“O quarto de empregada é o apartheid brasileiro”

odairjose

Sobre essa questão da empregada doméstica, lembro do ótimo livro Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo César de Araújo, que, ao fazer um raio X sobre a chamada música cafona dos anos 70 no Brasil, também aproveita para traçar um panorama da divisão social brasileira a partir das “minorias” que eram público-alvo de artistas como Odair José, Waldick Soriano e Nelson Ned. Araújo mais tarde tornou-se conhecido ao escrever uma biografia de Roberto Carlos que foi censurada legalmente pelo próprio rei da música brasileira, mas seu primeiro livro é uma pequena aula de historiografia brasileira encapsulada na análise da música popular dita cafona em plena década da ditadura militar. Em um capítulo dedicado a Odair José ele enfatiza a questão da empregada doméstica que, nos anos 70, também passou por uma situação parecida com a que vivemos hoje. O capítulo chama-se Os Sons que Vêm da Cozinha – Odair José e o Apartheid Brasileiro e cito aqui parte dele:

Um rótulo que marca a imagem desta geração de artistas românticos é o de “cantor das empregadas”, termo que aparece com certa freqüência na mídia, como se os “cafonas” fossem ouvidos e admirados apenas por este segmento de público. Na verdade, o termo é restritivo porque cada um destes artistas poderia ser chamado também de cantor dos padeiros, dos pedreiros, caminhoneiros, porteiros, ferreiros, lixeiros, açougueiros, coveiros, enfim, da maioria da população brasileira, e não apenas “das empregadas”. Mas este rótulo se deve ao fato de o segmento de classe média – que os rotula – ter um contato cotidiano e mais próximo com a empregada doméstica e ouvir da sala os sons que vem da cozinha, através do rádio ou na voz da própria empregada.

De qualquer forma, neste público feminino se concentra mesmo grande parte de consumidores dos discos de artistas como Odair José, Paulo Sérgio e Agnaldo Timóteo. Aliás, ao escrever um artigo na Folha de S. Paulo sobre o alcance popular destes cantores, o jornalista Ruy Castro alertava o seu leitor com a observação de que “você pode não gostar deles, mas a sua empregada gosta. E compra os seus discos com o dinheiro que você lhe paga no dia 30. E, se você mora sozinho e passa o dia fora, adivinhe onde ela toca os discos? No Marantz de 400 watts que você comprou na Breno Rossi e deu de presente aos Mahler e Bártok da sua coleção”.

Já foi observado que as empregadas domésticas não apenas gostam de ouvir músicas; também costumam cantar – e pelo menos duas delas deixaram a cozinha e tornaram-se nomes de projeção na nossa música popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a baladista Carmen Silva, destaque desta geração de artistas “cafonas” (não confundir com Carmen Costa, cantora da era do rádio). Consagrada como a “Pérola Negra” título de um de seus discos – , Carmen Silva é neta e filha de escravos. Embora ela não cante sambas ou exaltações a divindades afrobrasileiras, na voz de Carmen Silva ouvem-se ecos do porão do primeiro navio negreiro e lamentos do terreiro da primeira senzala. Seu pai Fernando José da Silva (já octogenário quando Carmen nasceu, em 1945), tinha 22 anos de idade quando foi promulgada a Lei Áurea.

Portanto, ele cresceu no cativeiro e como todos os negros de seu tempo derramou muita lágrima clara sobre a pele escura. Um dos grandes sucessos de Carmen Silva é exatamente uma canção que gravou em homenagem à memória do pai faixa de seu LP em 1976: “Meu velho pai / preste atenção no que lhe digo / meu pobre papal querido / enxugue as lágrimas do rosto…”

Como a trajetória da maioria dos descendentes de escravos no Brasil, a de Carmen Silva não ficou muito longe da senzala. “Eu fui uma criança que não teve infância. Eu nunca soube o que é ganhar uma boneca no Natal. A gente dormia em cama de pau e colchão de palha. Mas desde pequena eu sempre acreditei que todo ser humano tem direito a uma vida digna.”

