Twin Peaks, um revival histórico

, por Alexandre Matias

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Escrevi lá no meu blog no UOL como, mesmo antes do final da nova temporada de Twin Peaks, a série de David Lynch e Mark Frost se consagrou como um ícone cultural de 2017.

Mesmo antes de serem exibidas na virada deste domingo para a segunda-feira, as duas últimas partes de Twin Peaks: O Retorno, a terceira temporada do seriado idealizado e produzido por David Lynch e Mark Frost, já fazem deste último episódio um marco histórico. É o fim de uma aventura radical de pop experimental que os dois conseguiram que fosse bancada por uma emissora de TV, desafiando todos os clichês de sua volta (incluindo sua base de fãs mais ferrenha) para contar uma história que não parece fazer sentido e tentando reunir e explicar todas as dúvidas abertas (abrindo outras tantas). Como a vida, parecem sublinhar seus autores.

O fato é que a volta de Twin Peaks mostrou que a dupla forjada há mais de 25 anos pode executar o final de uma história interrompida pela metade com uma maestria ímpar na história da arte e do entretenimento moderno. Enquanto Mark Frost costurava pontas soltas no roteiro nas duas primeiras temporadas e no filme Os Últimos Dias de Laura Palmer e abria outras possibilidades ao criar novos personagens, locações e situações, David Lynch expandia seu subconsciente criando imagens e cenas inacreditáveis, bizarras e antológicas. Entre o normal e o surreal, a dupla repete o feito que há um quarto de século moldou a televisão como a conhecemos hoje atualizando uma série de paradigmas cutucados décadas atrás: a regência de expectativas, a condução do zeitgeist, um retrato atual dos EUA, conceitos como paranoia, conspiração e sobrenatural, a estética para a cultura de seu tempo e as fronteiras entre o cinema, a televisão e outras formas de experimentação audiovisual.

David Lynch e Mark Frost cobraram caro dos fãs que queriam apenas o revival. Todos esperavam o momento em que o agente Cooper voltasse a tomar seu café com suas assertivas improváveis mas sensatas sobre o que deveria ser feito. Em vez disso, assistimos a Kyle MacLachlan desdobrar seu personagem mais clássico em personalidades múltiplas, prendendo-se a dois extremos em atuações magníficas: uma versão maligna e sobrehumana batizada de Mr. C e uma versão infantilizada e tenra chamada de Dougie Jones. O pulso entre essas duas personalidades deu o tom sobre toda a série e fez os fãs de ocasião abandonarem o seriado enquanto os espectadores restantes teimavam em se perguntar, entre maravilhados e surpresos, o que diabos estava acontecendo.

E, como disse o gigante ao agente Cooper na segunda temporada, está acontecendo de novo. Twin Peaks está prestes a encerrar sua viagem de forma épica e gloriosa, correndo o risco de responder à maioria de suas questões e revolucionando mais uma vez a televisão para, quem sabe, dar brecha para uma quarta temporada. A partir daqui o texto contém spoilers para quem não assistiu até o décimo sexto episódio da terceira safra da série, disponível no Netflix brasileiro.

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“Passado ou futuro?”, nos pergunta Mike, a entidade de um braço só que foi instrumental em retirar o agente Cooper de seu exílio sobrenatural nos últimos 25 anos no segundo episódio deste ano. Talvez essa seja a principal chave para toda a terceira temporada – estamos assistindo a cenas que aconteceram em ordem diferente das que elas aparecem na tela. A ordem cronológica dos acontecimentos está embaralhada para quem assiste à série capítulo por capítulo, reforçando a ideia de seus criadores de que estamos assistindo a um filme de dezoito horas – e não a uma novela explicada em uma narrativa linear.

Uma das primeiras cenas da nova temporada, quando Cooper se reencontra com o Gigante que vem servindo de guia para sua intuição desde sua primeira ida a Twin Peaks, dá a entender que estamos frente a uma série de dicas que deveriam ser decifradas nos capítulos seguintes: “Ouça os sons. Algumas coisas não podem ser ditas em voz alta. Lembre-se: Quatro, três, zero. Richard e Linda. Dois pássaros com uma pedra.” Cooper apenas responde que entende. Os fãs passaram horas tentando descobrir quem eram aqueles dois (Richard já apareceu e desapareceu, mas nada da Linda), caçando números entre horas e relação entre outros que apareciam ou eram ditos na tela, prestando atenção em sons que saíam das paredes e de tomadas elétricas e tentando adivinhar quais eram as duas aves mortas com uma só pedrada.

