Tudo Tanto #32: Kiko Dinucci

, por Alexandre Matias

cortescurtos

O assunto da minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos no mês de maio foi a trajetória de Kiko Dinucci até o lançamento de seu primeiro disco solo, Cortes Curtos – antes disso, os vídeos que fiz do lançamento do disco no Sesc Pompeia:

Ninguém disse que ia ser fácil

O primeiro som que se ouve é uma frequência elétrica distorcida, a microfonia de uma guitarra posta em primeiro plano como um manifesto, parede de ruído intensa e palpá- vel, que se estica por alguns dez segundos antes do ritmo começar — primeiro pela repetição de um riff entrecortado, depois pela entrada da frenética guitarra base, seguido pelo galope torto do baixo junto com a bateria e finalmente com a entrada dos vocais sincopados, agudos e agressivos de Tulipa Ruiz e Juçara Marçal. De repente, a música para — e o dono do disco entoa uma melodia acompanhado nota a nota por seu instrumento, a guitarra.

“No escuro, no escuro / Uma pedra vira um muro.” As primeiras palavras ditas por Kiko Dinucci em seu primeiro disco solo, Cortes Curtos, lançado por conta própria no início deste ano, resumem a tensão política, urbana e estética contida não apenas nesta obra, mas em toda sua carreira musical. Na verdade, antes mesmo da entrada da voz, o primeiro som emitido pelo disco já sintetiza a natureza de sua musicalidade: agressiva, suja, elétrica e feroz. A sonoridade encarnada por Kiko e sua guitarra não é apenas uma assinatura sonora, mas uma mão que esmurra a mesa antes de virá-la, uma carta de intenções que vai muito além do som. Ninguém disse que ia ser fácil.

Kiko é a arma secreta do grupo de músicos que começou a causar na cena de São Paulo na virada da primeira para a segunda década do século. Referido como nova vanguarda paulista, samba sujo ou Clube da Encruza, o grupo formado por Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Rômulo Froes, Thiago França, Sergio Machado, Marcelo Cabral e o próprio Kiko Dinucci, desdobra-se em grupos como Sambanzo, Metá Metá, Passo Torto e Sambas do Absurdo, além de reunir agregados como Tulipa Ruiz, Ava Rocha, Ná Ozzetti, Gui Amabis, eventuais parceiros e as carreiras solo de cada um de seus integrantes. Membro mais prolífico da turma, Kiko, no entanto, nunca tinha lançado um disco solo — embora já somasse quase duas dezenas de discos em que participou, em dez anos de carreira ininterrupta.

Uma trajetória que começou no apertado Ó do Borogodó, tradicional bar de samba entre a Vila Madalena e o bairro de Pinheiros, em São Paulo, quando começou sua carreira fonográfica liderando o Bando Afromacarrônico com o disco Pastiche Nagô, de 2008 (relançado em vinil no ano passado, pelo selo Marafo Records). O Kiko sambista já era uma reinvenção do primeiro Kiko musical, o Kiko punk, que traduzia o cinza e os pixos da São Paulo da virada do século com a mesma virulência e poluição de sua cidade natal. Ao descobrir a natureza marginal do samba paulistano, ele aos poucos foi dominando esta nova linguagem e a partir do Bando Macarrônico começou a aproximá-las.

Cortes Curtos é o ápice dessa junção — e por isso mesmo o disco que assina sozinho. Embora toda a turma esteja presente — a banda base é Kiko, o baixo de Marcelo Cabral e a bateria de Sergio Machado, a mesma cozinha do Metá Metá, e pelos créditos surgem vários nomes conhecidos, como Tulipa, Juçara, Ná, Thiago e Rodrigo, além de novos agregados como Guilherme Held, Suzana Salles, Rafa Barreto e Guilherme Valerio —, o disco é uma obra inteira de Kiko. E é mais do que uma obra apenas visual — é um filme sonoro.

As referências vão além do título, tradução literal de Short Cuts — Retratos da Vida, o filme multifacetado de 1993 em que Robert Altman fez as pazes com Hollywood. Cortes Curtos reúne, em suas canções, uma série de cenas que flagram humores diferentes, todos paulistanos. Da melancolia ao escracho, da putaria à solidão, das ruas cheias de transeuntes às calçadas vazias da noite, o disco perambula por São Paulo como faz o próprio Kiko, um flaneur pessimista, um vagabundo desconfiado, um punk niilista, capturando uma fauna bizarra de emoções e personagens que parecem ainda mais estranhos quando observados isoladamente — mas que integram um paisagem ao mesmo tempo pesada e invisível, o mosaico cinzento que forma São Paulo, “terra de um beijo só”, como cantarola o verso da poetisa Anna Zepa que batiza a faixa de mesmo nome.

A natureza cinematográfica do disco não é acidental, afinal Kiko já tem dois longa-metragens nas costas, entre eles a ode aos cinemas de rua Breve Em Nenhum Cinema, de 2016, além de manter o blog cinéfilo O Olho Derramado, que atualiza de forma bissexta, mas que contrapõe textos sobre O Iluminado de Kubrick, o Melancolia de Lars Von Trier, Branco Sai, Preto Fica de Adirley Queirós e O Som Ao Redor de Kleber Mendonça Filho.

A referência à sétima arte também é parte da construção do cânone paulistano pessoal de Kiko, que junta os sambistas da velha guarda (como Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Adoniran Barbosa) a cronistas clássicos do submundo da cidade (como o dramaturgo Plinio Marcos, o músico Itamar Assumpção, o escritor João Antônio), cineastas da Boca do Lixo e do cinema Marginal (Carlos Reichenbach, Luiz Castelini, Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Andrea Tonacci, Walter Hugo Khouri) e o punk rock e o hardcore local (de bandas como Ratos de Porão, Olho Seco e Cólera, entre outros), a vanguarda do Lira Paulistana (Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé, Língua de Trapo, Rumo, Itamar, Premeditando o Breque e Cida Moreira) e sua própria geração. Tudo se encontra em Cortes Curtos.

Que, ao contrário do que se poderia supor, foi apresentado ao público como um único take, tanto na versão para download em seu site www.kikodinucci.com.br, como em sua versão no YouTube. Nos dois formatos só é possível ouvir as quinze faixas que compõem o disco de uma vez só. Se você quiser pular as faixas, deve comprar a versão em CD. Ninguém falou que seria fácil.

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