Tudo Tanto #29: Esperança para 2017

, por Alexandre Matias

ceu-baiana

Mais uma coluna da Caros Amigos, esta publicada em fevereiro deste ano.

Esperança para 2017
Como a produção musical de 2016 consolida um movimento cultural que cresce desde o início do século e pode aproximar as duas metades de um país dividido

2016 foi um ano pesado sob quase todos os aspectos e 2017 não parece que vai dar trégua. Para começar, o novo ano é quando as tragédias que ocorreram no ano passado começam a valer – de Trump ao governo do ex-vice golpista, de Dória a Crivella. As crises política e econômica que assolam o planeta parecem ter se transformado em regra e que não há espaço nem motivação para resistir.

Mas, como canta um dos mortos de 2016, “há uma brecha em tudo e é por ali que entra a luz”. E enquanto via a democracia ruir, o Brasil e o resto do mundo engatar a ré rumo aos anos 80, à Velha República, à Idade Média, também pude ver de perto diferentes facetas de um movimento que está cada vez mais engatilhado e que cresce apesar da crise porque não é pensado apenas como um mercado, apesar desta ser uma de suas motivações.

A criação de um movimento musical autoral brasileiro já não é mais uma vontade – é um fato. Se compararmos então à crise criativa que vivemos na virada do século, quando a internet fechou algumas portas para abrir milhares de outras, a situação atual é o paraíso. A maioria das pessoas que trabalha com música – no palco e nos bastidores – vivem cada vez mais disso, sem ter que se equilibrar entre outros bicos e empregos.

Há uma lenta transição que também mostra a criação de um novo mercado que pode se tornar autossustentável em alguns anos, quando a internet é usada mais para divulgação da obra de um artista e eventos com a presença deles irão pagar suas contas. O mercado também amadurece à medida em que você tem várias máquinas de entretenimento trabalhando de costas para a mídia tradicional e fazendo as gravadoras multinacionais correr atrás do novo sucesso, que depende de cenas e artistas que já formaram seu público.

Por mais que você possa desgostar do sucesso do forró universitário, do novo sertanejo, do funk paulista e do hip hop, é inegável que seu sucesso é fruto de seu próprio trabalho – e não da única máquina que antes alimentava rádios e lojas de discos. Se você nunca ouviu “10%” de Maiara e Maraisa, “Malandramente” do produtor Dennis com Nandinho e Nego Bam ou “Bumbum Granada” dos MCs Zaac e Jerry – três dos maiores hits de 2016 no Brasil – não é sinal que você é desinformado ou que vive numa bolha, mas que o que antes era a principal corrente do mercado não é uma tsunami única como era até o final do século, mas várias ondas diferentes – algumas gigantescas, mas nunca reunidas em uma só, que, inevitavelmente, dominavam o espectro musical coletivo. Lembre da onipresença do axé, do sertanejo e do pagode nos anos 90 (e como você, mesmo sem gostar ou conhecer, sabe de letras inteiras deste período) e compare com o que acontece no mainstream atual. E se você ainda perceber que estes artistas movem-se por conta própria, sem o auxílio de uma máquina de mídia que elegia os ungidos, dá para ver o quanto a música brasileira mudou nestes últimos quinze anos.

E mudou também para aqueles que exploram outras fronteiras da música brasileira. O ano viu a consolidação de um movimento novo na música brasileira deste século, cujo ápice aconteceu no ano passado – a volta do inquietação. Dois discos sintetizam estas duas frentes diferentes de um mesmo movimento em 2016. O Tropix de Céu, melhor disco da carreira da cantora paulistana, aponta transformações políticas e estéticas sob uma camada de despretensão pop. E o impressionante Duas Cidades, do grupo baiano BaianaSystem, bota o dedo na ferida do apartheid brasileiro, fundindo pontos de vistas e gêneros musicais modernos e ancestrais, urbanos e rurais.

Os dois discos fundem-se a um cenário desenhado no ano anterior por discos como Transmutação, Dancê, Fortaleza, De Baile Solto, Selvática, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, Frou Frou, Mulher do Fim do Mundo, Rá!, Violar, Manual, Pedaço Duma Asa e Terceira Terra, que este ano ganhou aliados como MM3 do Metá Metá, os discos póstumos de Sabotage e Serena Assumpção, o Brutown dos The Baggios, o Melhor do Que Parece d’O Terno, o Golpe de Vista de Douglas Germano, o Arco e Flecha de Iara Rennó, o Monstro do DeFalla, o Ivete de Wado e o primeiro disco de Mahmundi, além de obras novíssimas de veteranos como João Donato, Letieres Leite, Odair José e Arthur Verocai. Isso sem contar a grande revolução estética transgênero, em que artistas como Liniker e os Caramellows, As Bahia e a Cozinha Mineira, Jaloo e Rico Dalasam desafiam classificações sexuais para expandir o horizonte cultural do país, modernizando-o na marra.

Há, contudo, um enorme abismo entre estes dois Brasis: um verdadeiramente popular, outro verdadeiramente desafiador. Dois levantes populares distintos, que se dividem esteticamente e retratam um país também separado pela política. Mas enquanto o cisma ideológico parece cada vez mais profundo e doloroso, a separação cultural parece mais fácil de se resolver. Artistas das duas vertentes já começam a flertar uns com os outros e nomes como Tiê, Karol Conká, Emicida, Tropkillaz, Kondzilla, Tiago Iorc, Anitta, Marcelo Jeneci e Mano Brown já lançaram os primeiros sinais de aproximação entre metades brasileiras que não se conversavam – e pode ser que estes primeiros flertes comecem a render frutos à medida em que a situação política do país vai por água abaixo. Esta talvez seja a boa notícia deste 2017 que já começa em transe e em crise – e o inimigo comum possa nos restituir a glória de ser uma só nação.

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