Bruno Bruni: Broovin 3


(Foto: Maria Cau Levy/Divulgação)

Saiu nessa sexta-feira o terceiro volume da série Broovin, que consolidou o nome do compadre Bruno Bruni como um dos novos talentos da atual cena paulistana. Acompanho seu trabalho desde o início dessa trilogia, quando ele começou praticamente sozinho a construir células de groove que viravam canções e aos poucos foi engrossando o caldo, primeiro ao vivo e depois nos discos. Broovin 3 encerra essa trilogia de início de carreira e pela primeira vez ele pode gravar com uma big band completa – e me chamou para escrever o texto de apresentação do álbum, que também marca sua ida para os Estados Unidos, onde foi estudar arranjo e composição de jazz.

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Gabriel Milliet: Um


(Foto: Biel Basile/Divulgação)

Conheci Gabriel Milliet no ano passado, quando ele participou da temporada que o Biel Basile fez no Centro da Terra e aos poucos ele foi me apresentando ao seu trabalho solo, que desenvolveu nos anos em que esteve fora do Brasil, quando mudou-se para a Holanda. Longe do país, começou a compor suas músicas num misto de saudade e sensação de deslocamento e pertencimento, que, quando voltou ao Brasil, começaram a se tornar um disco. Gravado em dois continentes, o disco batizado Um reúne a paixão de Millet pela canção e pelo violão de nylon à sensação de descolamento que sentiu ao ficar longe do país e está sendo lançado neste início de setembro. Gabriel me chamou para escrever o texto de apresentação do trabalho, que republico abaixo:

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Luiza Lian: 7 Estrelas | Quem Arrancou o Céu?


(Foto: Leon Gurfein/Divulgação)

Acompanhei de perto o baque que a pandemia e a quarentena causaram no quarto disco de Luiza Lian, 7 Estrelas | Quem Arrancou o Céu?, que finalmente vê a luz do dia nessa sexta-feira. Éramos vizinhos naquele longínquo 2020 e já acompanhava a movimentação que ela e seu produtor Charles Tixier haviam começado a fazer no ano anterior, a partir do mesmo movimento que gerou a parceria da cantora com o grupo Bixiga 70 (o single “Alumiô”, lançado em dezembro de 2019, fazia parte do repertório original de seu então futuro disco). Veio o novo vírus, o isolamento social e a paranoia daqueles primeiros meses do primeiro ano pandêmico e o questionamento artístico que os dois provocavam parecia colidir e se misturar com a ansiedade e a insegurança daquele ano. Pude encontrá-la pessoalmente naquele primeiro momento em que aprendíamos as novas regras de um novo convívio social, entre aqueles maio e junho, e aos poucos ela foi me explicando o conceito do disco, os diferentes estágios da produção, as minúcias das letras, do título, da proposta de um disco que nos faz pensar neste híbrido de Narciso e Ícaro que estamos nos tornando com a onipresença dos espelhos pretos que dominam e pautam nossas vidas – e como todos essas dúvidas pareciam ter sido potencializadas com aquele início traumático de década. À medida em que saíamos daquele pesadelo – que no caso brasileiro, sabemos, ainda foi temperado com o gosto de enxofre de um governo pró-morte -, pude acompanhar como o disco começou a chegar em sua atual forma, com sua capa, o título das canções e sua ordem no álbum, seus anexos audiovisuais e a concepção de sua versão ao vivo. Mais uma vez Luiza me convidou para escrever o texto de apresentação do disco e reforço o que disse pra ela desde que comecei a ver o disco chegando ao estágio atual: o que ela fez em seu disco anterior, Azul Moderno, era só um ensaio para este novo momento. Discaço.

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Garotas Suecas – 1 2 3 4


(Foto: Fausto Chermont/Divulgação)

Acompanho os Garotas Suecas desde os tempos em que eles faziam parte da fauna garageira tropicalista que agitava parte da cena independente paulistana, há quase vinte anos. De lá pra cá, o grupo viajou pelo país e pelo exterior, consolidou seu nome no mercado midstream, lançou discos e EPs, perdeu dois integrantes – um deles, Sessa, em bem-sucedida carreira solo – e reafirmou-se como um quarteto. Desde 2019 preparando seu quarto disco, o grupo, como todos nós, foi encurralado pelo coronavírus e deixou o novo trabalho ganhar os ares sombrios destes anos que atravessamos. 1 2 3 4 finalmente vê a luz do dia nesta quarta-feira e a partir dele o quarteto reforça suas influências musicais diretas – quase tudo que dá pra encaixar no enorme guarda-chuva chamado rock brasileiro – ao mesmo tempo em que renasce cético apesar do otimismo destes dias de retomada. Com faixas batizadas com títulos que dão o tom pessimista do disco (“Veneno”, “Podemos Melhorar”, “Não Tá Tudo Bem”, “Marginais”, “Como É Que Pode”, “A Bala Que Era Pra Ser Sua”), 1 2 3 4 é um retrato do abismo que fomos enfiados “desde 16”, como grupo canta em “What U Want”, que ainda reforça que “é tudo tão claro nesse tempo nublado o que fizeram com o país”. Eles me convidaram para escrever o texto de apresentação do disco, que segue abaixo:  

Pedro Pastoriz sonhando acordado

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Alegria que o grande Pedro Pastoriz finalmente vê seu Pingue-Pongue com o Abismo ver a luz do dia, três meses depois da data que havíamos pensado originalmente, em abril, devido, claro, à quarentena e à pandemia. Neste processo, com o qual trabalho venho trabalhando como diretor artístico do lançamento junto ao cantor e compositor gaúcho, repensamos como o disco poderia ser apresentado nos meses seguintes e Pedro começou a explorar outros caminhos longe do palco, especialmente a partir de entrevistas Linha Cruzada feitas através Instagram ou do programa de humor Comitê. Tais ações conversam com o clima onírico e inquieto do disco, qualidades que parecem contraditórias mas que, a partir dos novos horizontes enxergados por Pedro, é um saque com efeito contra as expectativas. Abaixo, o release que escrevi para o lançamento, que foi produzido pelos mesmos músicos que o acompanham no disco (Arthur Decloedt, do Música de Selvagem, e Charles Tixier, produtor que trabalha com Luiza Lian) e ainda conta com participações de Fausto Fawcett, Lydia Del Picchia e Tomas Oliveira. Discão.

