Pills’N’Thrills’N’Bellyaches – Happy Mondays

, por Alexandre Matias

Mais uma resenha ressuscitada.

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“Você fica esquisito numa banda”. Desculpa esfarrapada, isso é só Shaun Ryder disfarçando no começo do terceiro disco dos Happy Mondays, Pills’n’Thrills and Bellyaches, lançado no final de março de 1990. É claro que a afirmação é verdadeira e basta pensar em qualquer conjunto de rock que fez sucesso para ver o que acontece com as pessoas que compõem o tal grupo – “esquisito (spooky)” – é pouco. Mas a corja de malandros arruaceiros que saiu do mesmo squat em Manchester já era mais do que estranha antes mesmo de pensar em formar um grupo.

Ryder, seu irmão Paul, Paul Davis, Mark Berry e Gary Whilam já eram um conjunto de rock antes mesmo de fazer música. Agiam em conjunto, atacavam festas e eventos estudantis como uma gangue – sempre todos ao mesmo tempo, como se fossem personalidades diferentes de uma mesma pessoa. Uma pessoa carismática e encrenqueira, daqueles tipos que fazem brigas surgir dos lugares menos esperados e as transformam numa grande piada, antes mesmo do primeiro soco. Shaun Ryder era a encarnação perfeita deste sujeito e quando viu que balbuciava letras legais sobre a música dos outros, convenceu os outros a tocarem numa banda. Seu irmão assumiu o baixo, PD já tocava teclados e Gaz ficou com a bateria. Faltava uma guitarra e Berry não tocava nenhum instrumento. Convocaram um amigo da noite, Mark “Moose” Day, e a formação estava completa. Mark continuaria no grupo, fazendo, ao lado dos amigos, o que sabia fazer melhor: ser ele mesmo – o Bez.

Eles representavam a linha de frente de uma nova geração que surgia em Manchester. Fomentada pela boate Haçienda, do gravadora Factory e do grupo New Order, a vida noturna da cidade aos poucos ia fugindo do padrão pub/casa de shows que a maioria das cidades inglesas estava acostumada. As boates eram mais ecléticas que as extintas discotecas e era possível ouvir não apenas dance music como rock’n’roll. Temperada com as mesmas doses de guitarras inglesas e groove americano, a cena noturna de Manchester começou a ser cada vez mais ampla e tipos de diferentes tribos se entendiam no compasso da dança. O Haçienda era o templo desta vida notívaga. Ponto de referência até mesmo fora da Inglaterra, a casa passou a ter uma aura mágica, que outras casas noturnas pelo planeta tentavam imitar. Mas o ponto crucial desta mística ao redor da boate era uma nova droga, o MDMA, uma pastilha de anfentamina anteriormente usada como afrodisíaco. Usando uma música do New Order para ser aceito pela massa sem o tabu da sigla médica, o ecstasy mais tarde ganharia sua própria sigla urbana – um simples E maiúsculo, código para as incursões anfentaminadélicas que a droga proporcionava.

Os Happy Mondays (nome tirado de outra música do New Order – “Blue Monday”) eram uma espécie de elite bastarda desta cultura. Embora fizessem parte dos personagens mais típicos e conhecidos da noite, eles eram briguentos e gritalhões, se embebedavam à medida que se drogavam, transavam nos banheiros e dançavam até cair. Misto de hooligans com b-boys, eles tinham até uniforme: tênis vagabundo, camisetas listradas na horizontal, franjas compridas e calças largas, baggy. Quando Tony Wilson, dono da Factory, descobriu que aqueles lunáticos tinham uma banda, não titubeou em contratá-los e fazer de tudo para que se tornassem uma das maiores bandas de rock de todos os tempos. Ou que ao menos fizessem o mesmo estrago de uma dessas.

Era fácil. Com o Velvet Underground John Cale na produção, logo lançaram seu primeiro LP, Squirrel And G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out), em 1987. Embora bem recebidos pela crítica, o disco não emplacou. Mas não era motivo para parar. Wilson pôs Martin Harnett (o principal produtor da Factory) para dar um jeito no grupo e este acertou no ponto exato ao introduzir o elemento funk ao rock nortista com rap preguiçoso que caracterizava o som do grupo. Com seu segundo álbum, Bummed, o grupo conseguiu ser notado graças ao hit “Wrote for Luck”. Outro nome ilustre ajudaria o grupo a encontrar seu caminho: Vince Clark, do Erasure, acrescentou a batida house à faixa, transformando num pequeno sucesso nas pistas. Tudo se encaixava na cabeça de Tony Wilson: rock britânico, funk, house music… Os Mondays seriam a banda símbolo da geração Haçienda.

