And Then Nothing Turned Itself Inside-Out – Yo La Tengo

, por Alexandre Matias

Mais um…

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Amor comum
O Yo La Tengo canta a paixão sem adjetivos em seu belo novo álbum, ‘And Then Nothing Turned Itself Inside-Out’

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É difícil estar apaixonado quando não se tem nada a oferecer. Ou pelo menos aquilo que os outros querem. Veja a TV, as revistas, os outdoors: eles vendem uma beleza magra e saudável, um humor inteligente e direto, uma cultura vasta e plural, uma eloqüência carismática espontânea. Você sabe que a vida real não é assim, todo mundo sabe, mas ninguém se importa. Todos compram o que se vende nestas malditas imagens que o capitalismo usou para funcionar como vitrine do senso comum, manipulando-o. Tenha uma destas características a menos e mais difícil será ser aceito no convívio social.

Por isso apaixonar-se é um problema. Com beleza, humor, cultura e papo, tudo fica mais fácil ou menos difícil. Mas quando não se tem nada a oferecer, a timidez torna-se uma parede que esconde o lado realmente bom das pessoas, desprezado pelo marketing. Sua cara-metade pode ser uma pessoa sem qualidades sociais, mero espectador dos “artistas” que a vida – em todas as esferas – destaca. Uma pessoa que nunca vai chamar sua atenção e que se fizer algo neste sentido vai com a certeza que estragará tudo quando abrir a boca ou pousar o olhar. O cortejo social que conhecemos por paquera torna-se um momento de suplício, um fim inatingível.

Ira Kaplan e Georgia Hubley eram assim. São pessoas comuns até demais, não se destacam em qualquer multidão, seja numa sala de aula ou num ônibus lotado. Figurantes no mundo das estrelas, os dois se encontraram sem querer e depois de conversar um pouco sobre música, estavam apaixonados. Músicos na intimidade, começaram a tocar juntos ao mesmo tempo que se descobriam, ele guitarra, ela bateria, revezando-se nos vocais como todo casal apaixonado. Os dois em Hoboken, o mesmo subúrbio de Nova York que viu nascer Frank Sinatra e os Feelies, ele ainda trabalhava mixando bandas num estúdio de fundo de quintal, enquanto ela fazia curtas de animação com a irmã. À procura de um baixista, atravessaram a segunda metade dos anos 80 moldando apaixonadamente seu som.

Graças a um amor quase inconfesso no início, a banda atravessou toda a década de plástico e entrou nos anos 90 com uma moral de respeito, ainda que pequena. Fiéis à reputação, foram aprimorando sua sonoridade tímida e ruidosa à medida que gravavam discos, encontrando finalmente no gordo James McNew o ponto de equilíbrio entre o casal.

Que voltou a se apaixonar. Desde que descobriu sua fórmula no álbum Painful, o Yo La Tengo vem lançando um disco melhor que o outro e é difícil separar esta fluência musical da ótima relação entre os três integrantes. Mas a força magnética que mantém o grupo unido é claramente o amor entre Ira e Georgia, joão e maria ninguém do universo pop, que despreza qualquer tipo de padrão exterior de beleza e aceitação, numa busca quase zen da bondade interior.

Este personagem é recorrente. O nerd que recolhe-se do mundo social em seu quarto, com livros, discos e filmes e canta sua dor e beleza é um dos principais arquétipos na história do rock. De Buddy Holly a Kurt Cobain, passando pelo Pavement, Joy Division, Chemical Brothers, Weezer, Radiohead, Cure, Devo, Smiths, Belle & Sebastian e milhares de outros nomes. Uns se consideram loucos, outros são a escória assumida do mundo, outros ainda uma elite sofisticada e todos se unem pelo simples fato de usarem este exílio do mundo real um meio para expor sua própria individualidade.

O que o Yo La Tengo propõe é o amor e a paixão dentro deste personagem. Mas não de um ponto de vista platônico, inatingível. Ao formar um casal, a dupla central do grupo expõe-se como a concretização deste amor, uma prova que isto é possível. Poucos casais na história do rock agem desta forma, quietos e cabisbaixos, trocando confidências entre acordes e ritmo. A grande maioria dos casais são rockers até o último fio de cabelo – Thurston e Kim, Patti e Fred Sonic, Mick e Marianne, Exene e John, Sid e Nancy. Poucos casos colocam casais tímidos dentro de projetos musicais, entre eles o Talking Heads e o New Order. Fora dos Heads (e da sombra de David Byrne), Chris e Tina exploraram toda a sensualidade rítmica de sua química com o nome de Tom Tom Club (autores da jóia “Genius of Love”). Fora do NO (e da sombra de Sumner e Hook), Stephen e Gillian deslizavam carícias sintéticas como The Other Two.