Pedro Pastoriz – Pingue-Pongue com o Abismo

Pingue-Pongue com o Abismo é um lugar imaginário, uma metrópole de papelão, uma tarde ensolarada numa paisagem cinzenta, um brinquedo sério. Como em seus discos anteriores, Pedro Pastoriz condensa sensações e situações em canções que soam como crônicas, contos ou conversas, que descrevem relacionamentos, memórias e ansiedades. Mas neste terceiro álbum, o cantor e compositor gaúcho, que também é vocalista do Mustache e os Apaches desbrava fronteiras conceituais e invade outros territórios narrativos, como a poesia, a publicidade, o teatro, a comunicação institucional, a auto-ajuda, o jingle, o rap, o esquete de comédia e outras possíveis formas de texto musicado que nunca havia cogitado em seus discos anteriores, num disco influenciado por outras disciplinas, por acontecimentos pessoais e seu próprio subconsciente. É um salto que consolida sua carreira solo e aumenta seu espectro de atuação para muito além da canção.

O título – meio niilista, meio dadaísta – foi emprestado de uma referência do poeta beat Allen Ginsberg a uma de suas inspirações, o escritor Carl Solomon, tema da terceira parte de sua obra mais importante, Uivo, a quem ele dedicou todo o poema. Seu trabalho foi reunido pela primeira vez no meio dos anos 60 em dois livros, Mishaps, Perhaps (1966) e More Mishaps (1968), que formaram a base de seu único livro publicado no Brasil, De Repente Acidentes (lançado em 1989). Ginsberg citava-o nominalmente na terceira parte de Uivo (“I’m with you in Rockland / where you scream in a straight jacket that you’re losing the game of the actual ping pong of the abyss”, “Estou contigo em Rockland / Onde você grita numa camisa-de-força que está perdendo o jogo do verdadeiro pingue-pongue com o abismo”) e esta imagem, além de outras levantadas por este livro, grudou no inconsciente de Pedro desde que ele o conheceu, ainda em sua adolescência, quando apaixonou-se pela obra a ponto de andar com ela para cima e para baixo e ser reconhecido como seu leitor apaixonado.

A lógica daquele livro renasceu no fazer deste terceiro disco e sua apresentação não-linear, com textos de diferentes tamanhos, humores e intensidades, funcionou como inspiração inconsciente para seu novo álbum, principalmente na utilização de vinhetas, pedaços de textos musicados que não chegam a se tornar canções, acentuando a natureza polifônica do disco.

Outra influência crucial foi a mutação da banda que o acompanhou em seu disco anterior, Projeções (2016). Originalmente um quarteto formado por Pedro, o baixista Arthur Decloedt (Música de Selvagem), o guitarrista Artur Vac (Grand Bazar) e o vocalista do grupo O Terno, Tim Bernardes, fazendo as vezes de baterista, ela passou por duas mudanças de formação que trouxeram o produtor Charles Tixier (Luiza Lian) para a bateria, metamorfoseando o quarteto em um novo trio, que ainda contava com Arthur e Pedro.

Foi este trio que decantou o repertório escolhido para o disco, enxugando bastante o número de canções e materializando as vinhetas a partir das ideias que o autor tinha de outros formatos musicais. A improvável união de violão, contrabaixo elétrico e MPC firmou-se durante as gravações no estúdio Canoa, sob os auspícios do produtor Gui Jesus Toledo, grande entusiasta do trabalho de Pedro e sócio do selo RISCO, que apostou nessa aventura. Juntos, Pedro, Arthur e Charles, que também produziram o disco, passearam por outros instrumentos, tocando synths, mellotrons, teclados de baixa fidelidade, harpa paraguaia, fazendo colagens, usando samples e enfileirando efeitos sonoros, criando esse lugar mental ao mesmo tempo verdadeiro, artesanal e artificial. Todas as vozes são de Pedro Pastoriz.

Durante a produção, Pedro soube da morte da sua mãe e a perda inevitavelmente abalou o disco – e sua cabeça. Em pouco tempo, ele viu-se num lugar em que espiritualidade, meditação, luto, misticismo e saudade misturavam-se de forma tão díspar e sintética quanto a linguagem que estava desenvolvendo para o disco. Isso não tirou o disco do prumo, e sim acentuou sua natureza plural, forçando Pedro a um amadurecimento artístico que não previa, mas que consolida-se no resultado, cuja sonoridade parece o tempo todo muito familiar e incomum.

Neste processo, Pedro entrou num buraco de minhoca que o lançou de volta à sua adolescência e passou a buscar respostas racionais para seu drama pessoal em diferentes fontes: a meditação, a psicologia, a espiritualidade e a arte foram veículos nesta busca infrutífera, que só foi render algo quando Pedro regurgitou tudo aquilo em seu inconsciente. Pingue-Pongue com o Abismo é um disco que foi composto quase todo em sonhos.

“Eram sonhos loucos que ressignificavam todas as informações de um jeito improvável, absurdo, geralmente beirando a comédia”, lembra Pedro, citando como o texto de Freud “Recordar, Repetir, Elaborar” parece ter originado um sobre um serviço que encenava memórias antigas com atores em um palco, tema de uma das canções. Neste processo, houve a constatação de que a repetição funcionava como uma prisão, uma dificuldade de se quebrar um comportamento, um vício, um hábito – e o disco passou a ser encarado como o desafio de sair deste loop.

De sonoridade ímpar, Pingue-Pongue com o Abismo é tanto um disco de variedades da metade do século passado quanto uma colagem pós-moderna no início do século 20 e uma provocação conceitual aos limites da canção neste novo século. Usando a repetição como conceito e tentando, paradoxalmente, não se repetir, ele passeia por baladas idílicas, chavões, levadas latinas, timbres retrô, frases assobiáveis, refrães pegajosos, instrumentos improváveis, copy and paste absurdistas, palavras de ordem, mensagens subliminares e propagandas surreais. As presenças da atriz Lydia Del Picchia, do poeta Fausto Fawcett e do tocador de taças Tomas Oliveira soam tão improváveis quanto familiares fazendo o disco aprofundar o cancioneiro de Pedro para além da linhagem trovadora que atravessou seus dois discos, criando um universo sonoro próprio, jocoso e introspectivo, irônico e minimalista, melancólico e palhaço, expondo contradições que descortinam um novo compositor, pronto para iniciar uma nova fase de sua carreira.

