Cacá Machado + Laura Lavieri: “Um samba feito só pra mim”

É neste sábado a estreia do espetáculo Melhor do que o Silêncio, em que Cacá Machado e Laura Lavieri reúnem-se para celebrar o repertório de um dos principais discos de João Gilberto, seu “álbum branco”, gravado em 1973. A apresentação acontece na Casa de Francisca, no dia 11 de novembro, e conta com a participação do percussionista Igor Caracas. No vídeo, os três mostram a versão que fizeram para “Eu Quero um Samba” de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, que abre o lado B do vinil. Assino a direção executiva do espetáculo, que ainda conta com a direção de arte de Amanda Dafoe e a produção do Guto Ruocco, da Circus. Os ingressos estão quase no fim e podem ser comprados neste link.

Assista a um trecho abaixo:  

Abertura dionisíaca

“A palavra é pra ser esquecida, a sensação é que fica”. Maravilhosa a estreia da temporada Prémistura que Chicão Montorfano promoveu nesta segunda-feira no Centro da Terra, ao dar mais detalhes de seu primeiro disco (Mistura, que terá seu primeiro terço lançado ainda este ano, e que foi gravado há inacreditáveis quinze anos), mostrando suas canções inéditas ao lado da cantora e percussionista Marcela Sgavioli, além de conectar-se com sua verve teatral ao invocar o mestre Zé Celso Martinez Corrêa exatos quatro meses após sua passagem ao relembrar das Bacantes que fez a direção musical ao lado da cantora Letícia Coura. Foi a primeira vez que mostrou suas belíssimas canções em público, em dueto com sua companheira Marcela – e que voz maravilhosa que ela tem! Também foi a primeira vez que tocou violão num teatro, quando puxou uma sequência de composições nascidas durante a pandemia que rotulou de “bossas novas bad”. A apresentação expandiu sua natureza musical e passou a ganhar contornos teatrais com a entrada de Coura, empunhando seu cavaquinho e sua voz igualmente maravilhosa, e colocando coroas de louros no palco – e no público. Logo estávamos em terreno dionisíaco de uma peça escrita 700 anos antes de Cristo e mexendo com nossas sensações como faz há milênios – incluindo no fantástico final abrupto que esfregou em nossa cara o papel da arte. Uma noite ímpar.

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Ney Matogrosso e um piano

Ney Matogrosso acompanhado apenas de um piano. Essa única frase resume todas as sensações que quem esteve no Sesc Pinheiros nessa sexta-feira pode experimentar, afinal de contas se a voz e a presença de Ney é um acontecimento em qualquer situação cênica, colocá-las à luz de um único instrumento reforça o intimismo quase microscópico com um dos maiores nomes de nossa cultura. O show surgiu como parte do último grande esforço promovido pelo saudoso Danilo Miranda, o sujeito que transformou São Paulo usando cultura e, ao fazer isso, repaginou a vida cultural de todo o Brasil ao transformar o Sesc em uma máquina de arte. Antes do apagar das luzes da noite,´fomos recebidos por um retrato do homem Sesc falecido no início da semana com uma frase que agradecia pela “construção de um legado inspirador”, saudação que motivou aplausos espontâneos logo que o público se acomodou, as luzes foram desligadas e apenas o telão iluminava a audiência, que começou a salva de palmas no mesmo instante. Danilo promoveu uma série de eventos com artistas mais velhos em diversas unidades do Sesc para comemorar os 60 anos do programa Trabalho Social com a Pessoa Idosa promovido pela instituição. O primeiro evento desta série que começou em setembro foi um debate que contou com as presenças de Fernanda Montenegro, Ignácio de Loyola Brandão, Zezé Mota, Marika Gidali e o próprio Danilo, finalizando com a tal apresentação de Ney acompanhado apenas de um pianista. O que deveria ser só um show comemorativo para uma ocasião caiu no gosto do intérprete, que resolveu fazer mais destes. Acompanhado do ótimo – virtuoso e discreto – Leandro Braga, Ney passeou por seu próprio repertório, que também é uma amostra do melhor da canção brasileira, em versões deslumbrantes para Marina Lima (“Nada Por Mim”), Noel Rosa (“Último Desejo”), Cartola (“Sim”), Jacob do Bandolim (“Doce de Coco”), Roberto Carlos (“A Distância”), Frejat e Cazuza (“Poema”), Caetano Veloso (“Ela e Eu” e “Sorte”) e Mutantes (“Balada do Louco”), além de relíquias específicas de nossa canção como a provocante “Amendoim Torradinho” de Henrique Beltrão e a sensual “Da Cor do Pecado” de Bororó e duas jóias dos Secos e Molhados (“Fala” e “Rosa de Hiroshima”, ambas de arrepiar). Com figurino preto coberto com um blazer florido, ele quase não falou com o público nem conversou entre as canções e ainda pinçou uma música inédita em seu repertório, a deliciosa “Rua, Na Chuva, Na Fazenda”, de Hyldon, transformando a sequência de faixas em uma tela impressionista sobre nosso cancioneiro, conduzido pelo timbre único de um de nossos maiores intérpretes. Uma apresentação avassaladora, se tiver a oportunidade de vê-la, não pense duas vezes.

