Frank Zappa e a música sem disco

, por Alexandre Matias

Não custa voltar no Zappa, que já pensava nessas questões no começo dos anos 80. O texto abaixo é um trecho de uma matéria que escrevi pra capa da Bizz, quando ela ainda existia em 2006, sobre música digital. A íntegra da matéria tá aqui.

* Texto publicado originalmente no dia 20 de agosto de 2009

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“CONSUMIDORES DE MÚSICA GOSTAM DE CONSUMIR MÚSICA, NÃO DISCOS DE VINIL EMBALADOS CAPAS EM PAPELÃO”. O negrito e o caps lock são tirados direto do original, que não é de nenhum consultor trend-setter descolado fazedor de cabeça de executivos da indústria da tecnologia e do entretenimento, e sim de ninguém menos que Frank Zappa. Logo que a música se despregou de seu suporte tradicional – na época, o disco de vinil – transformando-se em pedacinhos de zeros e uns transferíveis por redes de computadores, o principal iconoclasta musical do século vinte fez uma pergunta que até muita gente boa não fez: por que, se a música podia ser digitalizada – ou seja, livre de um suporte físico palpável (como o disco de vinil, a fita cassete, o cilindro do fonógrafo…) – por que raios a indústria fonográfica lançou um novo suporte?

Aí entramos no terreno da especulação, mas alguns fatos falam por si. O compact disc, apresentado ao público em 1982, é quase tão barato para fabricar quanto um disco de vinil, mas é mais prático para ser estocado e transportado – mais leve, menor, menos suscetível a atritos. Para tocá-lo, no entanto, os consumidores deveriam ter que comprar um novo equipamento, o CD-player – mais caro que qualquer outro player médio da época. E devido à sua suposta melhoria na qualidade do áudio (subjetiva, o tempo mostrou – vide os audiófilos de hoje em dia que ainda veneram o velho vinil), o disco passou a custar, em média, ao menos o dobro do antigo LP.

Alie a isso uma enorme campanha de marketing de todas as grandes empresas de tecnologia, que pegavam carona na novidade “CD” para lançar aparelhos que, além de alardear o compact disc como o futuro do áudio, rebaixava o vinil como suporte datado, mídia morta. Aos poucos, vitrolas e coleções inteiras de discos eram vendidas ou jogadas fora para abrir espaço para os pequenos discos prateados embalados em plástico. Sem querer – porque, por mais maquiavélicas que fossem as multinacionais na época, elas não teriam capacidade para pensar nisso (basta ver o zelo administrativo que fez com que o negócio praticamente falisse durante os anos 90) -, as pessoas estavam comprando um mesmo disco que já tinham pela segunda vez.

Entra Frank Zappa, crítico insistente de tudo que pode ser criticado – inclusive dele mesmo. De ascendência ítalo-americana, o compositor começou sua carreira com um pequeno estúdio em Cucamonga, gravando grupos de doo-wop, surf music e até se envolvendo com filmes pornô, até que entrou no imaginário mundial com discos que ridicularizavam o movimento hippie quando este era mais popular do que o YouTube em 2006. Desde os anos 60, mirou sua metralhadora musical em qualquer coisa que pudesse se mover, mas tinha como alvos favoritos o establishment norte-americano (inteiro, do governo às divas da indústria do entretenimento) e a estupidez humana. Engajado em causas espinhosas e delicadas, ele se pronunciou prontamente ao advento da música digital e em 1983, no mesmo ano em que o CD chegava ao mercado americano, escreveu sua “Proposta para a Substituição da Mercadoria Disco”, de onde saiu a citação em negrito do início. E finalizava a primeira parte de seu texto com mais negrito e letras maiúsculas: “As pessoas hoje em dia gostam mais de música do que nunca e eles gostam de levá-la onde quer que elas vão. ELAS PODEM OUVIR A DIFERENÇA ENTRE ÁUDIO DE BOA QUALIDADE E ÁUDIO DE MÁ QUALIDADE… ELAS SE IMPORTAM COM ESSA DIFERENÇA E ESTÃO DISPOSTAS A PAGAR PARA TER ‘ÁUDIO PORTÁTIL’ DE ALTA QUALIDADE PARA USAR COMO ‘PAPEL DE PAREDE PARA SEU ESTILO DE VIDA’”. Isso, lembrando, DEZ anos antes de a web atingir o grande público, DEZESSEIS anos antes do Napster e DEZOITO anos antes do iPod.

Zappa tinha até a resposta para problemas que ainda nem haviam começado a existir e aí que seu texto fica mais incisivo. Na segunda parte (chamada apropriadamente de “Respostas para Perguntas Intrigantes”), ele nos apresenta ao “Q.C.I.”. “Propomos adquirir o direito de duplicar digitalmente e estocar O MELHOR de cada um dos difíceis de transportar Q.C.I. (Quality Catalog Itens, Itens de Catálogo de Qualidade) de todas as gravadoras, reuni-los em um lugar de processamento central e torná-los disponíveis via fone ou cabo de TV paga, diretamente acessível através dos dispositivos caseiros de áudio do consumidor, com a opção de transferência de um ambiente digital para outro através da F-1 (o gravador de áudio digital da Sony, disponível para o público), Beta Hi-Fi ou cassete análogo simples (que precisa apenas da instalação de um conversor no próprio fone, cujo chip principal custa US$ 12)”.

“Todas as contas de pagamentos de royalties, cobranças do consumidor, etc., seriam automáticas e estariam no próprio programa básico do sistema”, Zappa continua. “O consumidor tem a opção de se inscrever em uma ou mais categorias de interesse, cobradas mensalmente, sem se preocupar com a quantidade de música que ele ou ela decidam gravar. Prover material em tal quantidade a um custo reduzido realmente diminuiria o desejo de duplicação e armazenamento, já que este estaria disponível a qualquer hora do dia ou da noite”.

Zappa simplesmente bolou um sistema de pagamentos, acesso e distribuição de música que parece atender às necessidades de todos (com a exceção daqueles que cita no início do texto – “Muitas pessoas estão empregadas no campo de promoção de discos. Estes salários são, na maior parte, desperdício de dinheiro”). Sem a internet. Sem o MP3. Sem P2P.

E conclui: “Queremos uma quantidade GRANDE de dinheiro e os serviços de uma equipe de mega-hackers para escrever o software deste sistema. A maior parte dos equipamentos, mesmo quando você ler isto, já estão disponíveis como itens existentes no mercado, apenas esperando para serem plugados uns nos outros de forma que eles possam por fim na “INDÚSTRIA DO DISCO” como a conhecemos.

Isso, repito, em 1983.

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