Como os dois casais, Ira e Kaplan também namoram na música. Enquanto Tina Weymouth e Chris Franz embarcam com o ritmo e Gillian Gilbert e Stephen Morris se atém às texturas eletrônicas, o casal do Yo La Tengo fica com a guitarra e os outros instrumentos (teclados, caixas de som, baixo, pedais de distorção) que possam soar tão valvulados e intensos como a sonoridade de quem são herdeiros, do Velvet Underground. Mas se tanto o Tom Tom Club quanto o Other Two apenas insinua o amor entre os músicos através do som, o Yo La Tengo sempre cantou o amor. E, apaixonados como estão, fizeram um disco inteiro sobre o assunto. And Then Nothing Turned Itself Inside-Out canta a paixão de gente comum, sem o glamour do cinema ou os maneirismos da TV.

“Eu me lembro um dia de verão/ Eu me lembro ir em sua direção/ Eu me lembro ter corado/ E eu me lembro olhando meus pés/ Eu me lembro antes de nos encontrarmos/ Eu me lembro sentar ao lado de você/ E eu me lembro fingir não estar olhando”, Ira confessa à medida que encolhe sua voz para dentro na bela “Our Way to Fall”. É um amor palpável, de olhares cruzados em filas de espera e calçadas, longe do romantismo ideal idealizados pela mídia. “Se você quer meu amor/ Pegue baby”, entrega-se Georgia no hit potencial “You Can Have it All”, “Se você quer meu coração/ Pegue baby/ Pode pegar tudo”. De repente o casal está em plena crise existencial e Ira se vê confessando-se às paredes: “O que eu perdi aqui? O que você não consegue mais agüentar? Espero um suspiro, ouço a porta bater/ Você diz que tudo que fazemos é brigar/ Ih, eu não sei se isso é verdade/ E penso se estou certo ou se isso é parte do problema/ Talvez esteja fora de mim, bloqueando a realidade/ Mas parece apenas uma coisa: você não quer ouvir, eu não consigo me calar”. Em “Last Days of Disco”, o clima é de filme dos anos 50 (só que nos anos 70): “Te vi numa festa/ Você me tirou pra dançar/ Eu disse que a música não era boa pra dançar/ Eu não danço muito/ Mas dancei/ E fiquei feliz por dançar/ E a canção disse “Vamos ser felizes”/ Eu fiquei feliz/ Nunca havia ficado feliz antes/ E a canção disse “Não fique só”/ Me senti só/ Ouvi e fiquei cada vez mais assim”.

A sonoridade tem aquele astral de paisagem que só a paixão consegue trazer e qualquer silêncio é música, olhos fechados soam como a melhor canção. Depois de exorcizar o instinto primitivo no disco com Jad Fair, o grupo voltou ao lirismo e à doçura com delicadeza e sentimento. Colocando à frente o casamento entre o som da guitarra base distorcida e de velhos teclados elétricos, o ritmo do grupo é quase metronômico e a voz de Georgia consegue ter mais doçura (e ser menos infantil) que a de Moe Tucker, do Velvet. Compenetrado entre os teclados, a guitarra e a coleção de discos, Ira é um Johnattan Richman (dos Modern Lovers) em câmera lenta. McNew, fiel escudeiro do casal, assume a função necessária sempre que preciso, seja no baixo, na percussão, na guitarra ou nos teclados. O disco passa como nuvens no céu, sem se preocupar com quaisquer outros ritmos. À exceção de “You Can Have it All”, da bossa lounge “Tired Hippo” e “Cherry Chapstick” (uma versão para uma velha canção de KC & the Sunshine Band em que o grupo encarna o Sonic Youth), todo o disco lembra aquelas conversas a dois no escuro do quarto, que o resto do mundo sai com a luz e ninguém mais existe.

“Apesar de você não acreditar em mim, você é forte/ Escuridão sempre transforma-se em aurora/ E você não vai lembrar disso/ Quando acabar”, consola Georgia em “Tears Are in Your Eyes”. “Algumas vezes em alguns dias/ Eu não estava cego, mas agi desta forma/ Te causando dor, agora tenho de explicar/ Quando o sentimento de vazio passa do escuro à tristeza/ Eu não acredito que isso nunca aconteceu contigo/ Eu vi na TV e ri muito/ Mas é como me sinto agora”, Ira confessa baixinho. “Vamos dormir uma noite pacificamente”, convida Georgia, passando a mão entre os cabelos do marido, em “Night Falls on Hoboken”. Boa noite.