Tudo Tanto #011: Uma nova psicodelia brasileira

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Escrevi sobre o show que juntou O Terno e os Boogarins no mesmo palco na minha coluna Tudo Tanto da edição do mês passado da revista Caros Amigos e aproveitei para falar dessa nova psicodelia brasileira que vem surgindo. Também tem os vídeos que fiz do show, veja aí.

Uma nova psicodelia brasileira
O Terno e Boogarins fazem um show arrebatador mostrando que há uma nova cena de rock lisérgico que conhece bem seus antepassados no Brasil

Ecos da psicodelia dos anos 60 e 70 estão reverberando forte na segunda década do novo milênio em todo o mundo. A química do LSD coloriu corações e mentes quando a primeira geração pós-guerra alcançou a maturidade e a conexão Londres-São Francisco foi a primeira ponte a espalhar a lisergia no ar do planeta. Artistas como Tame Impala, Unknown Mortal Orchestra, Mac De Marco, Beach Fossils, Toro y Moi, Ty Segall, Dirty Projectors, Foxygen e Ariel Pink são alguns entre vários outros representantes de uma nova geração que resgata as paisagens multicoloridas e viagens místicas e misteriosas de meio século atrás através dos meios digitais ao mesmo tempo em que são causa e consequência do revival do vinil que já comentei aqui em outras colunas.

E como na primeira onda psicodélica, essa não é uma tendência isolada e sim global. Ainda nos anos 60 a força da transformadora dessa sonoridade alucinógena chegou ao Brasil, libertando o iniciante rock brasileiro dos bailinhos e paixonites da Jovem Guarda para os horizontes sem fim e os limites inexplorados da experimentação musical com instrumentos elétricos. Os Mutantes e Novos Baianos são apenas a ponta de um iceberg gigantesco que conta com autores de joias celebradas por estudiosos de todo o mundo (como os conjuntos Flaviola e o Bando do Sol, ,Módulo 1000, Os Baobás, Moto Perpétuo, A Barca do Sol, Ave Sangria, Veludo, O Bando, O Som Nosso de Cada Dia, Marconi Notaro, Som Imaginário, Spectrum) e grupos que abrigaram futuros gênios da nossa música (como o Brazilian Octopus que tinha Lanny Gordin e Hermeto Paschoal em sua formação, o Luz Som e Dimensão de Djavan, O Terço de Vinicius Cantuária ou o Vímana, de onde saíram Ritchie, Lobão e Lulu Santos).

E da mesma forma que essa nova onda psicodélica revisita os clássicos internacionais, a versão brasileira também não se esquece dos pioneiros, que também incluem as fases psicodélicas de artistas que não nasceram nesse meio, pinçando faixas e discos coloridos de Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Ben, Tim Maia e até Ronnie Von e Odair José. A geração que inclui nomes como Garotas Suecas, Boogarins, O Terno, Supercordas, Tono, Castello Branco, Luziluzia, Cérebro Eletrônico, Rafael Castro, Lulina, Do Amor e Trupe Chá de Boldo sabe muito bem que andam por trilhas abertas tanto pelos antepassados europeus e norte-americanos quanto pelos brasileiros.

Duas das principais bandas dessa nova geração uniram forças para uma noite memorável no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, no início do inverno deste ano. Foi uma sexta e um sábado que os paulistanos d’O Terno e os goianos Boogarins dividiram o palco e alternaram as aberturas: na sexta os Boogarins abriram para O Terno. No sábado, a noite em que fui, foi O Terno quem começou os trabalhos.

A banda liderada pelo Tim Bernardes é uma subcategoria dentro desta nova psicodelia. Tanto estética quanto tematicamente sua abordagem é autorreferencial, o que garante ao trio o rótulo de banda metapsicodélica, devido ao fato de que algumas de suas letras – quase todas de Tim – falarem sobre o fato de pertencer a uma banda iniciante num mundo explodindo de links, referências e citações. Musicalmente, frequentam eles frequentam o brechó musical dos Beatles em seus últimos dias e dos Mutantes no meio de sua fase de ouro, embora estas duas estejam longe de ser as únicas correntes visitadas pelo trio, que ainda conta com Guilherme D’Almeida (portando um baixo Hofner idêntico ao de Paul McCartney) e o recém chegado baterista Biel Basile. Beatles e Mutantes são os dois principais alicerces da banda – o terceiro é genético e mesmo que o vocalista, guitarrista e tecladista queira, não terá como fugir tão cedo: filho de Maurício Pereira, d’Os Mulheres Negras, ele tem o mesmo timbre e jeito de cantar do pai, além da postura e do rosto não fazer ninguém pensar que ele poderia ser filho de outra pessoa (tema, aliás, de uma das músicas do grupo, só que em formato ficção).

A força d’O Terno é brutal mas melódica e a psicodelia do grupo passeia por brincadeiras com versos, com a métrica, com os acordes e com as referências citadas na letra. Parecem tanto uma banda de rock quanto um esquete de humor sobre uma banda de rock – e eles sabem muito bem disso, embora estejam longe de serem rotulados preguiçosamente como uma banda “engraçadinha”. E aos poucos o grupo entrega-se a solos extensos, duelos instrumentais e climas lisérgicos sem referências externas, como se fosse uma banda dos anos 60.