Nascida num lugarejo próximo à cidade mineira de Uberaba, aos dez anos de idade Carmen começou a trabalhar em casas de família. “Foi uma época importante, quando aprendi a cozinhar, lavar e passar, o que muito me serviu depois na cidade grande.”

O primeiro impulso para a carreira musical surgiu quando ela trabalhava na casa de Cecília Palmério, mulher do escritor e acadêmico Mário Palmério. “Dona Cecília um dia me descobriu cantando para as crianças dormir e disse que eu tinha uma voz muito bonita. Aí, ela me fez aprender La Violetera e me incentivou a procurar rádios e programas de calouros.”

Com poucas oportunidades no interior de Minas, aos 16 anos Carmen Silva se mudou para São Paulo e ocupava seu tempo entre o fogão das patroas e o microfone das rádios. No fim dos anos 60 foi contratada pela gravadora RCA, que queria lançá-la como sambista na linha de Elza Soares. “Mas eu dizia para eles, ‘só porque sou negra tenho que cantar samba?’ A gente tem que cantar aquilo que o coração sente, né? E eu gostava de música romântica. Eu até admiro o samba, mas não é minha área, nunca foi. O samba nunca mexeu comigo; eu nunca pulei carnaval, nunca saí em escola de samba. Aliás, quando chega carnaval eu sempre me retiro, vou descansar.”

Definitivamente, seu coração não balança ao som de um tamborim e o sucesso veio mesmo com a gravação de baladas como ”Eu posso não prestar mas te amo”, “Que Deus proteja nosso amor” e “Adeus solidão”, faixa que lhe rendeu o primeiro disco de ouro em função das mais de cem mil cópias vendidas, em 1970.(544) A partir daí o tanque e o fogão ficaram para trás, e a cantora se tornou uma referência para muitas ex-colegas de trabalho que lá permaneciam “alegres e sem canseira / trabalhando e cantando / no compasso da torneira ..”

Sucessora das antigas mucamas – que realizavam o trabalho doméstico durante a escravidão no Brasil – , desde o fim do século XIX a empregada doméstica aluga sua força de trabalho nas casas de família de classe média, mas a categoria foi excluída dos benefícios da legislação social e trabalhista estabelecidos no governo Vargas através da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

No inicio dos anos 70 as domésticas se mobilizaram em busca destes direitos e o disc-jóquei Luiz Aguiar, que tinha neste público grande parte de sua audiência, se solidarizou com a causa e apoiou suas reivindicações através do programa comandado por ele na Rádio Tupi de São Paulo.

Numa certa manhã de 1973, Odair José participava do programa de Luiz Aguiar quando ouviu o locutor ler um texto que apresentava as principais reivindicações das trabalhadoras domésticas e descrevia as dificuldades e preconceitos enfrentados por cada uma delas no seu cotidiano.

Odair José achou o texto interessante, principalmente a segunda parte, e perguntou ao locutor se poderia usar aquela temática nos versos de uma canção. Luiz Aguiar concordou e o resultado foi a balada “Deixa essa vergonha de lado”, canção que mostra o estigma de sub-trabalho que envolve o ofício das domésticas no Brasil e a barreira social que as impede de namorar um rapaz de classe média: “Deixa essa vergonha de lado / pois nada disso tem valor / por você ser uma simples empregada / não vai modificar o meu amor…” Mas a letra da música vai além da mera descrição do dilema amoroso dos personagens e, na segunda estrofe, ao fazer referência ao quarto de empregada, aponta para a questão do uso do espaço numa sociedade de classes: “Eu sei que o seu quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugia desse mundo / e nunca mais voltava…”

Marca essencial das habitações das famílias de classe média do país, o diminuto cômodo reservado às empregadas domésticas, assim como a segregação destas moças em espaços de circulação apartados daqueles dos patrões – as chamadas “área de serviço” e “elevador de serviço””, denunciam por si só o alto grau de autoritarismo da nossa sociedade. Como destaca o arquiteto Carlos Lemos, “O Brasil tornou-se o primeiro e único país a possuir edifícios com essa precaução reparadora de circulações”. E até hoje este apartheid está presente na maioria das construções brasileiras, e uma comparação com edifícios de outras regiões do planeta “mostra que estamos frente a uma exclusividade nacional”.

