Estudando a cena independente

, por Alexandre Matias

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Conheci Thiago Galletta na segunda edição do Fora da Casinha deste ano e ele havia acabado de lançar seu livro Cena Musical Paulistana dos Anos 2010, trabalho acadêmico sobre o impacto da internet na cena independente da cidade. Agora ele lança o livro de fato com uma festa na Fatiado Discos, com discotecagem do autor, João Lion e Nicolas Bahia, todos tocando música brasieira (mais informações aqui). Aproveitei o gancho da festa para conversar com o Thiago sobre o assunto de seu livro.

Como surgiu seu interesse pela cena independente brasileira?
Antes de tudo, acho que esse interesse tem a ver com meu contato com essa “cena independente”, como ouvinte, fã, desde uns 20 anos atrás. Um pouco depois, também meu interesse como radialista atuando por mais de uma década em rádios universitárias e comunitárias, o que se intensificou a partir de 2005 quando comecei a atuar como DJ profissional. Talvez a geração de bandas do final dos anos 1990 – época que emergiram festivais independentes importantes como o Juntatribo, Goiânia Noise, Abril Pro Rock entre outros – que incluiu, por exemplo, Planet Hemp e Chico Science e Nação Zumbi – grupos com trajetória inicial importante no meio independente e que em seguida assinaram com majors – tenha sido o último respiro de inovação e vitalidade criativa no universo das grandes gravadoras.
Falando como apreciador de música e DJ, a maior parte da música brasileira que me interessou nos últimos 15 anos tem sido feita fora da estrutura grandes multinacionais do disco. E enquanto pesquisador e sociólogo, a “cena independente” dos últimos anos me interessou muito nesse livro, também como um objeto de investigação excelente pra pensar o impacto das tecnologias digitais sobre a cultura brasileira contemporânea. Além disso, nas minhas pesquisas e leituras sobre a música brasileira, sentia um hiato, uma ausência significativa de obras que se aprofundassem e atribuíssem a devida importância a essa cena que se fortalece nos últimos 15 anos no Brasil, e que ao meu ver – entendo que já é possível dizer – tem uma importância e um papel muito significativos na história da música brasileira gravada desse mais de um século.
Foi e é essa “cena independente” a parcela da produção musical nacional que melhor tem expressado criativa e esteticamente esse novo momento, de acesso digital potencialmente ilimitado à produção musical gravada de todas as épocas e lugares, que se abre com a internet. Esse é um, entre vários outros divisores de água que essa cena expressa, tanto em seus potenciais como em suas contradições e desafios.

Por que resolveu focar na cena de SP em seu livro? O que ela tem de diferente das outras cenas?
Com a diminuição na última década e meia dos espaços disponíveis nas grandes gravadoras para a música de inovação e experimentação – aquela de algum modo mais preocupada com a forma e o conteúdo e menos exclusivamente com o sucesso comercial mais imediato – declinou a importância do Rio de Janeiro, onde se concentravam as majors, pra esse tipo de produção. As novas condições de produção e distribuição musical independente que acompanharam a expansão da internet, e que vem sendo exploradas no Brasil inteiro, encontraram na cidade de São Paulo a possibilidade de algo mais além. No caso, a formação, a partir de um conjunto de condições particulares da cidade – em que se destacam sua condição econômica, equipamentos culturais, nichos específicos de fruição cultura e arte, uma rede de canais de mídias e cobertura especializada em música, entre outros fatores que eu exploro no livro – de um mercado mínimo ou razoavalemente consistente para os artistas independentes com trabalhos autorais.
São Paulo se tornou talvez o principal pólo produtivo – um importante centro criativo – na cena independente brasileira, principalmente na medida em que começou a atrair cada vez mais, ao longo dos anos, músicos migrantes do Brasil inteiro em busca de melhores condições e oportunidades pra seus trabalhos. Uma das principais diferenças dessa cena para a de outras capitais, por exemplo, se refere à possibilidade que se concretizou aí de um número importante de artistas independentes “viverem de música” com trabalhos autorais, o que se refletiu progressivamente num caldo criativo bastante expressivo da cultura musical brasileira de uma forma mais ampla, na última década. Ainda que se mantenham certas dificuldades, precariedades e a batalha mês-a-mês de vários dos artistas com nível razoável de reconhecimento e prestígio nessa cena.

Por que não abordar toda a cena independente brasileira?
Quando comecei a pesquisa em 2010 a intenção era investigar alguns temas em torno produção independente brasileira em geral. Nos anos que se seguiram, São Paulo se tornou um “olho do furação’ cada vez mais expressivo de novos potenciais que a cena brasileira passava a expressar. Conforme cada vez mais artistas e bandas com trajetórias importantes em outros estados passaram a vir pra cidade, e foi se conformando mais claramente essa “cena paulistana” que passamos a conhecer nos primeiros anos da década de 2010, ficou claro pra mim a importância de investigar, registrar e analisar aquele momento de virada de condições que se expressava em São Paulo. Isso permitiu aprofundar questões importantes para além do caso paulistano, de uma maneira que talvez não fosse possível nos mesmos 4 anos de pesquisa a que me dediquei para a escrita desse livro, se quisesse abarcar com o devido detalhamento uma cena nacional são complexa e rica como a brasileira . Por outro lado, considerando esses anos em especial, de algum modo, falar da “cena paulistana” foi pra mim uma boa forma que encontrei de falar sobre o momento “cena independente brasileira” mais ampla. Inclusive, na verdade, o livro aborda ao longo de boa parte de suas páginas o pano de fundo nacional da “produção independente” – o tempo todo situo São Paulo diante do contexto brasileiro independente mais geral.