Pingue-Pongue com o Abismo, por Pedro Pastoriz

“Dolores”
“Foi uma das primeiras do novo repertório, fiz a melodia dela no quarto de um hotel no Rio de Janeiro em uma noite tocando assistindo TV sem volume. Foi uma busca de tentar reproduzir aquele mundo praiano pintado em aquarela, uma espécie de mundo da doçura do Harry Belafonte, do Henri Salvador, e aquela coisa das harpas bolivianas do Pájaro Campana, que Charles conseguiu traduzir na maestria, com harpas sintetizadas. A letra fala de uma maneira naïf de alguém que se foi sem avisar e deixou pra trás memórias e objetos, algo que pode ter relação com os dias que vivi arrumando as coisas da minha mãe depois de sua morte. Foram dias que fiquei sozinho em sua casa, li cartas e abri caixinhas de uma pessoa que eu amava tanto, e que pude conhecer ainda mais enquanto organizava esses objetos. “

“Fricção”
“Começamos a tocá-la no início da ser turnê do Projeções, meu disco anterior, ainda com Tim na bateria e Vac na guitarra. A intenção é que ela tivesse essa coisa cool francesa, meio Françoise Hardy, um tanto Burt Bacharach. Um ponto alto são as linhas vertiginosas de baixos do Arthur e as taças, instrumento criado e tocado pelo meu parceiro de Mustache e os Apaches, Tomas Oliveira.”

“Sessão das Sete”
“Foi a música que veio por último. Eu e minha namorada, Talita, pegamos algumas sessões das sete em semanas seguidas no Belas Artes e isso me lembrou uma época dos meus 20 anos lá em Porto Alegre, onde tinha esse hábito semanal de ir no cinema. Achei que precisava puxar esse clima pro disco, e ela tem essas referências de uma noite que parece que já foi vivida, de um filme que já foi visto. Me surpreendi com a combinação dos arranjos com os elementos que pintaram, usei um violão de 12 cordas nessa música, e achei que casou com o MPC do Charles, a sonoridade ficou bem nova pra mim.”

“Chicletes Replay”
“Essa música foi feita a partir de um poema curtinho que tinha escrito, em uma volta de show na madrugada, dia nascendo. Deixei uma cidade na noite anterior, dormi na van depois de um show, dormi, acordei naquela solidão ancestral e contemplativa de quem viaja no escuridão de uma estrada no meio da noite. Dormi de novo, sonhei profundamente, acordei no susto, parei em um posto, voltei pra estrada. E chegando na cidade tive essa revelação de como as coisas se repetem consecutivamente desde sempre – grandes manchetes, possíveis novos finais de mundo, novas eleições, novas promessas de esperança, que é justamente o que possibilita que as coisas continuem sendo como são. Acredito que em Roma ou na China antiga as coisas e os sentimentos e as expectativas eram muito parecidas com as de agora. Os personagens e as ações estão aí desde sempre, e a gente se limita com essas cobranças complicadas e repetidas de apego a uma identidade, uma história que a gente imagina serem únicas, essas coisas. Ela tem esse discurso publicitário e traz esse produto que promete unir histórias tão dissonantes, experiências de vida tão diferentes a partir do consumo de algo fácil, rápido e descartável, um chiclete. Foi uma música feita em sonho, em parte. “

“Lydia Réplica”
“Nós e Outros foram duas peças que vi no ano passado e que me pegaram muito. Vi mais de uma vez e levei caderninhos pra anotar várias coisas, no escuro do teatro. Depois de algum tempo achei as anotações e eram totalmente incompreensíveis. As duas peças são uma parceria do Grupo Galpão de Minas Gerais, com o diretor Márcio Abreu. Nós tem elementos de repetição no texto, quase um remix de palavras, e uma história de despedida amarga e engraçada, e queria trazer isso pro disco de alguma forma. Então convidei a Lydia Del Picchia, diretora e atriz do Grupo, pra participar e “remixar” um texto comigo, uma réplica / reprise / continuação de Chicletes Replay. E foi de primeira, fácil como descobri que as coisas podem ser.”

“Alzira”
Quando componho uma música raramente falo da minha vida pessoal de forma direta, pelo menos. E essa música saiu espontaneamente, é sobre minha mãe. Tinha uma conexão muito forte com ela, e durante os meses de composição pra esse disco eu tinha muita dificuldade de sentar pra compor. As idéias vinham em sonhos, quando meu superego cochilava. Minha mãe morreu um acidente de carro, e muita coisa mudou na minha vida, noites ficaram muito longas e dias muito curtos. Essa música eu levei num ensaio já me desculpando, achando que não devia entrar e que gostava mais da melodia, algo assim. E foi Charles quem me falou: ‘justamente por ser uma história tão pessoal que tu deveria cogitar trazer ela pro repertório, pensa nisso’. Acho que se eu quisesse escrever uma música pra uma coisa tão forte e tão complexa, iria querer florear demais. E isso é impossível, então aceitei essa música como ela veio, porque é importante pra mim.”

“Cachorro Replay”
“Essa vinheta fala por si, do meu animal com o animal em si.”

“Janela”
“Na rua onde eu moro – ou melhor, na rua onde minha janela está presa – conheço quase todos os personagens, vendedores das lojas de música, algumas pessoas que esperam o ônibus barulhento sempre na mesma hora, alguns casais reincidentes que brigam na entrada do hotel, um sujeito que entrega água de bicicleta e todos os dias desce o pequeno declive com uma excitação admirável, gritando: ‘Eu vou morrer, eu vou morrer!’ Todos gritam, aplaudem, jogam qualquer tipo de energia de volta pra esse sujeito. E são raros os momentos, infelizmente, que eu desejo ver essas pessoas. Então geralmente fumo um cigarrinho e ouço um som ao final do dia, quando as pessoas já voltaram pra casa. Essa música foi feita em um desses, dias, um exercício de composição. Fumava meu cigarrinho e olhava pra rua, e assisti alguém que ficou embaixo da minha janela, excessivamente imóvel, uma figura híbrida de existencialismo e alienação total, o que me sugeriu muitas possibilidades possíveis pro futuro e pro passado daquela pessoa. No final das contas é tudo um tanto de projeção, achei justo ela estar no disco.”