Este traço peculiar da nossa arquitetura residencial contemporânea traz, segundo o autor, a influência da antiga casa-grande, porque, no subconsciente dos patrões, a empregada doméstica “ainda é a escrava de presença desagradável” e “o seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a senzala”.

Embora sem a mesma profundidade de um tratado sociológico, a temática da canção composta por Odair José é também um reflexo de toda esta questão social, como ele próprio afirma numa entrevista à Rádio Globo: “Eu me mudei para o Rio de Janeiro por volta de 1966. E chegando aqui dormi em banco de praça, dormi debaixo de marquises, dormi na praia e depois fui morar em quartos de fundos. E ao conviver com essas dificuldades todas eu aprendi a gostar das pessoas que também dormem em quartos de fundos. Foi quando eu fiz a canção Deixa essa vergonha de lado, que conta a história da pessoa que convive com a família, mas não é da família, ou seja, a empregada doméstica, aquela secretária de casa que serve para dar banho nas crianças, serve para levar o filho à escola, serve para passar roupa, serve para fazer a comida, mas não serve para casar com os filhos da gente. E isso é uma coisa que sempre me tocou muito ”

Em 1973, as empregadas alcançaram um primeiro resultado da sua mobilização por direitos sociais: em março daquele ano o presidente Médici assinou decreto determinando que a partir dali o trabalho doméstico deveria passar a ser regido pela CLT. E, em conseqüência da repercussão da balada Deixa essa vergonha de lado – que foi lançada em meio a este processo – , Odair José tornou-se o principal porta-voz das domésticas no campo musical e empenhou-se, inclusive, na criação do “Dia Nacional da Empregada Doméstica”, data a ser comemorada a cada primeiro sábado de Outubro. Segundo relato do Jornal da Tarde, no inicio do primeiro show comemorativo, em um cinema em São Paulo, a empregada Sebastiana Comes da Silva fez um agradecimento a Odair José em nome da classe, mas ao final houve um quase incidente; as moças avançaram sobre o cantor, que teve que ficar 30 minutos trancado no banheiro de senhoras, para não ser agarrado e beijado pelas domésticas que “protestavam contra a escravidão em que vivem”.

Entrevistei o autor em 2003, ano seguinte ao lançamento do livro, e ele falou mais sobre este tema:

Não faria um livro apenas sobre música, mas sim um trabalho de história social e cultural, priorizando a análise da canção popular sem emitir juízo de valor estético. Afinal, quais os critérios de seletividade e julgamento na escolha da boa música popular? Quem determina estes critérios como universalmente válidos? Os críticos e historiadores da música popular brasileira excluíram os bregas de seus livros sob o argumento que esta produção musical é “ruim”, “vulgar”. Mas alguém já disse, e eu concordo, que este negócio de crítica musical não é objetivo. Implica um julgamento de valor tipo “eu sou melhor do que você, portanto o que eu gosto é melhor do que o que você gosta”. Ou seja: a luta de classes também se expressa na questão estética. Por isso, sempre me incomodou esta desqualificação do repertório “cafona” e a excessiva exaltação dos cantores da MPB.

No meu livro procurei fugir destes dois extremos. Ali, focalizo a produção musical popular como um fenômeno social. Não emito qualquer juízo de valor estético – nem para as canções de Waldik Soriano, nem para as de Chico Buarque – ambas tratadas como documentos da história brasileira. Não opino se a voz de Nelson Ned é boa ou ruim ou se ele é um compositor completo ou não. Eu analiso a repercussão social de sua obra, o sucesso popular e a sua ausência na historiografia. Interessa-me o fato de Nelson Ned ser ouvido em cerca de trinta países, lotar por duas vezes no mesmo dia o Carnegie Hall e de contar entre os seus milhões de admiradores com o prêmio Nobel de literatura Gabriel Garcia Márquez. Da mesma forma não discuto se a música de Odair José é de alta ou baixa qualidade, mas sim, que ela aborda questões cruciais da sociedade brasileira – racismo, homossexualismo, drogas, exclusão social… -, o que fez de seu autor um dos mais proibidos artistas da época da ditadura militar. E para um amante da MPB que acha a música de Odair José muito simplória e banal, saiba que existem amantes de jazz e de música clássica que também acham a música de Chico Buarque muito simplória e banal. Em última instância o que vale é o poder de quem possui o “discurso competente” para afirmar que tal produção artística é boa ou ruim.