Para o terceiro disco do grupo, os produtores exatos – revelações das incipientes raves urbanas, os DJs Paul Oakenfolds e Steve Osborne encararam os Mondays de igual pra igual. Encharcados de drogas e com sexo saindo pelo ladrão, produtores e banda se enfiaram num projeto pessoal que mudariam suas vidas – e a história do rock. Estúdio de dia, festas à noite – e logo esta equação perdia o sentido, à medida que eles iam dormindo menos e misturando dia e noite, festa e estúdio. Nascia o clássico Pills’n’Thrills and Bellyaches e o principal movimento inglês dos anos 80. Nasciam os anos 90.

O hedonismo setentista desbravado pelos Happy Mondays em seu principal álbum era o mesmo que originaria o Primal Scream, as raves campestres, Quentin Tarantino, Trainspotting, Boogie Nights e a redescoberta do funk e da discoteca. Ao mesmo tempo, ajudava a galvanizar o rock inglês que culminaria com o britpop e as cenas de big beat e trip hop. Sim, eles passeavam pela mesma Paul’s Boutique que os Beastie Boys inauguraram um ano antes, antevendo a década vindoura como um paraíso de sexo, ritmo e noites viradas ainda mais intensa que os anos 60 e 70.

Mas eles não eram os únicos na cena. Da mesma Manchester sairiam os Stone Roses, os Inspiral Carperts e os Charlatans. Os primeiros surgiam como os grandes nomes da cena porque agregavam elementos de rock clássico, reverenciando a psicodelia do verão do amor e dizendo-se “a maior banda de todos os tempos”. Os Carpets tinham Noel Gallagher como roadie, onde ele aprendeu as artimanhas do showbusiness e inventou seu próprio marketing poucos anos depois, com o Oasis. E os Charlatans são os únicos que continuam na ativa, fazendo o elo perdido entre a geração baggy e o britpop.

Baggy? A culpa era das calças largas, mas este novo gênero nunca encontrou um rótulo específico. Uns chamam de indie dance (por unir rock independente e dance music), outros de baggy rock e um trocadilho mapeava geograficamente a cena. Madchester se tornou um termo comum na imprensa musical no final dos anos 80. Mas todas as outras bandas eram comportadas e inofensivas o suficiente para serem arquivadas juntos com o Deee-Lite (que pertencem à outra elite), os Soup Dragons e os EMF. Apenas os Mondays davam à Madchester a cota de loucura para poder ser chamada de “mad (louco)”. Diz o DJ John Peel: “os Mondays são a única banda a qual eu aplicaria o termo Madchester”.

Afinal, a noite não era só uma celebração. Era uma festa como outra qualquer, com velhos hits de discoteca, palavrões, brigas, bebedeiras, overdoses, gente transando, gente dançando, quase todo mundo com os olhos semicerrados à luz orbital do globo espelhado. A perda de sentidos nos faz fazer coisas boas e ruins – mas não tem problema, o que importa é estar lá. Em seu terceiro álbum, os Mondays eram este lá.

Pills… começa com a clássica “Kinky Afro”, o primeiro single do álbum, algo como se o New Order regravasse alguma música do disco Sticky Fingers, dos Rolling Stones. “Eu não tenho nenhum osso decente em mim/ O que você tem é o que está vendo”, sussurra Shaun, ainda magro e com franja, “eu não entendo o que você está dizendo/ Vai, diz aí/ Vem cá e me diz de novo”. O grito que abre o refrão (“Yipe-yipe-ai-ai-ye-ye-yeah”) vem emprestado do hino disco “Lady Marmalade”, da cantora Labelle, e o clima mistura funk, rock e house com o mesmo frescor das noites da Haçienda. Como Tony Wilson havia imaginado.

“God’s Cop” continua o clima de autocelebração e funk rock eletrônico, com Shaun pedindo aos céus pra ajeitar as coisas pro seu lado: “Deus, facilita/ Deus, facilita pra mim/ Deus, que chovam Es/ Deus, que chovam Es em mim”. Pedido aparentemente atendido, o vocalista começa a tirar onda de sua intimidade com o cara de cima. “Porque eu e o chefe somos quase irmãos/ Eu e o chefe ficamos chapados devagar”. A repetição do ritmo e do groove é a arma secreta que faz Oakenfold até hoje ser considerado um dos melhores DJs do mundo e ele exercita-a por todo disco, começando pela seqüência final.

