nós o chamamos para gravar o nosso e, quando ficou pronto, pensei que simplesmente não podíamos ficar como muitas pessoas que conhecíamos: com caixas e caixas de discos debaixo da cama”
Karine: “Dustan acabou finalizando o CD sozinho, por alguns motivos, tipo, o Catatau foi cuidar do disco dele, e o Dustan assumiu. Depois fiz meu segundo CD em parceria com o Dustan, o Querem Acabar Comigo, Roberto. Este sem composições com o Catatau – não tivemos tempo. A novidade agora é que vou fazer meu terceiro CD com o Fernando Catatau, desta vez sem o Dustan, e o Kassin vai entrar nessa”.
Ricardo: “Eu e os outros meninos do Montage começamos a andar com essa galera toda, o Leco incluído, só a partir de 2001, por aí”.
Thaís: “Na época tinha essas distribuidoras que estavam começando a trabalhar só com as chamadas gravadoras independentes. Entrevistei a Stela Campos, que tinha seus CDs distribuídos nesse esquema, e ela disse que rapidinho a distribuidora tinha saído do vermelho. Aí fui ver qual era também. A distribuidora só tratava com pessoas jurídicas. Meu irmão estava fazendo graduação em administração de empresas, se ligava muito em logística. Tinha um monte de disco bacana que provavelmente ficaria debaixo das camas. Sentamos e decidimos abrir uma empresa. O Thales não tinha nem 21 anos, então teve que entrar com um processo de emancipação para poder abrir a Gerador. E então foram lançados os primeiros álbuns da Alcalina, da Karine Alexandrino, do Júnior Boca e do Pádua Pires – que ainda não tinha entrado na história – ele hoje coordena a área de música na Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza, órgão da prefeitura municipal que cuida da cultura e que, ao que parece, pode se desdobrar em uma secretaria”.
Dustan: “Deixa eu entregar logo todo mundo: eu sou do Piauí, o Rian é do Rio Grande do Norte, o Daniel Peixoto é do Rio, o Leco é de Manaus, o Patrick é do Sul (ri), mas Karine é do interior do Ceará e Fernando, Boca e Regis são de Fortaleza”.
Thaís: “A Gerador Music acompanhou grupos como os Argonautas e o Lado 2 Estéreo, trouxe algumas bandas que consideramos interessantes para tocar em Fortaleza, como o Mombojó e o Hurtmold, ganhamos um edital e pudemos fazer uma turnê pelo interior do Ceará com uma banda de Fortaleza, O Quarto das Cinzas. Tivemos uma noite maravilhosa em Tianguá, por exemplo. As pessoas, os artistas da cidade, o clima. Não deveu em nada a noites incríveis que já tive em Fortaleza, Rio ou São Paulo”.
Dustan: “O Cidadão e o Forma Noise começaram a tocar mais fora do Ceará. Toquei em umas 12 cidades pelo Brasil, e na Holanda com o Forma Noise e o Cidadão ia regularmente a São Paulo tocar. Gravamos o segundo disco lá – oficialmente o primeiro ja que o de antes era um EP -, depois de tocar no Abril pro Rock. Quase ao mesmo tempo fizemos o disco da Karine, produzi o disco de uma outra banda que eu tocava aqui, o Realejo Quartet e gravamos esse segundo disco do Cidadão.
Teve disco de hip hop cearense que o Fernando produziu e a gente mixou, bastante coisa. Meio que multirão e depois rolou uma segunda saída geral, Fernando foi pra São Paulo, dessa vez sozinho pra remontar o Cidadão lá, depois seguiram Rian e Regis que são do Cidadão de novo. Eu fui pra Holanda tocar e estudar produção musical. Voltei pra resolver visto de permanência, e enquanto isso fiquei dez meses em Fortaleza. Gravei o segundo da Karine, e o disco do Boca. Seis meses depois o Boca mudou-se pra São Paulo.
Eu mudei pra Fortaleza de volta ano passado. Me casei. Toco numa banda de baile, uns rock e tal, toda semana. Faz um tempo tô na pré-produção do disco seguinte do Realejo, tenho um disco ‘Dustan Gallas’ (ri), que é de violão, porque o Boca insistiu que eu fizesse. Tô trabalhando na trilha de um musical, de um autor daqui, sobre o rio Jaguaribe. Ccolaboro com uma colega de faculdade da Holanda que é francesa mas mora em Amsterdã. A trouxe ano passado e tocamos aqui em Fortaleza, três vezes (www.myspace.com/nincaleece). E tem ainda um que é uma coletãnea de versões nao autorizadas de supermegaclassicos ou não, internacionais e nacionais, mais melancólicos interpretadas somente por não-cantores. É a primeira vez que lido com muita coisa não autoral assim e tá ficando muito muito bom. Quer cantar uma? Cabe todo mundo. Chama-se Eles Cantam Mal. O plano é lançar em agosto, no maior teatro daqui. o José de Alencar, mas sem divulgação, pra não ir muita gente – e celebrar a sensação de fracasso”.
