Lost por Vladimir Cunha

, por Alexandre Matias

Lost é um filho direto da Grande Conspiração Americana. O maior erro, no entanto, é superestimar a sua contribuição para a cultura de massas, tentando achar na história e em seus desdobramentos algo mais inteligente do que uma luta mitológica entre o Bem e o Mal. Situada em um ponto imaginário entre o desbunde paranormal de Twin Peaks e o suspense de tablóide de Arquivo-X, a série tentou por vários momentos levantar questões mais interessantes do que o seu enredo inicial poderia prever, mas se perdeu em seus próprios truques e em sua narrativa circular e auto-indulgente. E ao final, ficamos todos com a sensação que, entre as pretensões iniciais dos seus criadores e o resultado final, alguma coisa se perdeu pelo caminho.

Uma boa conspiração nasce de duas maneiras: ou através da paranóia ou do exercício mental de cogitar diversas possibilidades. E por isso mesmo, quase nunca precisa de fundamento científico ou histórico para ser levada adiante. Ela precisa, sim, guardar relações profundas com a realidade, com os aspectos mais aparentes do nosso processo cognitivo, justamente aqueles que irão lhe dar subsídios para ser apreendida por nossa percepção como algo possível de ter acontecido. Quanto mais forte essa relação, mais enraizada no inconsciente coletivo e na cultura de massas uma conspiração irá se tornar.

Por exemplo: ninguém acreditaria na notícia de que um disco voador pousou em frente à Casa Branca. É fantástico demais, irreal demais, uma iconografia barata ligada aos filmes trash e às histórias em quadrinhos, entendida como clichê de ficção científica através de quase um século de cultura pop. Por outro lado, um disco voador capturado nos desertos do Novo México e mantido em segredo pelo Exército norte-americano, junto com seus tripulantes ETs, nos parece mais real, justamente por lidar tanto com aspectos que compreendemos como parte da nossa realidade -bases secretas, manobras militares clandestinas e ufologia barata – quanto por nos levar a todo o tipo de indagação supostamente inteligente (“hmm, se os militares não têm nada a esconder, porque não liberam a Área 51 para visitação pública, hein?”). Foi a partir da sua capacidade de suscitar mais dúvidas do que de responder perguntas, ao usar uma realidade possível para criar todo o tipo de possibilidades teóricas, que se desenvolveram as grandes conspirações da história recente da Humanidade.

No cinema, David Cronenberg talvez tenha sido o diretor que mais soube trabalhar essa questão. Em Scanners, The Brood e Videodrome, o horror acontece de maneira banal: nos centros comunitários, no parquinho da escola, na loja da esquina. Ele está tão entranhado nos aspectos mais corriqueiros do cotidiano que imaginar a sua existência torna-se quase natural. Assim como a elite sexualmente corrupta de De Olhos Bem Fechados, antes de serem personagens da ficção fantástica, Brian O’Blivion e Barry Convex, os dois arquétipos centrais de Videodrome, são também figuras comuns, baseados tanto no clichê do intelectual intransigente e aburguesado quanto do zé ninguém invisível, que com seu terno de loja de departamentos se integra passivamente à paisagem da América Corporativa. São essas pessoas comuns, sem poderes sobrenaturais ou visual extravagante, que nos suscitam o impulso paranóico de acreditar que, se o horror existe, ele está entre nós. Não na figura de um monstro do espaço sideral ou de um demônio cenobita, e sim na assepsia de um centro de pesquisas clandestino, no underground dos snuff movies, nos complexos industriais fortemente vigiados, nos círculos de pornografia ilegal, nas redes secretas de comunicação e vigilância, na indústria aeroespacial e nas salas de reunião das sociedades secretas. Um imenso lugar-nenhum criado a partir de fragmentos distintos da paisagem urbana ocidental pós-Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, Lost falha quando não estabelece esse tipo de conexão com o cotidiano e reduz a suas seis temporadas a uma luta do Bem contra o Mal, o confronto entre Luz e Trevas recriado de maneira pós-moderna a partir de memes e clichês pilhados da herança deixada por cinco mil anos de história das religiões. O estranhamento cotidiano e o terror possível até existem, nos filmes de 16 milímetros usados nos treinamentos da Iniciativa Dharma, nos centros de operações low-tech da Ilha, na corporação de Charles Widmore, nos experimentos paracientíficos de Daniel Faraday nos porões da universidade onde estuda e nos números 4, 8, 15, 16, 23 e 42. Diferente de Arquivo-X -que ganhou corações e mentes nos anos 90 justamente por transformar em histórias de terror o imaginário ufologista e a nascente comunidade da conspiração na internet com as manchetes do jornal sensacionalista National Enquirer, filho direto da indústria do entretenimento e da paranóia da Guerra Fria – Lost optou pelo isolamento, confinando no ambiente fantástico da Ilha todas as suas possibilidades de narração e desenvolvimento dos personagens, uma dimensão paralela aos moldes de O Senhor dos Anéis que não conseguimos assimilar como algo possível. As situações cotidianas existem, mas sem a força necessária para beslicar o nervo certo e provocar a pergunta: “e se isso estiver acontecendo de verdade?”.

Isso fica claro quando a série não consegue criar o estranhamento necessário para ir em frente, limitando-se a prender o espectador com o “continua na próxima semana” das histórias em quadrinhos ou as reviravoltas com jeito de pegadinha dos gibis da Cripta. A curiosidade se reduz apenas a saber como a história vai terminar e não em intuir como os seus aspectos mais aparentes, e possíveis desdobramentos, se relacionam a realidade, como é o caso de Kolchack – The Night Stalker, Millenium e Arquivo-X, todos produtos diretos da cultura da conspiração que usaram a paranóia de maneira muito mais inteligente e instigante. Lost chega ao fim e todas as possibilidades narrativas e intuitivas propostas inicialmente se diluíram na trama em torno da Ilha e seus habitantes. Ao contrário do que todo mundo imaginava, a série não teve fôlego suficiente para criar uma mitologia interessante e consistente. Valeu a tentativa. Infelizmente não foi dessa vez.

* Essa cara de mau do Vlad é tipo.

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