“Seis vagabundos num hotel vazio/ Cada um deles com uma história pra contar/ Dê-lhe pílulas para suas cabeças não pararem”, “Donovan” – batizada em homenagem ao baladeiro folk dos anos 60, com quem excursionaram antes de Pills ser lançado – começa lenta e macia, um groove funk caribenho que serve de base para Ryder inventar a história de sua banda, “meu bando partiu e voltou pro inferno/ Então abri as janelas pra não começar a feder/ Continue fazendo o que estava, porque isso você não faz direito”. Os Mondays fazem todos notívagos se sentirem um pouco marginais, por freqüentarem este ambiente de crimes, dinheiro e sexo gratuito, como uma forma de livrar um pouco sua própria cara.

Mas esta não é sua preocupação. Em “Grandbags Funeral”, ele é forçado a viver seu momento careta no enterro de um avô e pergunta-se porque tanta comoção: “Foi só o avô que morreu/ Ele não sabia o que você fazia/ E todos seus amigos eram brancos”. “Loose Fit” deixa a percussão latina assumir o controle e o ritmo diminui – como a tolerância de Ryder aos outros. “Faça o que estiver fazendo/ Diga o que estiver dizendo/ Vá onde estiver indo/ Pense o que estiver pensando/ Gaste o que tem/ Pague o que pode/ Olhe para onde estiver indo/ Diga o que estiver pensando/ Mate quem estiver matando/ Cante se estiver cantando/ Fale se estiver falando/ Pra mim, tudo bem”. Estamos em plena pista de dança e a sensação é que isto nunca vai acabar. “Right on, right on”, incita “Dennis and Lois”, na mesma sintonia.

“O que você quer ouvir quando faz amor?”, pergunta sussurrando o vocalista, enquanto a dupla de produtores embala um funk lento e sinuoso com acento latino na semipornográfica “Bobs Yer Uncle”, escrita a pedido de Oakenfold (“faça uma sexy para as senhoritas…”). “Step On” ressuscita “He’s Gonna Step on You Again”, de John Kongo, e transformou-se no segundo single do disco. “Holiday” dá uma batida no ouvinte numa praia deserta, enquanto Ryder preocupa-se porque “cheira à droga”. “Harmony” termina o disco em grande estilo, psicodelia com noise do Velvet Underground repetida como um mantra, ela serve de base para Ryder dar a receita da felicidade: “Eu gostaria de ensinar o mundo a cantar em perfeita harmonia/ Corte em pedacinhos/ E dê-os de graça/ (…) O que precisamos é de um grande pote/ Grande o suficiente para cozinhar toda maravilhosa/ Bela, convincente, amável idéia que tivermos”. O detalhe é que “pot”, em inglês pode ser “pote” ou “maconha”.

Musicalmente, o disco obedece à mesma infalível fórmula: guitarras psicodélicas como se fossem tocadas pelo Velvet Underground (ou pelo Jesus & Mary Chain), quilos de teclados legais usados com bom gosto (Hammond, piano, Fender Rhodes, tudo com um pé no soul), um tremendo groove de baixo (geralmente recauchutado pelo estúdio), uma bateria firme e fixa (que também recebia tratamento mecânico pelos dois produtores) e eventuais backing vocals e efeitos. As técnicas de produção seguiam tendências vindas de diferentes fontes: do dub jamaicano, dos DJs nova-iorquinos e de Detroit, das novas possibilidades do sampler (recém-lançado então) e da Stax. O caldeirão de suíngue dos Happy Mondays borbulha na temperatura certa em seu terceiro disco.

O excesso de Kentucky Fried Chicken (a gíria da banda para heroína) fez com que o sucesso dos Mondays fugisse do controle. No auge, o grupo chegou até a tocar no Brasil, com Ryder anunciando à imprensa que desceria para cá com “10 mil pílulas de ecstasy”, para aflição da polícia brasileira. O quarto álbum do grupo, Yes Please, custaria 250 mil dólares para ser gravado em alguma ilha paradisíaca nas Bahamas, com o casal Tom Tom Club (Chris Franz e Tina Weymouth, a cozinha dos Talking Heads) na produção. O disco afundou em todos os sentidos e a banda cedeu à gravidade. Por volta de 1993 ela implodiu de vez. Ryder reapareceria em 1995 com um novo grupo, o Black Grape (também com Bez), uma espécie de reencarnação dos Mondays. Mas mesmo com um excelente disco de estréia, seria difícil barrar os dias de ouro de Madchester. As cores da psicodelia vinham em flyers e comerciais, como insinuava a colagem da capa. Era a cultura rave começando a nascer, em meio às drogas e o idealismo semelhante aos que alimentaram as gerações hippie e punk. Poucos poderiam prever que o futuro pertenceria ao universo traçado pelos Happy Mondays em Pills’n’Thrills and Bellyaches. Talvez apenas eles mesmos soubessem.