(…)

Analisando a história da música brasileira no século 20, você consegue estabelecer um marco inicial para o surgimento desta “música de bom gosto”, que ignora vendas de discos para conceber discos mais “nobres”? Quando a música popular brasileira pôde se deixar ao luxo de deixar de ser popular?
Isto aconteceu após a eclosão da bossa nova, no fim dos anos 50, quando efetivamente a canção popular começou a ser objeto de análise e debate por parte da intelectualidade. É quando surgiu também um novo público consumidor de discos. Até então a nossa música popular era direcionada exclusivamente para a grande massa ouvinte dos programas de auditório. E este universo dos cantores do rádio era é visto pelas elites como o reino do improviso, do descompromisso profissional, do baixo nível artístico, da futilidade. De certa forma, não se atribuía qualquer importância a essa produção musical. Nomes hoje consagrados da música popular brasileira como Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga só obtiveram reconhecimento da crítica quando o período de maior sucesso popular de cada um deles já havia terminado. Na época, Mário de Andrade se referia a obra destes compositores como “popularesca”. Os estratos mais altos da população brasileira não se identificavam com a música popular produzida neste país. Isto começou a mudar por volta de 1958, com o aparecimento da bossa nova. A partir daí foi incorporado um novo público para o mercado de discos e as principais gravadoras organizaram seu elenco com basicamente dois grupos de artistas: os de “prestígio, para atender as classes A e B, e os “comerciais” ou “cafonas”, voltados para os segmentos C, D e E.

Por que a bossa nova? Qual é o “truque” do gênero para se estabelecer como marco tão forte? Seria o sucesso no exterior aliado à mentalidade servil do brasileiro em relação ao estrangeiro?
É fato que as elites culturais do Brasil sempre consideraram “cafona” um tipo de música mais identificado aos gêneros e ritmos de países subdesenvolvidos. De mau gosto sempre foram o bolero, a guarânia, a rumba, a conga. De outro lado, eles sempre admiraram aquela música mais identificada aos Estado Unidos, principalmente o jazz. Alguns dos próprios músicos de bossa nova como Johnny Alf, João Donato e Carlos Lyra afirmam que na fase de adolescência eles não se interessavam por música popular brasileira. O que fazia a cabeça deles eram os temas, as melodias e as harmonias das canções americanas. Ou seja: foi a partir da bossa nova, com a fusão do samba com o jazz, que uma geração de jovens brasileiros passou a se interessar e a se identificar com a música popular do nosso país. A bossa nova aproximou o samba da música norte-americana e talvez por isso foi tão bem aceita pela elites culturais.

A entrevista toda está aqui.

Paulo César de Araújo

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Como muita gente não conseguiu abrir o link com a entrevista que eu fiz com o autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não, Paulo César de Araújo, para o site da Som Livre, segue abaixo a reprodução da mesma:

A música brasileira recente parece dividir-se entre os artistas da tradição e os de vanguarda. De um lado, a força dos valores autênticos de um país que conta com uma das culturas mais ricas do mundo, lembrada na música caipira, no cancioneiro tradicional, no samba, no forró e tantas outras manifestações populares. Do outro, a transformação proposta pela modernidade, pelo pop, pela eletricidade e novas tecnologias. Riqueza rural e pluralismo urbano. O choque da cidade com o campo parece ser a metáfora perfeita para descrever o big bang da música nacional.

