13 de 2013: Fred Leal

, por Alexandre Matias

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Já perdi a conta de quantas vezes comecei a escrever esse texto. Comecei a rascunhá-lo como um processo de exorcismo à péssima notícia que meu amigo e irmão de coração Fred Leal havia sofrido um AVC, em Paracambi, a cidade que ele colocou em nosso mapa mental, no primeiro dia do mês de setembro deste ano. Danilo me ligou tenso, dizendo não ter mais informações além de que ele já estava internado no Rio de Janeiro e perguntando, já sabendo da resposta, se podia me incluir numa troca de emails de um grupo de amigos mais próximos que estavam acompanhando o fato trágico. Tatu, outro irmão dessa pequena família que construímos além da amizade, estava acompanhando tudo direto do hospital e nos mantinha informados sempre que podia. Não dava pra fazer nada a não ser esperar. Foi quando comecei a escrever esse texto, como uma carta para ser lida por ele quando saísse do hospital.

Cheguei a ir ao Rio de Janeiro dias após o acontecido, fiquei horas na sala de espera do hospital em que ele estava internado, mas não consegui visitá-lo. Os médicos não disseram na hora, mas depois fiquei sabendo que o quadro dele havia piorado enquanto o esperava e não seria possível ninguém vê-lo naquela quarta-feira. Tatu continuava mandando notícias sobre os altos e baixos típicos de alguém que estava internado naquelas condições. Cada dia uma nova leva de novidades, boas ou ruins. Até que, alguns dias depois, na meia-noite do sábado 7 para o domingo 8 de setembro, recebo uma mensagem no celular, com a Bia pedindo para que eu ligasse para ela urgente – estava na praia e o celular não pegava direito, embora houvesse wi-fi. Fui correndo para a beira da praia onde o sinal do celular pegava melhor, já temendo o pior – e com ela a drástica notícia. Fred não havia resistido. Nunca havia perdido alguém tão próximo. Entrei em estado de choque e não consegui sequer ir ao enterro de um dos meus melhores amigos, naquele domingo triste em Paracambi.

Fred Leal era uma das melhores pessoas que todos nós conhecíamos. Como muitos amigos que conheci primeiro online, não me lembro de nosso primeiro contato virtual, mas lembro finalmente te-lo conhecido pessoalmente no show de lançamento do primeiro disco dos Los Hermanos, no saudoso Ballroom, no Rio de Janeiro, em 1999. Fred, ainda adolescente, era uma dos muitos fãs de primeiríssima hora do grupo carioca e já havia perdido a conta de quantos shows do grupo já havia assistido antes daquele, mas estava especialmente animado com o show daquela noite – afinal era a consagração de uma intuição que já havia sido percebida por um pequeno grupo de cariocas do qual Fred fazia parte. E, como acontecia com a maioria das pessoas que conheceu Fred, o primeiro contato offline com foi de empatia instantânea. Nos dias seguintes já o tratava como alguém que conhecia há anos e nossa diferença etária (era seis anos mais velho que ele, diferença significativa quando flutuamos ao redor dos vinte) havia simplesmente desaparecido.

Desde então o contato online tornou-se permanente – há mais de dez anos trocava informações sobre discos, livros, filmes e frilas com Fred, sempre o chamando nas diferentes empreitadas que me envolvia. Coloquei-o para entrevistar personagens no site da velha revista Play, chamei-o para cobrir shows do saudoso projeto Trama Universitário, convidei-o para escrever no livro 300 Filmes para Ver Antes de Morrer, que editei para a revista Época em 2006 e quis o destino que ele não escrevesse nada pra Galileu – era questão de tempo para que o chamasse. Mas não era só troca de conhecimento – Fred era um coração gigantesco pronto para ouvir seus lamentos e desventuras e muitas vezes segurei suas barras emocionais depois de pés na bunda ou ressacas morais. Trocávamos links pra shows inteiros no YouTube enquanto um lia o outro falando sobre as desilusões e esperanças recentes, indicações de novos autores vinham misturadas de confissões hilárias ou de sermões intensos. Uma dica de culinária lembrava velhas namoradas, brigas com parentes, a monotonia do emprego. Exercícios de futurologia, filmografias completas, ombro amigo, artistas desconhecidos, filosofias de vida – qualquer meia hora conversando com Fred via email, MSN, ICQ, Gtalk ou mensagens do Facebook valia por cursos intensivos das coisas que importam na vida.

O contato online, a poucos toques e cliques do teclado, se tornou uma amizade de coração, e, mesmo na maior parte do tempo morando em cidades diferentes, pudemos conviver proximamente em vários momentos. Desde as temporadas que eu passava no Rio no início da década passada aos shows de Paul McCartney que assistimos juntos em Buenos Aires, quando ele havia se mudado para a capital argentina. Mas dois períodos de convivência foram intensos: 17 dias em Recife no início de 2006 e o quase ano que trabalhamos juntos em São Paulo no Estadão, entre 2009 e 2010.

