Cronenberg, corpo e tecnologia

, por Alexandre Matias

Eis a íntegra da entrevista que fiz com o Tadeu Capistrano, curador da mostra Carne Viva, sobre o mestre David Cronenberg – que saiu na última edição do Divirta-se.

Por que Cronenberg?
Por ser um cineasta com uma obra complexa e muito peculiar, que põe o cinema nas fronteiras entre arte e do espetáculo. Transitando nesses limites, Croneberg cativou um público cult e ao mesmo tempo uma legião de fãs de horror e ficção científica. Seus filmes apresentam reflexões sagazes e cada vez mais atuais sobre os caminhos da imagem cinematográfica, da percepção e do corpo com suas dores e prazeres na relação com a tecnociência.
Apesar do sucesso de grande parte de seus filmes, Cronenberg sempre optou por caminhos marginais à grande indústria cinematográfica, o que confere o estatuto autoral de sua obra visceral. Ironicamente esta característica a tornou uma presa fácil para a mesma indústria para a qual lutara. Me parece que toda aquela escatologia que singularizou os filmes de Cronenberg foi perdendo com esta captalização de sua potência anárquica. Além disso, as relações entre corpo e tecnologia já estão bem digeridas pelo nosso cotidiano, perdendo cada vez mais sua dimensão fantástica. Os útimos filmes de Cronenberg (Spider, Marcas da Violência e Senhores do Crime) aparentemente destoam de sua produção anterior, marcada obssessivamente pelo tema dos poderes da tecnociência sobre o corpo.
Pelo que temos visto, Cronenberg tem explorado outros dramas do homem, assombrado por novos incômodos, memórias involuntárias e, apesar de toda parafafernália high-tech, incapaz de ser livrar da sua inerente animalidade: as próprias solicitações do corpo e suas irresistíveis pulsões. Cronenberg tem apresentado personagens que contradizem todo este projeto falido de civilização na qual estamos embrenhados. Os pavores e sofrimentos de hoje são em grande parte efeitos de processos de racionalização biotécnica que Cronenberg evidenciou nos anos 70 e 80. Nos últimos filmes, ele tem propiciado mergulhos em corpos marginalizados, presos a traumas e tormentos que podem disparar reações que beiram à bestialidade e questionam o que significa hoje humanidade.

Qual é o principal trunfo do evento? Algum desses filmes nunca foi exibido no cinema no Brasil? Há alguma raridade? Eles serão exibidos em película, DVD ou qual formato?
A maioria dos filmes será exibida em película, como os primeiros e raros filmes de Cronenberg, Stereo e Crimes do Futuro. Muitos dos filmes da mostra não foram exibidos no Brasil, tal como o curioso Fast Company, um filme de Cronenberg de meados dos anos 70 que envolve jovens, sexo e sabotagens nos bastidores de uma corrida de carros.
Gostaria que você fizesse uma lista de seus cinco filmes favoritos do diretor (com ou seu ordem, fica a seu critério), resumindo em uma ou duas frases o porquê da importância daquelas escolhas.
Apesar de temas comuns, os filmes são tão diferentes, que é difícil fazer uma seleção. Porém, o filme que mais gosto de Cronenberg é Gêmeos, por várias qualidades que vão desde a fotografia, a construçao dos personagens, a trilha sonora, o belo e curioso design dos instrumentos cirurgicos e, sobretudo, o modo como o trágico é trabalhado.
Acho a dobradinha Videodrome e eXistenZ uma aula sobre o tão debatido “futuro do cinema” diante de diversas incorporações tecnológias, que vão desde o vídeo à realidade virtual’ e às promessas do neurocinema; ou a produção inteligente de imagens a partir de edições neuroquímicas. Essa transcendência, ou o prório desaparecimento do cinema, é que está em jogo nesses dois filmes. Também gosto muito de Stereo, pelo caráter experimental, e de Crash, pelo ritmo desacelerado na qual personagens movem-se acelaradamente em busca de prazeres, cujo limite é a destruição.
Além disso, o filme baseado no romance homônimo de Ballard diz muito sobre os modos de ser na contemporaneidade, com um produção permanente de indivíduos apáticos, solitários e incapazes de satisfação em um mundo onde a crença em uma possível interioridade psicológica entrou em agonia.

E sobre o novo filme do diretor, A Dangerous Method, você irá trazer algo ou pensou em exibir um trecho por aqui? O que você sabe sobre o novo filme?
O filme acabou de estreiar no Festival de Veneza com aclamação de público, tornando-se um forte concorrente ao Leão de ouro. E ainda não há trechos disponíveis. O enredo é sobre as relações entre Freud e Jung na aurora da psicanálise, justamente um saber que atualmente tem entrado em crise com todos esses processo de medicalização e a crença de que angústias são fruto de disfunções neuroquímicas e não de questões existenciais.
Em uma entrevista, Cronenberg criticou os ideais de civilização que marcaram a Europa do início do século 20. Uma época em que Freud estava negando tudo isso e afirmando que há coisas que a racionalidade não pode resolver dentro da civilização. Para Cronenberg, Freud deu um grande salto na compreensão do que é realmente a natureza humana. Por isso, intuo que o filme seja bem estratégico para se opor a um novo determinismo biológico que localiza difrentes tipos de mal-estar em disfunções hormonais ou cerebrais. Um reducionismo que obviamente anestesia dores e amamenta grande parte do comércio de tarjas pretas e crenças bioidentitárias como TOC (transtorno obsessivo compulsivo), TAG (transtorno de ansiedade generalizada), TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e outras classificações normativas para sujeitos que não aguentam os modos de vida on-demand solicitados pelo presente.

Você concorda com uma vertente da crítica que diz que, como Scorsese, Almodóvar e Woody Allen, Cronenberg virou um diretor de renome à medida em que foi deixando de lado os valores mais autorais de sua obra, se tornando uma espécie de versão light de si mesmo conforme tornava mais popular?
Bom, se a crítica falou isso, acho que ela está cega. Sempre há filmes prediletos dos diretores que gostamos e muitas vezes esperamos que eles continuem realizando obras como as nossas eleitas. Porém, e a liberdade de escolha do diretor? Não vejo filmes a partir dessa crítica, cada vez mais rala e pífia, baseada em juízos de valores como bom ou mau. Para mim os diretores que você cita continuam realizando filmes potentes de acordo com suas singularidades estéticas.

Há algum outro evento relacionado a algum diretor ou autor em seus planos depois de Carne Viva?
Em novembro, vamos realizar um mostra dos filmes de Michael Haneke no espaço da Caixa Cultural do Rio de Janeiro. Se tudo sair como palnejamos para a mostra do Cronenberg, depois traremos a mostra dos filmes de Haneke para São Paulo.

Mesmo na ótima fase que está, São Paulo ainda é carente de eventos que envolvem crítica de arte. Isso é uma característica da cidade ou da época em que vivemos?
Cada vez mais é difícil encontrar espaços para exercer o que realmente significa crítica, por isso procuro organizar colóquios para acompanhaream as mostras que tenho organizado e discutir temas, geralmente estéticos e políticos, dos filmes em questão. Creio que a falta de crítica é um problema maior, de um mundo povoado de gerações cada vez mais apáticas, individualistas, destituídas de curiosidade e sem crenças revolucionárias. Infelizmente, São Paulo, com toda forte tradição crítica que possui, não está sozinha neste barco em franco naufrágio.

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