Mas, olhando de perto, vemos que há campo na cidade e cidade no campo. E nestas entrelinhas estão personagens e movimentos comportamentais convenientemente colocados a escanteio pelo traço da classe dominante. Apontando para a exclusão cultural de toda uma geração, o historiador Paulo César de Araújo nos conta a história de uma outra música de protesto, bem diferente das rodas vivas e opiniões consagradas pela versão oficial que conhecemos.

Em Eu Não Sou Cachorro, Não (Record), ele narra biografias de artistas que, quando lembrados pela memória nacional, vêm à tona em forma de chacota. Mas que venderam milhões de discos e emocionaram toda um público alheio às agitações dos cadernos de cultura, dos circuitos universitários e de temporadas no exterior: o povo brasileiro.

A tese de Paulo César é ousada: eram artistas como Odair José, Agnaldo Timóteo e Waldik Soriano quem verdadeiramente incomodavam a ditadura militar, furando o bloqueio da repressão para passar mensagens de resistência que atingiam multidões muito maiores do que os fãs de Chico Buarque e Caetano Veloso. No decorrer de sua argumentação (sólida e bem defendida, aliás), ele atira contra diversos bastiões da história da MPB: de seu aspecto elitista ao seu alinhamento com a boa imagem que a ditadura queria para o país, passando por mitos e preconceitos que povoam nosso imaginário até hoje.

Um dos pontos centrais de seu livro é que só durante a ditadura dos anos 70 que houve democracia no Brasil, pois todos os cidadãos, e não só os pobres, estavam sujeitos a tratamentos agressivos e violentos por parte das autoridades. O título do livro também não é um mero rótulo, pois o autor defende o maior hit de Waldik Soriano como um grito de desespero das classes mais baixas contra o tratamento dado pelas elites brasileiras, e não apenas um bolero dor-de-cotovelo.

Mais: uma reivindicação cultural do papel do povo na história do Brasil. E este seria o motivo de seu verdadeiro sucesso. Em entrevista, Paulo César conversou sobre alguns dos temas mais polêmicos de seu livro.

Eu Não Sou Cachorro, Não toca num dos pontos mais sensíveis da história da música brasileira: o conceito de “bom gosto” e as relações entre os que conceituam este “bom gosto” e os principais nomes da MPB. Este foi seu ponto de partida ou você percebeu isto à medida em que estudava os chamados artistas cafonas?
Desde o início decidi que não faria um livro apenas sobre música, mas sim um trabalho de história social e cultural, priorizando a análise da canção popular sem emitir juízo de valor estético. Afinal, quais os critérios de seletividade e julgamento na escolha da boa música popular? Quem determina estes critérios como universalmente válidos? Os críticos e historiadores da música popular brasileira excluíram os bregas de seus livros sob o argumento que esta produção musical é “ruim”, “vulgar”. Mas alguém já disse, e eu concordo, que este negócio de crítica musical não é objetivo. Implica um julgamento de valor tipo “eu sou melhor do que você, portanto o que eu gosto é melhor do que o que você gosta”. Ou seja: a luta de classes também se expressa na questão estética. Por isso, sempre me incomodou esta desqualificação do repertório “cafona” e a excessiva exaltação dos cantores da MPB.

Como você fugiu disso?
No meu livro procurei fugir destes dois extremos. Ali, focalizo a produção musical popular como um fenômeno social. Não emito qualquer juízo de valor estético – nem para as canções de Waldik Soriano, nem para as de Chico Buarque – ambas tratadas como documentos da história brasileira. Não opino se a voz de Nelson Ned é boa ou ruim ou se ele é um compositor completo ou não. Eu analiso a repercussão social de sua obra, o sucesso popular e a sua ausência na historiografia. Interessa-me o fato de Nelson Ned ser ouvido em cerca de trinta países, lotar por duas vezes no mesmo dia o Carnegie Hall e de contar entre os seus milhões de admiradores com o prêmio Nobel de literatura Gabriel Garcia Márquez. Da mesma forma não discuto se a música de Odair José é de alta ou baixa qualidade, mas sim, que ela aborda questões cruciais da sociedade brasileira – racismo, homossexualismo, drogas, exclusão social… -, o que fez de seu autor um dos mais proibidos artistas da época da ditadura militar. E para um amante da MPB que acha a música de Odair José muito simplória e banal, saiba que existem amantes de jazz e de música clássica que também acham a música de Chico Buarque muito simplória e banal. Em última instância o que vale é o poder de quem possui o “discurso competente” para afirmar que tal produção artística é boa ou ruim.

