Tudo Tanto #020: Donato Elétrico

, por Alexandre Matias

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Mais uma edição de minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos que republico atrasado por aqui, esta é sobre o novo disco de João Donato, que pude ver ao vivo no começo do ano (e os vídeos vêm a seguir). A coluna saiu na edição de abril.

De volta à eletricidade
João Donato volta ao vigor de seus anos 70 com o disco Donato Elétrico

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João Donato aceitou o convite de Ronaldo Evangelista para voltar à eletricidade. O jornalista – meu amigo pessoal, não preciso esconder isso – já vinha apontando sua transição do texto para o estúdio ao se propor o desafio de transformar seu projeto Goma Laca – em que artistas recriavam pérolas esquecidas da música brasileira que só foram registradas em compactos de 78 rotações – em um disco. Sua primeira produção reuniu nomes de peso como Karina Buhr, Lucas Santtana, Russo Passapusso e Juçara Marçal para recriar músicas com quase um século de idade. O próximo estágio seria produzir um disco de um único artista e aproveitou a aproximação com Donato para fazer sua estréia como produtor em grande estilo.

Foi um lento processo de convencimento, sem pressa nem pressão, bem ao estilo do velho músico. Donato é destes alicerces da música brasileira que poucos prestam a devida atenção – ele se adequa à expressão inglesa que o qualifica como um “musician’s musician”, um músico apreciado mais por outros músicos do que pelo grande público, não sem razão. Mestre da suavidade e do sossego, é uma das claras inspirações da bossa nova, tendo influenciado tanto João Gilberto quanto Tom Jobim quando estes ainda começavam suas carreiras. Depois teceu uma carreira paralela entre o Brasil e o exterior, levando a música brasileira embalada a uma latinidade própria sua, que foi desenvolvendo e curtindo com o passar dos anos.

O primeiro disco de inéditas de João Donato deste século começou com um acerto de contas com o passado, quando Ronaldo conseguiu uma boa desculpa para fazer o músico voltar aos instrumentos elétricos, essência de sua sequência de discos clássicos dos anos 1970. Descobriu que o disco Quem é Quem, lançado em 1973, não teve um show de lançamento de fato e resolveu aproveitar o aniversário do disco para finalmente lançá-lo. Para isso cercou-o dos músicos do grupo paulistano Bixiga 70 e convocou amigos do arranjador para subir ao palco – além do veterano compadre Marcos Valle, que produziu o disco original, também chamou as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar para cantar os clássicos do disco do mestre, que incluem canções como “A Rã”, “Cala Boca Menino”, “Me Deixa”, “Amazonas” e “Cadê Jodel?” No ritmo de Donato, o show só foi acontecer no início de 2014, em duas apresentações emocionantes no Sesc Pinheiros.

Era o primeiro passo para uma impressionante aproximação entre o buda do groove brasileiro e a fina flor da nova música instrumental brasileira. Além de músicos do Bixiga, que incluem o baterista Décio 7, o baixista Marcelo Dworeck, os guitarristas Cris Scabello e Maurício Fleury (que também toca teclado no Bixiga mas preferiu não chegar perto do instrumento do mestre), o naipe de metais formado por Cuca Ferreira (sax e flautim), Daniel Nogueira (sax), Douglas Antunes (trombone) e Daniel Gralha (trompete) e os percussionistas Rômulo Nardes e Gustavo Cecci, o disco contou com outras presenças de peso, como o baterista Bruno Buarque (que tocava com a Céu e hoje toca com Anelis Assumpção), o saxofonista Anderson Quevedo, os percussionistas Mauro Refosco e Guilherme Kastrup (este idealizador do disco mais recente de Elza Soares, Mulher do Fim do Mundo), o guitarrista Gustavo Ruiz (irmão de Tulipa, que toca com ela), o trombonista Richard Fermino, o vibrafonista Beto Montag e o baixista Zé Nigro (que toca com Curumin) e um quarteto de cordas formado por Aramís Rocha, Robson Rocha, Daniel Pires e Renato de Sá, que em uma das músicas seguiu os arranjos de Marcelo Cabral, baixista que toca com Criolo e com o Metá Metá.

Chamado de Donato Elétrico, o disco foi gravado no ano passado no bunker do Bixiga, o estúdio Traquitana que sedia as sessões de alquimia musical do coletivo paulistano de groovezeira, localizado no bairro que batiza o grupo, mas só viu a luz do dia no início deste ano. É um inevitável reencontro de Donato não apenas com instrumentos que havia deixado de lado – teclados Rhodes, Farfisa, Clavinet e até um Moog – mas com uma espontaneidade que solta faíscas. Há a clara vibração de discos como A Bad Donato, Quem é Quem e o clássico Donato/Deodato, em que encontrou-se com outro monstro maestro brasileiro, Eumir Deodato. Mas ela tem uma luz mais clara que a daqueles discos, que são propriamente carregados. O novo disco não é parte de uma evolução natural de sua musicalidade como aconteceu nos anos 70 e sim um reencontro com uma essência jovem que talvez tivesse dada como perdida. Donato vinha tranquilamente apresentando-se ao lado de um baixista acústico e um baterista, quando muito chamando uma vocalista ao encontro, e de repente viu-se cercado de músicos com sangue nos olhos, secos para deitar e rolar ao lado do mestre. João, envolto em sua tradicional névoa branca, com seus bonés e tênis coloridos escancarava o sorriso nas apresentações ao vivo com o grupo de novos músicos, alheio aos seus mais de oitenta anos de idade.

Pude vê-lo em ação duas vezes nesta nova fase. Uma delas, no ano passado, tocando para pouquíssimos num palco menor daquele shopping center chamado Rock in Rio, pérolas aos porcos que esperavam na fila para cantar no karaokê de uma marca de refrigerante. Em outra, no lançamento do disco, toda a choperia do Sesc Pompeia lotada, reverenciava o encontro do mestre com os pupilos. Em ambas apresentações, em dado momento Donato levantava-se do banquinho de trás dos teclados e brincava com os botões dos sintetizadores, explorando efeitos, transformando melodia em ritmo, claramente divertindo-se e divertindo o público.

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