O primeiro foi em fevereiro de 2006, quando fui convidado para palestrar na segunda edição do Porto Musical, em Recife, uma semana antes do carnaval. Eu havia acabado de sofrer o acidente que me deixou parado por seis meses, braço direito na tipóia e sem movimentar a mão devido a um estiramento de nervos e uma das conversas mais frequentes que tinha com Fred à época era sobre a produção de conteúdo feita pelo usuário comum através da recombinação de mídias já existentes – a cultura do remix que é a base da produção cultural na internet, aquela feita por qualquer um (no final daquele ano a revista Time escolheria “você” como “pessoa do ano”). Pensei em apresentar este tema no simpósio e convenci a organização do evento a pagar a passagem de Fred, que havia topado desenvolver melhor a palestra comigo. Como estava de licença médica, poderia emendar o período da palestra com o carnaval pernambucano, uma velha utopia. Ao ir em dupla para Recife com Fred ainda tivemos a vantagem de descolar um apartamento no bairro de Boa Viagem, onde passamos duas semanas em dos carnavais mais psicodélicos da minha vida. Foi quando eu criei o Vida Fodona, que começou a princípio como um podcast de entrevistas – aproveitamos a movimentação cultural promovida pelo Porto Musical e, claro, pelo carnaval, e saímos entrevistando artistas, produtores e amigos sobre aquele momento. Na véspera da viagem, passei antes por seu apartamento no Leme (o clássico Tchose Inn), onde editamos o vídeo que apresentamos na palestra pouco antes de irmos ao histórico show que os Rolling Stones fizeram em Copacabana. Os causos e lendas deste carnaval (o misterioso segundo disco do Mombojó, a festa que Dani Arrais – que ainda morava no Recife – conseguiu agitar para que tocássemos antes de irmos embora, o famoso caso do psy às quatro da manhã) estão entre alguns dos meus melhores momentos pessoais. Vida Fodona indeed – e sempre ao lado do Fred.

O segundo aconteceu depois que me tornei editor do Link e consegui convencer o Estadão a contratar um repórter que não tinha diploma – Fred veio com a chinfra de “personal nerd”, título criado por ele que usei para atualizar a antiga seção “Saiba Como”, e logo encantou a todos, se tornando uma peça central em uma das melhores equipes que já fiz parte, a equipe que conduzi a partir de 2009. A convivência diária com Fred nos presentava com doses cavalares de gentileza e bom humor – Fred sempre tinha aquela tirada na hora certa, seja com um link, uma citação, uma lembrança inusitada ou apenas seu senso de humor ao mesmo tempo sisudo e sacana (sempre seguido daquele “HEHEHEHE” rido com força na garganta). Ele morava do lado de casa, no mesmo prédio que a Tati, e várias vezes emendávamos um terceiro tempo pela região – seja dividindo o táxi ou trocando idéia até altas em seu apartamento, bebendo, fumando, ouvindo música e jogando Beatles Rock Band. Foi em sua passagem pelo Estadão que ele conseguiu entrevistar dois de seus ídolos na música – Robert Schneider, dos Apples in Stereo, e Bill Withers. “Direto eu lembro das nossas conversas de fumódromo”, foi uma das últimas coisas que ele me escreveu, “hahaha, grandes momentos”. Grandes momentos :~

Essa convivência foi interrompida pelo próprio Fred que, em sua segunda passagem por São Paulo, havia percebido que não nascera para morar nesta cidade. Abandonara mais uma carreira, entre tantas, desta vez para morar em Buenos Aires. Seis meses depois me chamava no Gtalk – “estou te devendo um uísque, vou voltar pro Brasil”. Mas em vez de voltar para o Rio enfurnou-se em Paracambi. Logo depois vieram as notícias da morte de sua mãe e de seu pai (mesmo que não falasse mais com o pai, a notícia lhe baqueou, embora não transparecesse) e cada vez mais Fred foi se escondendo em Paracambi. Por trás da extrema simpatia havia uma tristeza que pairava sob sua personalidade. Era essa tristeza que o tornava tão doce e sentimental, mas ao mesmo tempo arrastava-o para baixo com força. Aos poucos, a ida para Paracambi parecia uma fuga da realidade para os mais próximos, que de algum jeito tentavam trazê-lo de volta à convivência. Mas ele parecia disposto a ir. Meu último gesto nesse sentido foi dar-lhe um blog nOEsquema – uma forma de contribuir não apenas aos anos que me deixou hospedado na Fubap (que antes chamava-se Badtrip) como também de fazê-lo voltar a escrever, mas o Axioma teve apenas quatro posts. Num deles, deslumbra-se com o grande disco de Frank Ocean do ano passado e cita uma entrevista do rapper para definir sua amplitude lírica. Sem querer, Fred estava falando de si mesmo:

“Quando você está feliz, você curte a música. Mas quando você está triste, você entende a letra.”

Fred era letra e música – e todos cantávamos com ele. Quem sente, sabe. Vamos seguir cantando-o.

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