“Replay Esportes”
“Li sobre budismo e espiritismo e outros ismos, seguindo a vida depois do trauma da perda da minha mãe. Fiquei mais tempo interessado na meditação transcendental. A idéia de ficar em silêncio, entrar em contato com os pensamentos de outra forma, e de aceitar alguns vazios que estão ali. É relativamente difícil entrar em contato com a informação do como fazer, com a prática e os exercícios. São muitos livros falando sobre os benefícios, como pode mudar sua vida. Mas não ensinam muito sobre a prática. Tem aplicativos que jogam uma ansiedade estranha na prática, com programas de metas e de desempenho, o que pra mim é o oposto de ouvir sua própria respiração e investigar o que está acontecendo em seu corpo. E em algum momento meditando voltei com essa cena do esporte de alto rendimento no abismo na meditação e uma mistura totalmente improvável de tudo isso.

“Teatro Replay”
“Fazendo terapia no ano passado, conheci um texto do Freud que fala sobre Recordar, Repetir e Elaborar, e em alguns momentos minha terapia foi em um caminho de como tendemos a repetir ações na intenção de superá-las. Racionalmente era isso. Mas então algo bem mais legal aconteceu. Sonhei com esse serviço de uma companhia de teatro que prometia ajudar as pessoas a reviverem melhores momentos de suas famílias através de atuações em um teatro, e achei que que tinha algo ali. Foi uma das primeiras músicas do disco e foi outra música feita em sonho, em grande parte.”

“Resposta sobre Hostel Replay”
“Esse é um reclame do meu disco anterior, misturado com um comercial. É também importante afirmar o que não se é.”

“Faroeste Dançante”
“Essa música é uma parceria com o Fausto Fawcett, que admiro muito e que mensalmente acompanho suas participações nos sarau Trovadores do Miocárdio. Em uma das edições levei meu exemplar do livro Santa Clara Poltergeist pra ele e disse que estava fazendo uma música que eu estava tentando emular algo Fausto Fawcett. Ele riu e me falou pra mandar a música pra ele. O processo foi fácil, todo a distância. Foi minha primeira parceria com outro letrista, ouço e ainda fico maravilhado com a idéia de ter um fonograma com o man. Tem um solo de MPC cabuloso do Charles, eu uso um violão de 12 cordas nessa faixa, e Arthur toca um controlador synth bass.”

“Sol”
“Essa veio de um desses exercícios de meditação, tem qualquer coisa de influência naquela linguagem do Instituto Dharma, do seriado Lost.”

“Boogaloo”
“Essa música era uma das preferidas do público na turnê de 15 shows que fiz na Alemanha em setembro de 2019. Ela surgiu a partir da idéia de eu ensinar português pros alemães, formando uma grande miniorquestra junto com as palmas e os calcanhares batendo no chão. E eu gritava “Napoleão”, e eles repetiam, e eu mandava “A egiptologia!”, e eles morriam de rir com os fonemas. Ela fecha o disco, com solo de liquidificador.”

Uma ilha em forma de música

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O músico catarinense exilado na Itália Ricardo Seola acaba de lançar seu primeiro álbum, Santa Monica, disco instrumental tocado apenas ao violão, e pediu para que eu escrevesse um texto de apresentação para este trabalho, um mergulho nostálgico numa Floripa sentimental.

SANTA_MONICA

“A calma melancólica de uma ilha como Florianópolis”, assim o multiinstrumentista e compositor catarinense radicado na Itália Ricardo Seola resume seu disco Santa Monica, que lança nas plataformas digitais. Músico e designer, ele mora em Milão há três anos e criou este projeto como uma forma de voltar à atmosfera bucólica de Florianópolis, cidade que adotou como sua à medida em que desenvolvia sua carreira musical. “Cada nota foi pensada e executada pra que o ouvinte se transportasse comigo pra uma lugar que, na nossa cabeça, seja como essa ilha. A melancolia talvez more no fato de que talvez essa ilha nem exista mais, mas na nossa imaginação ela é perfeita. É como Isidora, cidade invisível do Calvino”, conclui.

São canções instrumentais que abrem janelas mentais que ecoam outros paraísos acústicos, como o Rio de Janeiro da bossa nova, a Bahia de Dorival Caymmi e João Gilberto, a Inglaterra outonal de Nick Drake ou as incursões folk do Radiohead. Oito canções que evocam tanto a atmosfera viva e natural de uma cidade praiana quanto o clima melancólico e introspectivo de uma região fria do Brasil. Ao misturar estes dois polos aparentemente distintos, Ricardo Seola encontra um equilíbrio que traduz-se musicalmente em pequenas odes a uma paisagem musical utópica.

Com passagens por pequenas bandas catarinenses, Seola nasceu em Florianópolis mas começou sua carreira musical há quase 25 anos, no interior de Santa Catarina, em Rio do Sul, com uma banda chamada Insaney, cujo grande trunfo foi ter sido resenhada pela revista Rock Brigade. Ao mudar-se para Florianópolis, criou a banda Z?, que, como diz, “teve um discreto sucesso”, citando o prêmio de Melhor Videoclipe Independente no festival Gramado Cinevídeo, para a música “Deixa o Tempo”, em 2007, que fez o clipe tocar em canais como MTV e Multishow e a música ser incluída na programação de algumas rádios no Brasil.

“O formato solo foi quase uma necessidade”, ele explica a nova formação. “Quando saí do Brasil na primeira vez, em 2008, fiquei sem banda. Eu toco violão, guitarra e piano, mas como componho pra cinema, acabo ‘tocando’ virtualmente todos os outros instrumentos de orquestra. Isso me dá uma boa noção de como são executados, embora não saiba tocá-los. Aprender a compor virtualmente, orquestrar e me expressar apenas com um instrumento foi uma consequência. O fato de ser violão é uma vontade de não depender tanto de máquina, eletricidade e software. Gosto muito de tudo isso e acho incrível tirar uma trilha sonora completa de um notebook, mas quando chego em casa e sento no sofá, preciso de algo que produza som em si só.”