Ricardo: “Em janeiro de 2004, nós quatro trabalhamos juntos num curta-metragem que até hoje é inédito, chamado Lola, que é baseado num conto do Patrick. Eu fui o roteirista, o Patrick e o Daniel, os atores e o Leco foi o diretor de fotografia. Eu já conhecia o Patrick e o Daniel e fiquei amigo do Leco aí. O ano passou, cada um foi pro seu canto. Eu, Leco e Daniel ainda fizemos um programa de TV independente chamado Asterisco que passava na internet. Tinha um tempo que eu sabia que o Patrick tava fazendo umas músicas em casa, meio electro, desde 2001 ele compunha, já com o nome de Montage, mas o material era inédito ao vivo e só existia em uma página no TramaVirtual”
Thaís: “O pessoal do Montage é mais novo que a gente. O Daniel Peixoto viu shows nossos. E assim a energia vai passando, um vai mostrando ao outro que é possível”.
Ricardo: “No fim de 2004, o Leco me mostrou umas músicas novas dele e achei que casava muito com as do Patrick e consegui unir os dois. Marquei uma data pro lançamento do projeto no Noise 3D, a casa mais histórica da cidade nos anos 00, e era pra ser um live p.a. Com uma semana pro show, chamei o Daniel pra fazer intervenções e cantar em umas três músicas, eles nunca ensaiaram juntos e na hora do show, a banda estava pronta. Foi uma coisa louca (ri). O Daniel fez o show inteiro e tudo deu certo”.
Karine: “Conheci o Daniel Peixoto, pulando e cantando uma música minha, Supermercado do Amor e gritando que me adorava. Depois ele passou a estagiar na mesma rede de TV que trabalho, a TV União. Ele chegou até a fazer um papel de assistente do programa durante duas semanas. Ele é uma cara divertido e que leva a história de glamour muito a sério, o que não é o meu caso. E sempre que a gente se encontra rimos muito. Eu rio do glamour, uso e abuso. E só. O Leco, da Montage, já tocou comigo em vários shows fazendo a parte que o Dustan fazia. E a Montage já tocou comigo na Parada Gay daqui, que reuniu 300 mil e foi bacana, apesar do som que fazemos ser bem diferente”.
Ricardo: “O legal do Montage é que foi tudo realmente muito feito na frente de todo mundo. No primeiro show ninguém tinha idéia do que ia ver ali. Eram umas 50 pessoas só, mas o sentimento geral foi de pavor misturado com fascínio. Era todo mundo de boca aberta, até a gente da banda. Antes de acabar esse show, já tínhamos fechado outro, isso foi muito empolgante. No segundo show, já existia a lenda, daí só foi crescendo”.
Dustan: “Nós somos da segunda geração musical daqui depois da Massafeira. O que se seguiu musicalmente na cidade, pelo menos no nosso núcleo, foi um desprendimento e quase negação do que eles tinham feito. Quando a gente era teen e começou a tocar apareceu o rock nacional, a gente queria ser rockers e não tinha uma intenção direta de investigar raízes e cultura cearense”.
Ricardo: “A gente sempre discutiu em Fortaleza que a cidade não tinha identidade própria, que acabavam se apegando a tradições de outros lugares, Recife principalmente. Acho que agora estamos conseguindo de alguma forma dar uma cara pro Ceará e isso já está sendo usado como legado pelas pessoas que continuam em Fortaleza”.
Laya: “Essa nova geração musical reflete isso, faz-se música cosmopolita. Lembro que quando vi o Cidadão Instigado pela primeira vez era mais roots. Eles usavam percussões, coisas meio arranjadas, a sonoridade e as letras me pareciam ter mais influência da cultura cearense, isso está dentro dele ninguém tira. Acho que cabe a cada artista ter sua pesquisa, conhecer a cultura nordestina que é linda e riquíssima”.
Dustan: “Isso é um assunto gigante, conversei muitas e muitas vezes com muita gente por aqui sobre isso. A atual conclusão sobre isso é uma teoria da análise feita sobre o aspecto geral da postura da sociedade cearense dos últimos 20, 30 anos, em tudo que se diz, pensa e faz sobre e com a cidade. A palavra chave é ‘apego’, ou no caso a falta dele. É assim que a gente entende e tenta explicar até pra nós mesmos como a gente fez tanto grupo de jazz, eletrônica, instrumental, experimental, tinha até um de free total, que virou o nome do disco do Cidadão ano passado”.