Mas nada garante que essa cena seja a primeira cena da série. E a realização sobre essa possibilidade veio aparecendo à medida em que a cronologia passava a ser montada como um quebra-cabeças a partir de datas em fichas policiais, calendários de eventos fantásticos, mensagens de SMS e interrelação entre cenas distantes. Em vez de recomeçar Twin Peaks na pequena cidadezinha fictícia no estado norte-americano de Washington, Frost e Lynch preferiram espalhar sua história por todos os EUA: um portal interdimensional em uma caixa de vidro sob vigília mantida por um bilionário em Nova York, um cassino em Las Vegas, um assassinato em outra cidadezinha fictícia, Buckhorn, no estado de Dakota do Sul, uma bomba atômica que explodiu no Novo México, em autoestradas e ruas escuras que cruzam o país e até Paris, num sonho.

A própria Twin Peaks foi sendo revisitada esporadicamente, nos apresentando velhos personagens aos poucos, enquanto citava outros novos sem mostrar seus rostos. Enquanto uns reapareciam em novos formatos (o anão Homem do Outro Lado foi substituído por um galho de árvore com um pedaço de carne no topo, o agente Philip Jeffreys vivido por David Bowie reapareceu como uma chaleira gigante), outros levavam horas para aparecer – especificamente a Audrey vivida por Sherilyn Fenn -, uns vieram do além-túmulo (como o Dr. Will Hayward vivido por Warren Frost, a Log Lady vivida por Catherine Coulson, o agente Albert vivido por Miguel Ferrer, que morreram após suas participações na série), outros em flashbacks (como o próprio Bowie, o Bob de Frank Silva e o major Garland Briggs vivido por Don S. Davis) e ainda há os que não apareceram ainda, como o agente Chester Desmond (vivido pelo cantor Chris Isaak) e o xerife Truman (vivido pelo ator Michael Ontkean).

Este quebra-cabeças foi sendo montado à medida em que os agentes do FBI liderados por Gordon Cole (vivido pelo próprio David Lynch, em uma atuação soberba) foram descobrindo que as pistas do assassinato em Buckhorn e a reaparição do agente Cooper em uma prisão federal aos poucos os levava para Twin Peaks. Ao mesmo tempo, assistíamos à lenta – e dolorosa, para alguns fãs – recuperação da personalidade do Cooper original de dentro do corpo de Dougie Jones e sua conexão com os ótimos irmãos Mitchum (dois gângsters vividos por Jim Belushi e Robert Knepper) e à polícia de Twin Peaks descobrindo que fatos surpreendentes aconteceriam nos dias primeiro e dois de outubro.

Além do estranho dia-a-dia na própria Twin Peaks, incluindo aí as aparições no Roadhouse, que, ao que tudo indica, transformou-se em um lugar sobrenatural. A casa de shows, que foi cenário para apresentações de artistas nada fictícios como Au Revoir Simone, Sharon Van Etten, Nine Inch Nails, Moby (como figurante em uma banda), Chromatics, Eddie Vedder e Hudson Mohawke e de conversas sobre personagens que nunca apareceram na tela durante toda a temporada, subitamente virou uma espécie de alucinação da personagem Audrey no último segundo do episódio mais recente.

Há inúmeras questões em aberto: O que é o som que o Gigante pede para Cooper ouvir no gramofone? O que Laura Palmer disse no ouvido do agente Cooper? Onde está a verdadeira Diane? Quem é Tina? Onde está Audrey? Bob saiu do corpo do Agente Cooper? O que fez Hawk na entrada do Black Lodge? Por que Sarah Palmer assiste àqueles programas na TV? E que tantas referências são essas a histórias infantis? Mais alguém é uma tulpa? O que Lucy viu na visão de Andy? Quem é a viciada que mora perto da casa de Dougie? Que barulho é aquele no Grand Nothern? Quem é Billy? O que é aquele símbolo estranho? O que são os Woodsman? Quem é Linda? Quem é o marido de Beverly? Como Gordon viu Laura Palmer? Por que Albert fala cada vez menos? E aquela caixa na Argentina que recebe mensagens? Quem é Judy? O que Gordon ouve no limpador de janelas? E aquela menina zumbi? E aquele sapo com asas de besouro? E aqueles números nos postes? Por que o Gigante chama-se Bombeiro? Gordon Cole está percebendo vibrações de outras dimensões? Qual a diferença de um doppelganger de uma tulpa? Quem vai tomar um soco de Freddie? Como Laura Palmer desapareceu? Quem é Naido? “Quando você chegar lá você já vai ter chegado lá”? E a alma da criança voando? Quem é Charlie? E aquele truque que Red fez com a moeda? Há alguma relação entre a luta de boxe que Sarah assiste com o passado de Bushnell? O que vai acontecer com Chad? O que acontecerá com Janey-E e Sonny Jim? Quem ressuscitou o Bad Cooper? Como o Bad Cooper mexeu no sistema de eletricidade da cadeia? Quem é a Senhorita Dido? Sarah Palmer está possuida pela Mãe? Onde está Jerry? Quem será a última banda a tocar no Roadhouse? Quem é o sonhador?