Qual a principal característica desta cena?
Como disse antes, pensando circuitos e cadeia produtiva, a principal característica dessa cena talvez seja a de expressar um conjunto importante de novos potenciais da produção e circulação musical independente pós-internet e redes sociais online, em condições mais favoráveis do que outras cenas no que se refere à sustentabilidade de trabalhos e à formação de um mercado independente.
Muito relacionado a isso também, a concentração de músicos do Brasil inteiro na cidade e o que isso traz pra criação musical da cena, na vivência urbana específica de São Paulo, é também um elemento central. Poderia falar outros, como o alto nível de interconexão e produção colaborativa entre seus artistas e bandas, o suporte da rede SESC –SP, a criação de “Bahias fantásticas” e “Áfricas fantásticas” em solo paulistano (a música do mundo e do Brasil sendo fundida com o caldo criativo da cultura brasileira reunido na cidade), uma certa “geografia da cena”, com uma rede de casas noturnas e equipamentos culturais importantes reunidos em um certo perímetro territorial da cidade, possibilitando encontro e associações na região de Pinheiros, Vila Madalena, Pompéia, Alto da Lapa, etc…

Qual a principal dificuldade em realizar seu livro?
Talvez a principal dificuldade tenha sido a complexidade, contemporaneidade, constante e acelerada mudança no campo, impactado por mudanças tecnológicas, econômicas e políticas de grande dimensão em muito pouco tempo. São desafios que acredito vão se colocar pra qualquer estudo e obra mais aprofundada que enfoque temas como este. O esforço de mapear, esquadrinhar, filtrar, distinguir importâncias, em um campo relativamente ainda pouco explorado pela bibliografia até então disponível – campo este debatido e tateado em tempo real por artistas, jornalistas e outros profissionais da música – talvez tenha sido outro ponto importante, ao mesmo tempo em que fonte de grande motivação e tesão de levar adiante o projeto.

Há uma lacuna enorme de produção acadêmica no que diz respeito à cultura independente. Você encontrou algum trabalho ou livro que detalha mais este meio em suas pesquisas?
De fato, há mais bibliografia sobre a realidade da produção musical e das cenas independentes fora do Brasil – recomendo, por exemplo, os trabalhos do Andrew Dubber. Por aqui há estudos importantes sobre momentos anteriores do independente, como os sobre a Vanguarda Paulista dos anos 1980 e, mais recentemente, com algumas pesquisas sobre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 – como, por exemplo, as do professor Eduardo Vicente da USP. Talvez a publicação deste livro, Cena Musical Paulistana dos Anos 2010, possa servir de estímulo, incentivo e subsídio para um aprofundamento urgente, necessário e cada vez maior sobre estas cenas, que tem importância vital para a música brasileira na atualidade – e tendo em vista o cenário político recente, mais do que nunca.

Como você define “cena independente” num cenário em que os grandes patrocinadores estão cada vez mais difusos e que não bancam apenas música?
Realmente, a expressão “independente” associado à música ou à produção musical – termo que estamos usando nessa entrevista, que está presente no meu livro e permanece hoje nas falas e textos de artistas, jornalistas, público – é um termo bastante controverso, inclusive historicamente, como mostro no primeiro capítulo do livro. Até que ponto ele se refere mais exclusivamente a um modo de operação técnico e econômico de produção fonográfica independente à estrutura das grandes gravadoras e em que ocasiões ou circunstâncias passa a incluir em si motivações estéticas ou políticas? A apresentadora Roberta Martinelli comentou, em certa ocasião, sobre a forma como a independência dos artistas dessa cena paulistana também acaba supondo “uma dependência enorme de um coletivo de artistas que ‘compra’ tua ideia”. Por outro lado também, a distinção clara, estanque, as fronteiras entre independente e mainstream vem sendo borradas na construção de relações mais horizontais e intrincadas entre esses dois universos, algo que acontece no caso destas empresas e grandes patrocinadores que citou, como a Natura Musical.

Qual o artista-símbolo da cena independente paulistana na sua visão?
O “artista-ícone”, que sempre menciono quando falo do livro pra quem se encontra em outras “bolhas de realidade” e conhece pouco da cena musical fora da grande mídia, é o Criolo – sendo, mesmo ele, por incrível que nos pareça, muitas vezes ainda desconhecido de muita gente. Mas nessa proposta de “artista-símbolo”, citaria talvez o Kiko Dinucci, pelas conexões colaborativas da produção dele, ligando várias pontas diferentes da cena, pelo discurso e atitude política, criativa, estética. Claro que essa “escolha” tem muito de aleatório ou pessoal. A cena é extremamente múltipla, diversa, composta de sub-cenas, que ainda que bastante conectadas e articuladas em suas pontas, teriam cada uma delas seus próprios “artistas-símbolo”.

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