Catatau: “O maior legado do cearense é a cultura do desapego, sem raízes fortes. Nunca vamos ser iguais ao povo pernambucano, ao carioca, ao bahiano e acho isso uma coisa muito boa”.
Dustan: “Quanto menos associado ao Ceará, mais divertido pra nós. Tem música sobre isso, do Fernando, “não aguento mais ouvir os terráqueos daqui cantando:Je e ri ri coa coa coararaaaa” e a outra, “lá fora tem um lugar que me faz bem e eu vou lá”. Tem minha e da Karine, “faça um curso de inglês, pois eu darei o meu jeito de sair daqui”. É como se o processo desse grupo fora formado pela intenção exclusiva de não reverenciar nada que fosse da herança musical daqui. Nossos primeiros heróis não eram nem o Fagner nem o Belchior… Tanto que precisou-se, e agora se aprova, fazermos muito tempo a mesma coisa, pra que se entendesse por aqui… – e por aí também, ao que parece, o que a gente propõe. O Cidadão toca a mesma coisa há dez anos,. mas agora de tanto insistir, fez sentido”.
Ricardo: “O que existe de cearense está muito mais no modo como as coisas são feitas do que na música em si. Não entenda como renegação de Belchior, Fagner, Pessoal do Ceará, o escambau. É que as referências são praticamente todas externas, tirando os trabalhos anteriores do Leco e o sotaque. Como cearense, o grande orgulho é meio que assombrar os ouvidos e olhos do resto do Brasil com trabalhos que são muito diferentes entre si e, de uma forma ou de outra, não têm similares em canto nenhum, por enquanto”.
Karine: “Eu sou nômade, corajosa demais e tenho uma fome e uma competitividade própria do ser cearense. Porque aqui é um faroeste, veja bem, sobreviver aqui não é fácil é tarefa pra muito brio. Pra entender isto lembre de Alagoas, é algo parecido. A cidade, a aldeia, a província. Sinto uma ligação enorme com o Fausto Nilo que é também arquiteto, é um cara incrivelmente culto, filho da aldeia, veio do interior. Eles procuravam ter coragem de fazer trabalhos totalmente autorais e fortes esteticamente. Tinha muito arrojo”.
Dustan: “Aqui em Fortaleza não existe o exercício cultural/folclorico de Recife e Salvador, não… Fortaleza é um balneário esculpido nos últimos 20 anos pra se ser essa Miami meia-boca que se tornou. É raro um prédio histórico preservado”.
Ricardo: “Não sei se você conhece Fortaleza, mas a questão da vida noturna pro habitante da cidade é relativamente nova, só no meio dos anos 80 a classe média começou com esse hábito. Antes era o esquema bem puteiro no centro e festas em clubes tipo Rotary”.
Catatau: “Nunca pensei que fosse dizer isso, mas hoje eu acho tenho orgulho de ter nascido em Fortaleza, ter vivido as coisas que vivi lá e de ter saído também. Hoje tirando minha família e meus amigos, não me sinto muito à vontade. Pela violência que é absurda, e por não reconhecer mais tantas coisas da minha infância. Tudo é destruido rapidamente. A arquitetura é horrivel, os portugueses e italianos estão comprando tudo e apostando no turismo sexual e nada muda. Cada vez pior. Além do que, a maioria das pessoas que trabalham com música lá não gosta das coisas que eu faço. Quando eu morava lá sempre ouvia gente dizendo que eu era doido”.
Karine: “Tinha uma turma aqui, que costumo dizer sou filha dela. Esta turma era Augusto Pontes – pai da escritora Natercia Pontes -, Fausto Nilo e Fagner dos primeiros anos. Inteligentes, filósofos, eles partiram pro Rio de Janeiro em meados de 60 e 70 e fizeram uma historia de vida e de arte que me interessa intimamente. Sinto um pouco de Fagner – de antes do tempo dos discos Orós e Ave Noturna – no jeito do Catatau cantar”.
Dustan: “Todos nos dessa galera temos opiniões diferentes hoje em dia sobre o material cearense. Eu sou encantado com o que Fagner, Belchior e Ednardo fizeram no começo das carreiras, eles que são os mais importantes da música original daqui. Junto com Alberto Nepomuceno claro, mas aí é outro assunto… Eles também devem ter tido um processo parecido com o nosso. Mas eles misturavam muito mais. A celebração da cultura cearense junto com a vontade de sair daqui. Resumindo: influência direta não tem. Mas como negar que não se foi influenciado por uma coisa tão próxima da gente crescendo aqui, né… Eu diria que me orgulho muito de tudo que esses caras fizeram no começo. É um material lindo e uma conquista tremenda. O reflexo é esse que eu tentei explicar. É sobre desapego e negação que se desdobra em pesquisar outras coisas sem referência direta daqui. O que é uma coisa boa tambem. não é?”