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Sessão atordoo

O Inferninho dessa quinta-feira foi uma sessão atordoo vindo de dois lugares extremos do ruído. A noite começou com o show inacreditável do Monch Monch, overdose de barulho elétrico concentrado e atirado em cima da plateia num ventilador de sujeira, caos cavalgado pelo carisma irrefreável do mentor da bagaça, Lucas Monch, despedindo-se do Brasil antes de embarcar numa temporada sem passagem de volta pra Portugal – e de lá vai saber pra onde. Depois veio a versão quarteto do Test – o QuarTest – e se Barata e João sozinhos já cimentavam uma parede de som extremo apenas com guitarra, vocal e batera ouvido adentro, juntos do Berna no baixo e do Sarine na percussão criavam duas novas camadas de densidade pra apresentação, cada um deles frequência sonora distinta. Depois e eu Fran seguimos na pista, abrindo os trabalhos com a nova dos Beatles e emendando Gilberto Gil com Dua Lipa e terminando a noite só no forró (é, pois é…).

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“While she was busy being free…”

Foi maravilhosa a estreia solo de Luiza Villa nesta terça-feira no Belas Artes, dentro da primeira edição do Trabalho Sujo Apresenta que faço após o período pandêmico. Além da voz exuberante e da natural e carismática presença de palco da cantora estreante, ela ainda pode exibi-las transpondo o difícil autodesafio de atravessar o repertório de Joni Mitchell, no show Both Sides Now, em que revisita a obra da cantora em diferentes camadas. Ela começou sozinha ao violão, enfileirando “Circle Game” e “Little Green” sem perder o fòlego ao mesmo tempo em que foi apresentando os integrantes de sua banda, um a um: primeiro o violonista Tomé Antunes (em “Cactus Tree”), depois o tecladista Pedro Abujamra (em “Both Sides Now”), seguido do baterista Tommy Coelho (“Big Yellow Taxi”) e do baixista João Pedro Ferrari (“Carey”), cada um mostrando suas armas e suas habilidades até que a partir de “Hejira”, puderam mostrar como são bem amarrados como conjunto musical – Luiza inclusive, tanto nos vocais quanto na guitarra e no violão. E até o final da apresentação passearam com destreza e alegria por faixas reconhecíveis e empolgantes como “Coyote”, “Help Me” e “In France They Kiss on Main St” e outras mais espinhosas e quilométricas como “Edith and the Kingpin”, “The Hissing of Summer Lawns” (com um solo vocal de derreter qualquer ser vivo) e “Free Man in Paris”, mostrando que estão só começando a mostrar seus talentos. Um show maravilhoso que valorizou meu trabalho como diretor ao lado da produção da Beta Cardoso e da direção de arte da Olívia Pires, Olívia Albegaria e Bertha Miranda, que nos ajudaram com os vídeos, o figurino e a luz da apresentação, formando uma equipe dos sonhos. E é só o primeiro! Ave Joni!