Entre as influências e inspirações, ele cita nomes da música brasileira e internacional de diferentes áreas e épocas que encontram-se justamente nas composições acústicas para o instrumento escolhido como protagonista, como Caetano Veloso, Villa Lobos, Luiz Bonfá, Yamandú Costa, Kurt Cobain, Marcelo Camelo, Jonny Greenwood e Ed O’Brien (estes últimos guitarristas do grupo Radiohead)

Atualmente está em sua segunda temporada em Milão. A primeira aconteceu entre 2008 e 2011, quando foi estudar design e acabou criando um laço sentimental com a cidade italiana, onde ganhou um iF Award como designer e outros como músico e fotógrafo. Voltou para o Brasil, mas retornou ao velho continente em 2016, onde reside atualmente, na mesma cidade que o acolheu. “Santa Monica é um disco que começou assim que cheguei em Milão em 2016. Era uma forma de me colocar mentalmente de novo na atmosfera que me proporcionava Florianópolis. Fiz questão, inclusive, de gravar o disco na ilha pra que essa essência estivesse presente”, lembra.

O disco ainda não existe como show, algo que Seola planeja para o ano que vem, trazendo também outras composições para o piano e talvez peças eletrônicas e experimentais. Mas, para ele, conclui um período artístico. “Gravando o disco me sinto livre pra planejar outros projetos. No momento tenho como prioridades compor um álbum pra quarteto de cordas e paralelamente um projeto ao vivo experimental com eletrônica e synths. Em algum momento, quando tudo isso fizer sentido junto, tudo acaba virando um só trabalho, que pode ser mostrado ao mesmo tempo de forma homogênea.”

A voz de Miranda Kassin

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Finalmente Miranda Kassin assume a própria voz e renasce em seu segundo disco Submersa, lançado na semana passada, que ela me chamou para escrever o texto de apresentação, que segue abaixo.

Um zumbido eletrônico ronda os ouvidos. Ele se aproxima e se distancia, quase que um radar pairando sobre o ouvinte, até crescer e abrir espaço para baixo e bateria marcarem o andamento, marcial e constante. “Outro dia você, eu não mereço isso!”, Miranda Kassin deixa sua voz doce e firme tomar conta da canção. “E se eu pudesse escolher, mas não vai ser possível”. A faixa que abre seu segundo disco Submersa não é de sua própria autoria e localiza-se no exato ponto em que está sua carreira – apesar de já ter um primeiro disco de canções autorais (Aurora, lançado em 2012) – ela ainda é uma intérprete no início deste novo trabalho – uma música de Fabio Goes e André Lima que poderia tranquilamente ter sido escrita pela própria Miranda.

Revelada há dez anos em um show em homenagem à cantora Amy Winehouse, Miranda já tinha uma carreira de atriz antes de se dedicar apenas à música. Ela começou sua carreira nos palcos norte-americanos quando foi escolhida para interpretar uma das protagonistas de um musical que um grupo da universidade em que cursava estava montando – foi acompanhar um amigo, não tinha pretensão de entrar no elenco, mas foi escolhida e logo depois estava emendando uma produção na outra. Voltou para o Brasil e não tinha mais como: havia assumido a arte como carreira e encontrou na cantora inglesa um norte – e uma forma de homenagear sua grande paixão musical, a soul music norte-americana.

O espetáculo em que encarnava a autora de clássicos como “Rehab” e “You Know I’m No Good” a transformou em uma estrela da noite paulistana e em pouco tempo levava sua voz para todo o Brasil. Feliz com o papel de intérprete, foi provocada por músicos e amigos a assumir sua própria carreira autoral – e assim surgiu Aurora, sete anos atrás. Mas logo depois deste primeiro disco, ela foi mãe duas vezes consecutivas e a maternidade lhe afastou da música. Até agora.

O novo disco é o resultado deste novo momento de sua carreira e tem este título justamente por ter sido uma imersão de volta à sua carreira autoral. Ela novamente conta com a produção de Fabio Pinczowski, que foi coprodutor do disco anterior, e que ajudou-a a redefinir o caminho sonoro escolhido desta vez: o mesmo soul que a trouxe para a música, mas agora sintético e minimalista, de timbres eletrônicos, teclados discretos, beats quebrados e linhas de baixo sinuosas. Ao lado dos dois, o multiinstrumentista Piero Damiani, que acompanhava Kassin nos shows em homenagem à Amy, surge como preparador vocal do álbum e coautor de boa parte das canções do novo repertório, além de integrar a banda que ajuda Miranda a levar o disco para o palco.

Ao lado do trio central formado por Miranda, Fabio e Piero, um time de músicos que inclui o tecladista Danilo Andrade, o baixista Rubinho Tavares, o baterista Breno Silveira e os próprios Pinczowski (dividido entre o baixo e os teclados) e Damiani (nos backing vocals) torna o acompanhamento sonoro enxuto e coeso, abrindo brechas para as eventuais presenças do saxofonista Marcelo Freitas, dos teclados de André Lima, do percussionista Felipe Roseno e do guitarrista João Erbetta, além da única participação especial do disco, quando Miranda recebe o guitarrista paraense Felipe Cordeiro na versão de em uma das primeiras canções que compôs na vida, a quase adolescente “Vacilão”, num dos poucos momentos do disco em que a guitarra ganha voz – na imensa maioria de Submersa não há guitarras.

A submersão sugerida pelo título não diz respeito apenas à musicalidade e ao papel da cantora como compositora – ela é autora de quase todas as músicas do disco, dividindo parcerias com outros compositores conhecidos, como o vocalista do Vanguart Helio Flanders, César Lacerda e o marido André Frateschi, além de cantar canções assinadas por André Lima, Fabio Goes, Chico Salem e Paulo Carvalho. A grande revelação de Submersa é pessoal, quando ela se redescobre como uma nova mulher depois de passar pela maternidade, reencontrando sentimentos e sensações de forma adulta. É esta constatação que dá o tom de todo o disco, deixando-a mais à vontade com esta nova personalidade, plena deste novo estágio em sua vida.