Enquanto isso, Lynch e Frost aproveitavam para fazer um retrato dos EUA em 2017 como poucos ousaram fazer – ainda mais nesta era Trump. Um bom exemplo é a cena em que o policial Bobby Briggs (Dana Ashbrook) vai à rua após o início de um tiroteio e choca-se ao perceber que era uma criança com uma arma na mão, vestindo roupas camufladas e com a mesma cara de tédio – e não de susto ou de aborrecimento, como deveríamos esperar – do pai. Atrás do carro que causou o incidente, uma senhora buzina e briga agressivamente para o carro da frente, apenas para assistirmos uma criança babando vômito erguer-se lenta como uma morta-viva no banco do carona. É uma cena aparentemente aleatória, mas denuncia uma sociedade doente em vários níveis. Outras cenas do tipo assistem aos irmãos Mitchum reclamando do estresse de uma vizinhança após outro tiroteio (uma homenagem quase literal a Quentin Tarantino, enquanto eles mesmos estão ironicamente com armas na mão), Janey-E (vivida magistralmente por Naomi Watts) passando um sabão em dois matadores de aluguel, Norma (vivida por Peggy Lipton) desistindo de ganhar “muito dinheiro” ao não transformar seu restaurante em uma franquia e aceitar seu grande amor – Twin Peaks vai diagnosticando os problemas norte-americanos como se contasse histórias curiosas sobre a decadência de uma sociedade.

Para quem não assiste à série, a impressão é que tudo é uma bagunça e que nada será respondido – mas o ponto é justamente o oposto. Eram muitas outras perguntas e parte delas foi sendo respondida à medida em que a série caminhava. Mais do que isso: depois de negar todas as referências à Twin Peaks original, seus criadores aos poucos foram entregando o ouro para os fãs mais persistentes, mostrando exatamente o que os fãs queriam assistir em um remake mas de forma menos óbvia e trivial. O episódio 16, exibido na semana passada, foi repleto destes momentos, culminando com o grandioso renascimento do Agente Cooper. Isso sem contar o revolucionário episódio 8, que parecia completamente alheio à história mas que funcionou como um mapa para entender o panorama geral da série.

Tudo indica que é isso que irá acontecer nos dois últimos episódios, que serão exibidos no fim deste domingo nos EUA e que em pouco tempo estará no Netflix brasileiro. Pouquíssimo se sabe sobre estes dois momentos e a principal dica é que cada um destes episódios tem um título (o 17 chama-se “O Passado Dita o Futuro” e o 18 chama-se “Qual Seu Nome?”), o que acaba com a expectativa sobre um longo episódio de duas horas, como se fosse um filme. Meus palpites? Linda é irmã-gêmea de Richard, Judy é o major Briggs, há uma relação entre Diane e Naido, Audrey é a sonhadora e dois grandes acontecimentos devem acontecer no Jack Rabbit’s Palace e na cadeia da delegacia de Twin Peaks, além de algo me dizer que só assim entenderemos a cena de abertura. Mas isso tudo é irrelevante. Mesmo com o fim da temporada, ao descobrirmos quais quais perguntas foram realmente respondidas e quais eram irrelevantes, a importância do seriado não precisa ser provada.

Em menos de dezoito episódios Twin Peaks fugiu de clichês, provocou intelectualmente seus espectadores, dissecou a própria mitologia e nos apresentou novos ícones, arriscou-se sempre que possível e sempre abrindo mão de recursos cosméticos como efeitos especiais, maquiagem ou trilha sonora didática, que funcionam hoje como carro-chefe comercial para a maioria das produções audiovisuais, para manter seu foco no texto, nas cenas, na direção, no roteiro e na atuação. Lynch e Frost deram as costas para o óbvio e puxaram o telespectador para um salto estético e narrativo que já serve como referência para criações futuras. Mesmo sem atingir altos índices de audiência, a terceira temporada de Twin Peaks é um dos produtos de entretenimento mais bem sucedidos deste ano e um desafio artístico incomensurável, além de ser o melhor seriado deste século mesmo sem ter terminado ainda. E será que ele termina? Afinal esta talvez seja a grande questão deste season finale: teremos uma quarta temporada?

Torço que sim, pois o melhor de tudo é a viagem, não o destino. Como disse no início, entender é o de menos.

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