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Sessão de terapia musical

Ao vivo, o formato Micro, que Maurício Pereira adotou em seu disco mais recente ao lado do compadre Tonho Penhasco, necessariamente torna sua apresentação uma sessão de terapia musical em que o mestre aponta suas músicas para nós, colocando-nos no meio de suas autorreflexões. Nesta terça-feira, no Centro da Terra, ele aprofundou-se ainda mais ao fugir do roteiro de sempre puxando canções – próprias e alheias – que só toca quando ensaia esse show com Tonho com o título autoexplicativo Micro Desmontado – A Gaveta Secreta do Ensaio. Por isso tome Roberto Carlos, Gilberto Gil, Beatles “Mamãe Coragem” e Marília Mendonça, “Satisfection”, Rafael Castro, composições inéditas com Tonho, duas versões para “Tranquilo” entre discussões sobre “lugar de falha”, luz e gelo seco, autopromoção de seu recém-lançado livro e lembrança da São Paulo dos anos 60, sem esquecer clássicos como “Mulheres de Bengala”, “Um Dia Útil”, “Pan e Leche” e “Trovoa”. Sempre aquela maravilha.

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Entre o onírico e o erudito

Lindo demais o show que Loreta fez nesta quarta-feira para mostrar seu disco de estreia Antes Que Eu Caia no palco do Bona. Acompanhada de uma formação nada ortodoxa (o saxofonista e tecladista Fernando Sagawa e o quarteto de cordas formado por Thiago Faria, Michele Mello, Letícia Andrade e Wanessa Dourado), entre o onirico e o erudito, ela deslizou sua voz encantadora por canções melancólicas e esperançosas (incluindo “Ai, Ai Ai”, da espanhola Silvia Pérez Cruz) num show que ainda teve a presença de suas irmãs vocalistas do grupo Gole Seco – as formidáveis Niwa, Gui de Castro e Nathalie Alvin -, que ainda renderam uma apresentação extra para a noite com duas canções só no gogó. E no bis, Loreta chamou o violonista Luca Frazão, “a pessoa com quem eu mais toquei na vida”, para tocar a sua “A Arte de Me Enganar”.

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Sentimental e foda

Foi tão bonito quando Manuela Julian abriu seu primeiro show solo nesta terça-feira no Centro da Terra com a versão que fez para “Conto do Pescador”, funk do MC Menor da VG. Primeiro porque mostrou que basta sua voz – sem nenhum acompanhamento instrumental, ela subiu o tom do funk da pista de dança a um espectro quase etéreo, sobrenatural. Depois porque foi quando a vi cantando sozinha essa mesma música num stories no semestre passado que comecei a pilhá-la para fazer esse show. Depois de algumas conversas, ela falou que faria acompanhada pelo Thales Castanheira ao violão e qual foi a minha surpresa quando vi o palco montado com guitarras, teclados e computador. Mas longe de encher as canções, ela optou por roupas mais minimalistas para seu repertório sentimental (título da apresentação), que além das belas músicas inéditas ainda incluiu versões para as músicas que fez com suas bandas (“Consolação”, da Fernê, e “Música de Término”, “Mesmasmesmasmesmas” e “Mexe Comigo”) e de outros autores, como Ava Rocha (“Você Não Vai Passar”, escrita pelo Negro Leo e com um solo foda do Thales), do Dônica (“Como Eu Queria Voltar”) e da banda argentina El Príncipe Idiota (“Novedades”). Um começo foda para uma carreira promissora.