E é a fusão destas duas realidades – uma musical e outra individual – que é a base de sustentação de Submersa. De um lado, a sonoridade negra norte-americana do século passado relida com instrumentos sintéticos, timbres artificiais e arranjos simples e precisos, ressaltando a beleza das canções e da doce e clara voz de Miranda. Do outro, a própria cantora e compositora reencontrando-se após a maternidade, voltando de uma jornada da heroína parente daquela de Joseph Campbell em que a viagem, neste caso, é para dentro – pois é a própria maternidade. Redescobrindo-se depois de mãe com a possibilidade de deixar-se levar por sentimentos que suas canções ajudam a externar, Submersa é quente e intimista, sincero e entregue, mas comedido o suficiente para não exagerar nesta plenitude. Da simplicidade direta de “Fudeu” à balada derramada “Doentinha”, da sinuosa “Eu Quero de Novo” à intensa “Vou com Você”, passando pelo groove ameaçador de “Segunda ou Terça”, a paixão intensa de “Simplesmente”, o trip hop pensativo de “Acaba com Isso”, a latinidade intensa de “Vacilão” e o pop radiofônico de “Correio”. Miranda está feliz e segura de seu novo momento pessoal – e seu segundo disco é o casulo em que ela convida o ouvinte para acompanhar sua metamorfose. É só vir.

Uma outra Céu

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Mais uma vez Céu me chamou para escrever o texto de apresentação de seu disco – e em seu quinto álbum, chamado Apká! e lançado de surpresa nesta sexta-feira, a cantora paulista repete o time de produtores que inclui Pupillo e Hervé Salters, resumindo sua trajetória musical ao mesmo tempo em que aponta para novos caminhos para seu futuro próximo – inclusive, como intérprete, lançando canções que Caetano e Dinho dos Boogarins fizeram para ela.

Timbres sintéticos, beat digital, vazios sônicos, um “olá” dissimulado, uma protagonista artificial – “Off (Sad Siri)”, faixa que abre o quinto disco da cantora paulistana Céu, parece dar uma ideia oposta à vibração que paira sobre esta nova obra. Composto logo após o nascimento de seu segundo filho e gravado no início deste ano, APKÁ! – assim mesmo, com maiúsculas e exclamação – consolida a jornada inicial da carreira da cantora e compositora mais importante de sua geração num disco quente e minimalista, que junta extremos sonoros, temáticos, musicais e conceituais como se repassasse as viagens que ela fez em seus discos anteriores. E faz com que ela deixe esta crisálida transformada em uma nova compositora e intérprete, pronta para começar uma nova fase de sua carreira.

O título veio do caçula Antonino, uma expressão gritada pelo bebê de apenas um ano para designar satisfação plena. Sorrindo feliz, o filho de Céu com o produtor e baterista Pupillo berra a estranha palavra inventada para mostrar que está feliz com tudo que acabou de acontecer, seja uma refeição ou uma brincadeira, num misto de excitação, plenitude e agradecimento. E, de certa forma, APKÁ! é Céu fazendo exatamente isso – em forma de música.

Ainda em “Off (Sad Siri)”, ela já começa a mostrar a colcha musical que compõe o novo trabalho, reunindo teclados chorosos e um violão melancólico aos seus vocais sussurrados e entrelaçados com os do vocalista congolês Leonardo Matumona, um dos poucos convidados do disco. Ao seu redor, ela repete o mesmo time do festejado Tropix, seu disco anterior: o francês Hervé Salters, da banda General Elektriks, repete seu papel como coprodutor e tecladista, bem como o baixista e fiel cúmplice Lucas Martins e Pupillo na bateria, programações e coprodução. O guitarrista Pedro Sá, que já tinha participado do disco de 2016, consolida o quarteto que acompanha Céu por quase todas as faixas. Aliadas à primeira, as duas faixas seguintes, “Coreto” (que foi composta com Gal Costa na cabeça) e “Forçar o Verão” fazem a ponte direta com o universo noturno da pista de dança do disco anterior, mas APKÁ! está longe de um Tropix 2.

Isso começa a se provar a partir da difusa “Corpocontinente”, que abre um atalho inusitado no percurso fluido que o disco parecia optar. Psicodélica em câmera lenta, ela começa a mostrar que Céu passa a experimentar para além do que poderia ser facilmente associado à sua produção: a partir da quarta canção, as composições, os vocais e os arranjos musicais – tudo inspecionado pessoalmente pela própria Céu -, começam a fundir as diferentes influências e referências musicais que exibiu em toda discografia.

Seus discos anteriores poderiam ser resumidos em determinadas paisagens: enquanto o homônimo disco de estreia apresentava-a ao lado de sua paleta inicial de influências (do samba ao reggae, passando por rock, MPB, soul, pop e música africana), os seguintes a fizeram percorrer por diferentes ambientes, quase todos imaginários: Vagarosa descia pela árvore genealógica do reggae, Caravana Sereia Bloom explorava o deserto e a estrada, Tropix era noturno, sintético e dançante. APKÁ! converge estes diferentes universos ao mesmo tempo em que apresenta novas experiências musicais. No novo disco, Céu experimenta novas formas de composição e novas formas de utilização de sua voz, cada vez mais segura de sua personalidade artística e de como consegue trazê-la para a superfície.

Dois dos bons exemplos estão nas duas únicas versões do disco – momentos desafiadores especificamente para Céu. Ela que é uma das principais responsáveis por mostrar para toda uma geração de cantoras que era possível compor em vez de apenas interpretar – papel das principais vozes femininas da história da música brasileira -, em APKÁ! se reinventa como intérprete a partir de composições inéditas que pediu para que dois compositores distintos – Caetano Veloso e Dinho, dos Boogarins.

“Pardo”, de Caetano, é uma das grandes composições do baiano neste século e ganha um corpo quase mágico na voz de Céu, que convidou Seu Jorge para cantarolar seu refrão sem palavras. “Make Sure Your Head is Above” foi uma encomenda inédita que Céu fez para Dinho – compor em inglês. O resultado é uma das melhores canções da carreira do compositor goiano, jogando uma luz solar pouco vista em seu grupo original. Esta faixa, um dos pontos centrais do disco, conta com um convidado de luxo, o guitarrista norte-americano Marc Ribot, que acompanha a cantora e Pupillo, fazendo discretos beats, numa canção deslumbrante. Nas duas composições, momentos únicos de APKÁ!, Céu domina seu timbre criando universos sonoros únicos a partir da relação de sua voz com os outros instrumentos – mostrando como já está partindo para outra forma de lidar com as canções, mesmo apenas como intérprete.