Qual seu posicionamento frente à crítica?
O crítico deve existir, é importante que ele exista. E será melhor crítico se tiver consciência das limitações de seu ofício; saber que ele julga segundo valores de seu meio social. Mas o problema maior não é dar estrelinhas para discos e shows. Isto é um trabalho de utilidade pública cultural como outro qualquer. O problema é quando não há separação entre o ofício do crítico e o do historiador. Veja-se o caso, por exemplo, do crítico e historiador José Ramos Tinhorão. Nos seus livros de história não aparecem a produção musical brega porque o crítico acha esta música ruim, desprezível. Aí é que está o problema. Ele ignora, exclui um capítulo da história da nossa música popular motivado por um suposto bom gosto musical. Neste caso a ação da crítica se torna perniciosa, nefasta, autoritária, excludente. O crítico, o pesquisador ou o historiador tem todo o direito de considerar a música de Odair José ruim. O que não correto é excluir este cantor da história, como se ele não tivesse existido. É esta ação excludente da crítica que eu considero autoritária e denuncio no meu livro.

A mídia é a principal arena do preconceito no Brasil?
A mídia apenas expressa e reforça o caráter preconceituoso, excludente e autoritário da nossa sociedade. E por ser mídia este caráter autoritário se torna mais visível. Mas preconceito e autoritarismo também existem nas universidades, nas instituições religiosas, nas forças armadas, nas câmaras legislativas, enfim, em todas as principais instituições da nossa sociedade. Não é um problema apenas da mídia.

Analisando a história da música brasileira no século 20, você consegue estabelecer um marco inicial para o surgimento desta “música de bom gosto”, que ignora vendas de discos para conceber discos mais “nobres”? Quando a música popular brasileira pôde se deixar ao luxo de deixar de ser popular?
Isto aconteceu após a eclosão da bossa nova, no fim dos anos 50, quando efetivamente a canção popular começou a ser objeto de análise e debate por parte da intelectualidade. É quando surgiu também um novo público consumidor de discos. Até então a nossa música popular era direcionada exclusivamente para a grande massa ouvinte dos programas de auditório. E este universo dos cantores do rádio era é visto pelas elites como o reino do improviso, do descompromisso profissional, do baixo nível artístico, da futilidade. De certa forma, não se atribuía qualquer importância a essa produção musical. Nomes hoje consagrados da música popular brasileira como Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga só obtiveram reconhecimento da crítica quando o período de maior sucesso popular de cada um deles já havia terminado. Na época, Mário de Andrade se referia a obra destes compositores como “popularesca”. Os estratos mais altos da população brasileira não se identificavam com a música popular produzida neste país. Isto começou a mudar por volta de 1958, com o aparecimento da bossa nova. A partir daí foi incorporado um novo público para o mercado de discos e as principais gravadoras organizaram seu elenco com basicamente dois grupos de artistas: os de “prestígio, para atender as classes A e B, e os “comerciais” ou “cafonas”, voltados para os segmentos C, D e E.