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Uma pequena comunidade

Que maravilha ver o Cine Joia cheiaço neste domingo para assistir ao show de lançamento do segundo disco dos Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, Música de Esquecimento. Com abertura do Jonnata Doll e os Garotos Solventes e participações do próprio Jonnata, Negro Leo, Vítor Araújo e Felipe Vaqueiro (vocalista da banda Tangolo Mangos, tocando gaita em “O Pato Vai Ao Brics”, do Leo), o show mostrou como o grupo está cada vez mais coeso musicalmente e como as músicas novas se contrapõem às antigas de forma radical, embora encarada pelo público como uma enorme saudação coletiva. Foi muito bom vê-los tocar a mesma “Idas e Vindas do Amor” que a Sophia me mostrou quando a banda ainda engatinhava cantada por um público completamente inebriado pela sensação indescritível de estar com sua banda favorita, transformando o grupo e os fãs numa pequena comunidade. Isso infelizmente foi posto à prova num incidente tenso, quando um fã subiu no palco e se atirou de cabeça no chão, sem tempo para alguém pudesse segurá-lo, fazendo-o perder os sentidos em um dos grandes momentos do show, quando tocavam “Delícia Luxúria”, do primeiro disco. E a banda, mesmo abalada (era possível ver nos rostos deles), foi precisa ao lidar com a situação: Sophia parou o show na hora, pediu para o público abrir espaço para que os médicos da casa pudessem retirá-lo e logo todos deixaram o palco avisando que dariam um tempo até saber como estava o fã. A banda voltou minutos depois com a notícia de que o enfermo estava melhor (tanto que até voltou para o público no final do show) e encerrou a apresentação tocando duas músicas além do previsto. Foi um momento crítico que podia comprometer ainda mais o show (e até a carreira do grupo), mas eles souberam lidar com a situação como muitos artistas com mais tempo de carreira talvez não soubessem, embora tenha encerrado uma apresentação que estava com a energia muito pra cima num tom acridoce. Felizmente foi só um susto.

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Historiador e contador de histórias

A chuva de boas vibrações que um show de Paulinho da Viola emite parece emanar apenas de sua presença serena no palco. A fala suave, o canto manso e o toque macio no cavaquinho ou no violão são o centro gravitacional de toda a noite, não importa se toque sozinho, acompanhado por um músico ou pela banda completa. Mas há outro elemento central em seus shows que é o fato de estarmos quase sempre assistindo a uma aula sobre a história do samba carioca. Ele nasceu entre sambistas e pode conviver com quase todo o panteão do samba carioca, sendo parceiro de muitos deles e gravando versões de outros, protagonizando ou assistindo de perto a momentos únicos dessa história. Por isso suas apresentações, como a deste sábado no Sesc Pinheiros, são sempre temperadas por explicações informais misturadas com causos sobre grandes nomes dessa história e sua relação com Paulinho. Modestamente, como lhe é de praxe, ele põe-se como espectador ou agente involuntário da história e cita passagens durante a apresentação, falando sobre a centralidade da caixinha de fósforo nas antigas rodas de samba antes de mostrar sambas de Zé Kéti e Elton Medeiros, sobre seu encontro com Capinam, sua parceria com Eduardo Gudin ou como Hermínio Bello de Carvalho não gostava de ser referido como o descobridor de Clementina de Jesus, esta citada como uma oração ao final da apresentação. Falou sobre como foi a primeira pessoa a gravar “Acontece” de Cartola ou quando Hermínio o transformou em coautor de um samba sobre a Mangueira que foi defendido num festival da canção por Elza Soares – e o constrangimento que isso causou em sua escola, a Portela. Mas em quase uma hora de show, o mestre octagenário (que parece não ter envelhecido nada desde que surgiu em nossa história) resolve abrir sua parte dessa história e enfileira clássico atrás de clássico numa sequência desconcertante: “Sinal Fechado”, “Roendo as Unhas”, “Dança da Solidão”, “Coração Imprudente”, “Pecado Capital”, “Coração Leviano”, , “Argumento”, “Bebadosamba”, “Timoneiro”, “Prisma Luminoso” e “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”. Somos privilegiados de sermos contemporâneos deste mestre.

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