Como autora, mantém este amálgama musical pelo resto do disco, buscando graves gordos da Jamaica, guitarras desérticas, beats artificiais, em que seu surge cada vez mais confiante de si. “Nada Irreal” sobe ao espaço sideral em belos arpeggios digitais, “Fênix do Amor” resume um renascimento artístico ecoando tecnopop, pós-punk e electro, a deliciosa “Rotação” é tão radiofônica quanto experimental. Quase ao fim do disco, “Ocitocina (Charged)”, entrega sua principal influência. É uma canção sobre o parto de seu filho mais novo, cheia de metáforas e analogias que tornam-se evidentes na hora em que ela a batizou com o nome do hormônio liberado pelas gestantes pouco antes de dar a luz. Ela quis capturar a sensação mágica do parto, que joga a mulher para um lugar “fisicamente inexistente, mas sensorialmente real – pra dentro de si mesma”, um lugar imaginário que ela chama brincando de “partolândia” (que quase foi o título da canção).

O disco não foi apenas batizado por Antonino, mas puxado por sua existência. Gerido musicalmente enquanto o filho era gestado, começou a tomar forma logo que o menino nasceu. “Ocitocina” foi a primeira música a tomar forma quando ela começou a pensar no disco, no segundo semestre de 2018, e logo que ela conseguiu o primeiro rascunho de canções, pegou o filho e foi sozinha para Berlim, cidade em que mora Hervé, amigo e um dos produtores do disco, depois de trabalhar várias músicas com o outro produtor, Pupillo, ainda no Brasil. O pouco tempo que ficaram sozinhos – acompanhados do recém-nascido – serviu para consolidar as canções que foram finalizadas no Brasil no início de 2019. O disco termina tão artificial quanto começou, com a dupla Tropkillaz, transformando Céu numa diva dance androide.

APKÁ! parece inofensivo – como um bebê – mas é cheio de camadas de interpretação – como um bebê. “Alpha by night” é um programa de rádio ou uma senha para uma caçada noturna? Quem são os protagonistas de “Pardo”? As faixas de abertura e encerramento são irmãs? “Forçar o Verão” é uma música sobre o momento político atual do Brasil? “Fênix do Amor” é sobre a própria Céu? Ela dá as respostas, nem se importa com elas, só provoca.

Bárbara Eugenia na pista

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A querida Bárbara Eugenia me chamou mais uma vez para escrever um release de seu disco, o dançante e apaixonado Tuda, que consolida a ascensão crescente da discografia da cantora compositora e agora produtora.

“Eu vim, eu vim saudar… Os seres da mata e os seres do mar…”, Bárbara Eugenia canta entre percussões e as vozes das mulheres de seu bloco Pagu – Soledad, Julia Valiengo, Mariana Bastos, Verônica Borges, Bruna Amaro, Thereza Menezes e Isadora Id. “Eu vim, eu vim saudar… Tudo que vem do fogo, da terra, da água e do ar” – o andamento rítmico e o canto circular remetem a uma celebração pagã na floresta, uma grande ciranda solta em meio à mãe natureza, celebrando as virtudes femininas da criação. Mas o ritual de entrada em Tuda, quarto disco da cantora nascida em Niterói que celebra mais de uma década de carreira e de São Paulo, faz o disco surgir no meio do mato para logo em seguida ir para o meio da rua, a pista de dança, a cidade grande, o século 21.

“Perdi” começa o disco propriamente depois de um piano à espreita e logo dá o rumo de Tuda: as programações e guitarra de Dustan Gallas e a bateria eletrônica de Clayton Martin, dois velhos cúmplices da cantora na produção do disco, determinam uma realidade musical sintética que conversa tanto com a moderna música eletrônica quanto com a disco music dos anos 70 e o tecnopop da década seguinte. A canção, composta pelos três, no entanto ecoa um cancioneiro popular brasileiro que é transmitido em rádios de pilha e programas de auditório, uma jovem guarda temporã, com glitter e cílios postiços. Tal musicalidade – retrô e popular ao mesmo tempo – é característica das canções de Bárbara, que encarna a vida noturna e um balanço boêmio em seu novo disco. Logo ela nos conduz para um outro universo, igualmente dançante, mas com pés de chinelo em piso de terra, percussão de samba-reggae (a cargo de Lenis Rino, Thereza Menezes, Zezinho Maracutaia aka Clayton Martin e Isadora Id), guitarras caribenhas (de Davi Bernardo) e calor tropical.

E assim Tuda vai se reinventando a cada faixa, sempre com os pés na pista de dança e o coração apaixonado. “As Maçãs Que Vêm” é o mais próximo que o disco tem de uma balada e parece mudar mais uma vez o percurso, mas o andamento latino logo chega, reúne os mesmos músicos (Davi, Dustan, Clayton e Lenis) aos synths de Cris Botarelli (do Far from Alaska) para deslizar em uma rumba apaixonante – e de tons psicodélicos. “Tantas luzes, cores, tudo brilha, pulsa, integra no ar / Era entrega e era tuda, eu era o todo e era nada”, canta enquanto move lentamente o quadril, “Na minha cabeça, seja lá o que for, faz todo sentido / Meu corpo está ardendo, será que é do sol? Ou será que ardo eu?” O ardor latino esquenta ainda mais na balada “Sol de Verano”, composição brasileira de Carlos Colla e Luís Alberto Ferri vertida para o espanhol Luis Gómez Escolar para o repertório do disco Reluz que a cantora anglo-
espanhola Jeanette lançou em 1983, uma balada dançante e caliente em que Bárbara recebe outros velhos amigos, o baixista Jesus Sanchez e o tecladista Astronauta Pinguim.