Thaís: “Há uns anos fiz uma matéria em que o Fernando Catatau e o Rodrigo Amarante, que era moleque em Fortaleza também, falavam de como curtiam Aldo Sena e esses guitarristas paraenses que faziam música instrumental dançante. Eu também me amarrava naquele som, que tocava na estação de rádio AM que o motorista do transporte escolar sintonizava na volta do colégio. Era o tipo de coisa pra gente deixar de lado. Mas não. Quando você cresce e as pessoas começam a se aglutinar, descobre que estava todo mundo de ouvido em pé com as mesmas coisas, na mesma época, mesmo criança. E lá estava o Fernando no show dos Mestres da Guitarrada sexta passada, aqui em Fortaleza. Aquilo foi especial”.
Karine: “Na literatura tem a Natércia Pontes, Virna Teixeira. Tem uma porção de artistas plásticos fazendo um trabalho bacana, como o Yuri Firmeza, o próprio Weaver Lima, que é meu marido. Estilistas como Deoclys Bezerra, Lindebergue Fernandes, Weider Silveiro, que estão inclusive por aí em São Paulo trabalhando e compondo trabalhos interessantes e super autorais”.
Ricardo: “Nas artes plásticas tem Ticiano Monteiro, Waléria Américo, o grupo Transição Listrada, Érica Zíngano. Na fotografia tem Wanessa Malta, Nicolas Gondim e Enrico Rocha. Em moda tem Mark Greiner, Rafael Grangeiro, Silvania de Deus, Ilana Azeneth, Andreza Magalhães…”
Regis: “Em música tem o Macula, Sepia, O Sonso, Fossil, 2fuzz, Et Circensis, Monophone e Altifalante – produzi os dessas últimas duas -, Dago Red – também toquei e produzi -, Balso Snell – putz, esse também…”
Catatau: “Você sabe que o cearense é considerado o judeu brasileiro, né? Tem um monte espalhado por aí, sempre teve”.
Ricardo: “Em cinema é mais difícil falar porque sai muita gente de lá pra trabalhar no mundo todo, principalmente em funções técnicas, e acabam se dando bem nas suas profissões mas sem retorno por lá”.
Dustan: “A regra sobre Fortaleza é a seguinte: é um monte de gente capaz, e competente mas que vive de um mercado fraco e semiexistente, que melhora bem devegar. Aí o que acontece bem tipicamente é que as pessoas saem e fomentam cenas nas divesas áreas em outros lugares. Tem muito fotógrafo bom, muito profissional de cinema, muito músico bom, muito mesmo. O povo da poesia e literatura, artes plásticas melhorando, gente mais nova surgindo. Parece piegas, mas tem mesmo. E todos os legais, nessa onda de cultura moderna mesmo. Sem apego com aqui”.
Karine: “Mas veja bem meu trabalho não tem nada a ver diretamente com eles, mas é uma questão de herança inconsciente, algo que nas letras das músicas destes caras esta contida a história do Fernando e a minha e de todos os nossos amigos. Só me orgulho da minha coragem. Mas o que me leva a te-la a busca-la é foda, porque a província expulsa, não te quer, não te respeita. Só gosto do Ceará na medida em que ele me manda ir embora”.
Regis: “Não existe regionalismo forte, o que pra mim é extremamente positivo, pois tudo que sai de lá sai meio empenado, enviesado – vide Montage, Karine, Cidadão… Nunca tem nada na forma pura, graças a Deus”.
Thaís: “Nunca vou morar em São Paulo. Até porque minha experiência com São Paulo sempre foi muito de igual para igual. Pelo correio ou pela internet, sempre estive em contato trocando idéias com pessoas por motivos que não têm a ver com a cidade onde estamos. Além disso, eu viajava muito a trabalho e pude perceber que as diferenças na estrutura são mínimas. Então decidi que não ia embora para São Paulo, que ia fazer trincheira aqui mesmo. O desafio tem o mesmo tamanho”.
Karine: “Não me meto à imitar bandas inglesas. Não canto em inglês. Acho até uma bobagem. Putz não sou eletro. Faço música e só. Mas acho os paulistas ainda um povo cosmopolita. Eles aceitam as coisas, gostam do pop. A essência do pop é gostar, sem mecanismos retardatários de rotular tudo de levar tudo tão à sério, de ser excludente. Afff… Ser excludente e separar coisas e juntar coisas inseparáveis é tão idiota, tão cafona, tão datado”.
Thaís: “E a história não termina aqui. Talvez este seja apenas o início de uma grande história. Mas quem vai saber?”