Por que a bossa nova? Qual é o “truque” do gênero para se estabelecer como marco tão forte? Seria o sucesso no exterior aliado à mentalidade servil do brasileiro em relação ao estrangeiro?
É fato que as elites culturais do Brasil sempre consideraram “cafona” um tipo de música mais identificado aos gêneros e ritmos de países subdesenvolvidos. De mau gosto sempre foram o bolero, a guarânia, a rumba, a conga. De outro lado, eles sempre admiraram aquela música mais identificada aos Estado Unidos, principalmente o jazz. Alguns dos próprios músicos de bossa nova como Johnny Alf, João Donato e Carlos Lyra afirmam que na fase de adolescência eles não se interessavam por música popular brasileira. O que fazia a cabeça deles eram os temas, as melodias e as harmonias das canções americanas. Ou seja: foi a partir da bossa nova, com a fusão do samba com o jazz, que uma geração de jovens brasileiros passou a se interessar e a se identificar com a música popular do nosso país. A bossa nova aproximou o samba da música norte-americana e talvez por isso foi tão bem aceita pela elites culturais.

Você acha que é possível haver um reconhecimento crítico, póstumo ou tardio, em relação aos artistas citados no seu livro? De certa forma, algo desta natureza já está acontecendo com nomes – como Roberto e Erasmo Carlos – que desde os anos 80 são associados ao mau gosto…
De fato, o caso Roberto Carlos é um exemplo recente deste fenômeno. E para isto muito contribuiu a revelação de que a sua música “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” fora feita em homenagem a Caetano Veloso, quando este estava no exílio em Londres. Isto mostra que são vários os aspectos que determinam a valorização de um determinado trabalho artístico, e estes aspectos muitas vezes são exteriores a obra em si. Este fenômeno também pode acontecer também com artistas desta geração de cafonas. A própria existência do livro Eu Não Sou Cachorro, Não é um reflexo disto, e também pode contribuir para esta mudança. Depois do livro, algumas pessoas podem olhar com outros olhos nomes como Benito di Paula, Luiz Ayrão e Odair José. A vida é dinâmica, a sociedade é dinâmica e isto se reflete na avaliação artística.

Fale um pouco sobre o seu próximo livro, sobre Roberto Carlos…
Ainda não tenho quase nada decidido sobre este livro. A única certeza é que não será uma biografia nem um mero relato jornalístico. Pretendo fazer uma análise histórica da produção musical de Roberto e Erasmo Carlos. Estarei iniciando a pesquisa ainda neste semestre. Inclusive este papel social de Roberto Carlos será estudado por mim agora, ainda não tenho uma resposta afirmativa. A data de lançamento também não tenho. Eu Não Sou Cachorro, Não me consumiu sete anos entre pesquisa e redação. Desta vez espero gastar menos tempo, até porque tenho mais prática no ofício e alguns erros poderão ser evitados. A minha previsão é de que o livro fique pronto no máximo até 2005.

Você consegue destacar o maior artista brasileiro deste gênero, a chamada “música cafona nos anos 70”?
Sem dúvida, Odair José, não por acaso o personagem mais citado no meu livro. Ele foi um cantor corajoso, provocador e contestador na época do regime militar. Ainda mais porque, ao contrário de artistas como Caetano Veloso e Milton Nascimento, que atingiam um segmento de classe média, universitário, progressista, Odair falava para os baixos estratos da população, um público majoritariamente católico, conservador, apegado aos tabus, aos valores sociais vigentes. As composições de Odair José focalizavam diversos temas do cotidiano e convidavam seu ouvinte à reflexão e ao questionamento. Suas canções abordam, por exemplo, prostituição (“Vou Tirar Você Desse Lugar”); homossexualismo (“Forma de Sentir”); drogas (“Viagem”); anticoncepcionais (Pare de Tomar a Pílula); exclusão social (“Deixa essa Vergonha de Lado”); religião (“Cristo, quem é Você?”); alienação (“Novelas”); adultério (“Pense ao Menos em Nossos Filhos”). E como se não bastasse, ele ainda idealizou uma ópera-rock de protesto religioso, o que provocou a fúria da Igreja e levou alguns padres até a ameaçá-lo de excomunhão. Proibido pela Igreja e pelo regime dos generais, Odair José ainda enfrentou a ruidosa vaia do público do Anhembi no show com Caetano Veloso no Phono 73. Aliás, este espírito ousado, provocador e inquieto de Odair foi sintetizado por ele numa canção composta em 1972: “Eu Queria Ser John Lennon”.