Em “Bagunça”, ela aproxima os extremos mostrados no disco: a latinidade bailante, a disco music retrô e quase robótica, as melodias do inerente pop oitentista – tudo se funde no dueto e parceria com Zeca Baleiro, que ainda conta com um solo de sax rasgadamente vintage por conta de Filipe Nader. Ela segue desconstruindo a própria fórmula numa faixa com três partes: “Querência” começa com os pés na pista do reggaeton para depois cair numa aldeia vodu (com vocalizes de Iara Rennó) e mais à frente deixar o grave cair pesado – para logo suspender a gravidade e voltar à pista retrô eletrônica. A expectativa mais uma vez dá uma volta quando o grupo argentino Onda Vaga surge no disco para cantar “Por La Luz y Por Tierra”, um número acústico. O bloco latino termina com a participação do guitarrista paraense Felipe Cordeiro, que trouxe o DJ Tide para temperar com bases eletrônicas o carimbó caribenho “Confusão”.

O disco vai chegando ao fim com a inquieta “Apaixonada Feito Gente Não”, que resume os sentimentos do disco ao se dividir em duas partes. “Foi além do que eu podia imaginar, você chegou e eu quase perdi os sentidos”, ela canta pensativa no início da canção, longe do calor da festa. “foi além do que eu podia esperar, eu nunca esperei por nada, não esperava você chegar e me tocar assim”. Logo depois cede à dança e vai direto ao assunto: “Você me viciou
na tua pele”, canta.

Tuda enfim termina com “Eu Vim Saudar”, faixa de despedida que, apesar de eletrônica (composta por Clayton, com ajuda de Bárbara e Dustan) mantém a mesma vibração de “Saudação” que abre o disco. Juntas, estas duas minicanções parecem ser exatamente opostas ao que Tudase propõe, mantras de introdução e encerramento que reforçam uma orientação pessoal recente de Bárbara, cada vez mais mística e espiritualmente centrada, e brincam com a expectativa do ouvinte. Mas a conversa entre as duas reforça o equilíbrio do disco, e dança apaixonada com uma sabedoria ancestral: “E eu só vou fazer, daqui pra frente, o que me faz bem”.

Clima de sonho

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Yma me convidou para escrever o texto de apresentação de seu belo disco de estreia, Par de Olhos, lançado nesta sexta-feira, uma viagem onírica que fica entre a psicodelia noir, o vintage anos 80 e um certo ar de mistério.

Uma guitarra torta rasga o horizonte como um raio em câmera lenta numa noite fria – mas não há sinal de chuva. Bateria e baixo marcam o andamento, ponteado por outra guitarra, à espreita, dedilhada, como se soubesse de algo que não podemos saber. É uma canção dos anos 80 e também é uma viagem de carro à noite, o vento batendo no rosto enquanto mistura camadas de emoções num mesmo bloco de sentimentos. “Seus olhos no escuro, dançando pelo avesso, as paredes se derretem devagar”, a doce voz de Yma sussurra a melodia principal desta introdução, acrescentando uma inusitada psicodelia noir àquela cena. Não há estrada nem horizonte, apenas um quarto no escuro e todo o imaginário evocado pela canção é ilusão. “Tenho medo de você evaporar”, ela canta na introdução deste primeiro disco, “Par de Olhos”, lançado bem no começo de 2019, deixando claro que estamos entrando num território onírico.

O disco de estreia da cantora e compositora paulistana começa de verdade na segunda faixa, que batiza o álbum. Todos os elementos que formam a dissimulada vinheta “Evaporar” se realinham criando uma atmosfera completamente diferente, que mantém-se moderna e retrô sem medo da contradição. A psicodelia noir, o romantismo anos 80, a guitarra dedilhada, o ar de fantasia, o baixo e a bateria de uma canção de amor – e até a guitarra de um dos convidados, o líder do Cidadão Instigado Fernando Catatau. A canção “Par de Olhos” brinca com o flerte para hipnotizar o ouvinte rumo a um território estranho e familiar, impreciso e reconfortante, como um predador que encanta a presa para que ela não perceba o que está para acontecer.

O clima de sonho é determinante para este primeiro registro de Yma. “Há uma exploração do universo onírico, em que eu uso os mecanismos do mundo dos sonhos para distorcer – e dar graça – às situações cotidianas que me inspiram a escrever”, explica. “O mistério sempre me instigou, e por mais que tenhamos o sentido da visão, acredito não sermos capaz de enxergar tudo que está à nossa volta. Gosto de interpretar as lacunas do que está por trás da vista imediata, buscar o imaterial. Talvez esta seja a melhor definição de Par de Olhos, essa tentativa de investigar os cantos escuros da realidade”.

O disco continua com a já conhecida “Vampiro”, uma das três faixas que Yma já havia lançado antes deste primeiro registro oficial. O ar de estranheza melancólica desta canção apresentou-a a um público maior, transformando-a em hit online, que ainda emplacou “Sabiá” e “Summer Lover” (que não estão no álbum), criando um pequeno séquito de fãs que a acompanha para onde for. Apesar das referências oitentista e do ar retrô (ou talvez justamente por isso), seu público é majoritariamente adolescente, que encontra-se na doce rebeldia de suas letras “Acho até que eu perdi o meu caminho e eu não quero voltar, porque aqui eu sou normal”, canta entre a inocência e o blasé, “vamos fugir junto que o tempo é curto e eu não quero mais morrer, eu quero dançar com você…”

Produzido por Fernando Rischbieter, que também é guitarrista, toca teclados e dirige musicalmente o trabalho ao lado de Yma, Par de Olhos conta com uma banda formada por Uiu Lopes no baixo, Dreg na guitarra, Leon nos synths e Marco Trintinalha na bateria, além de synths da própria vocalista e compositora e participações de músicos como Gustavo Ruiz, Zé Ruivo, Gongom, João Antunes e Elísio Freitas. Nascida em São Paulo, a cantora e compositora tem formação erudita, mas sua queda pelo pop a trouxe para este universo musical fluido, que segue em outras paragens musicais, misturando sempre a sensação de familiaridade com a de vazio e costura existencialismos que se refletem em canções que vão da pista de dança (“Shake It”) à praia (“Sun and Soul”, um dueto delicioso com o vocalista Lau, do grupo Lau e Eu), do cemitério (“Colapso Invisível”) ao espaço sideral (“Nowhere Here”), encerrando com a absorta “Pequenos Rios”, composta ao lado de César Lacerda. “As luzes da cidade que cobrem essa noite, eu quero te levar comigo”, ela segue cantando, lembrando que tudo é ilusão, “as sombras nas paredes, os passos em silêncio, eu quero te guardar comigo”.