Já os Boogarins têm uma improvável trajetória: formado a princípio pela dupla Fernando Filho (voz e guitarra) e Benke Ferraz (guitarra), eles vieram de Goiânia com um disco inacreditavelmente retrô, Plantas Que Curam. O disco chamou a atenção no exterior antes de aparecer no Brasil e foi lançado em vinil pelo selo da loja nova-iorquina Other Music, o que fez a banda engatar duas turnês pelo exterior, tocando mais fora do Brasil do que aqui dentro.

O som do grupo é mais fluido e escorregadio que o d’O Terno, a começar pela voz pastosa de Fernando, que quase sempre canta como se estivesse sorrindo, puro carisma. Benke quase não fala no palco, mas rege o quarteto com solos brilhantes. A formação da banda ainda inclui o baixista Raphael Vaz, herdeiro do peso do baixista do The Who John Entwhistle mas preciso como o baixista do Pink Floyd, Roger Waters, bem no início da banda, e o baterista Ynaiã Benthroldo, que surra seu kit de percussão sem necessariamente parecer agressivo. Uma combinação contagiante.

No show, o público era majoritariamente jovem, na casa de seus 20 e poucos anos, e logo que as bandas começaram a tocar, pelo menos um quarto da audiência correu para a beira do palco para ver o show bem de perto. O Terno começou a noite, mostrando mais músicas de seu disco do ano passado (batizado apenas com o nome da banda) do que de seu disco de estreia – e chamou Benke dos Boogarins para dividir uma música do trio paulista, a doce “Eu Vou Ter Saudades”. Depois Tim chamou Fernando para acompanha-los na acelerada “Tic Tac” e logo em seguida os outros três Boogarins subiram ao palco para uma jam session que culminou em uma música inédita, a primeira da noite: “Falsa Folha de Rosto”, mostrando que os Boogarins já estão chegando nos finalmentes de seu segundo disco, que deve ser lançado este ano. Entre as novas ainda teve “6000 Dias” e uma faixa sem título.

Depois o grupo goiano convidou O Terno novamente para o palco, quando diviram “Infinu”, do quarteto, que transformou-se num longo improviso com três guitarras, dois baixos e duas baterias (além do eventual teclado tocado por Tim). A noite chegou ao ápice quando o grupo fechou o show com um momento que só veio reforçar o que disse no começo do texto, quando apresentaram uma versão magistral para o clássico “Saídas e Bandeiras no. 2”, que Lô Borges compôs para o mítico disco Clube da Esquina. O próprio Tim brincou: “A juventude conhece Clube da Esquina”, a receber gritos de aprovação a apresentar a nova música. E aposto que ela – as bandas e o público – os conhecem por causa da internet, não por causa de seus pais.

Emicida e o Haiti

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No show de lançamento de seu segundo disco, o rapper cantou Cartola, Gil e Caetano – escrevi sobre o show lá pro meu blog no UOL e fiz uns vídeos também, veja aí:

Anelis de mansinho

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Logo após o segundo dia do festival Radioca, que cobri no início deste mês, em Salvador, encontrei Anelis Assumpção nos bastidores e ela estava super animada com a pequena turnê pelo nordeste: o show na capital baiana tinha sido o terceiro depois de passar por Aracaju e Feira de Santana. “É curioso e muito satisfatório chegar com o show em lugares tão distantes e sentir que o som já havia batido sem a presença física”, me explica por email, quando lembro que ela comentava que boa parte do público sabia as músicas, “concluo o encontro com a performance e um ciclo se completa.”

“Se não fosse a internet”, continua, “não sei, em Feira de Santana, Aracaju ou Crato, as pessoas poderiam cantar minhas músicas, criar expectativas sobre um show ou mesmo abrir a possibilidade dessa circulação. Vinte anos atrás, o eixo Rio-SP era o que existia de ‘trampolim’ para qualquer artista, sobretudo o independente. Precisava ter força nessa ponte para poder repercutir Brasil afora. Hoje estamos livres disso. As demandas são outras.”

O trabalho com a atual banda – os incríveis Amigos Imaginários, formados pelos Bixiga 70 Maurício Fleury e Cris Scabello, nos teclados e guitarra, Lelena AnhaIa na guitarra, Bruno Buarque na bateria, Mau Pregnolatto no baixo e o Edy Trombone, no trombone e percussão – está cada vez mais azeitado e ela está cada vez mais à vontade entre esse amálgama de black music que misura o soul, o samba, o reggae e o funk numa medida perfeita.

Ela apresentou-se no 75 Rotações que o Radiola Urbana fez no fim de semana passado, recriando o disco Legalize It, do Peter Tosh, na íntegra, e comemora o resultado. “Foi um show lindo e emocionante. O álbum em si tem uma carga emotiva natural”, explica. “Fazer esse tipo de projeto não é fácil, mas vejo como um estudo precioso. Exercitar a língua, a interpretação. Sair de si e mergulhar em outrém. E que outrém!”

Ela agora apresenta-se na Serralheria, nessa sexta-feira, e promete alguma coisa de Peter Tosh (“Devemos fazer uma ou duas do Legalize It que ta fresquinho na memória”), mas não está pensando em novo trabalho, mas em amarrar ainda mais o trabalho atual. “Segue o baile!”, comemora.

As fotos que ilustram essa página são do show da sexta passada e foram tiradas por Daniel Wuo Piovezani. Tem outras lá no Flickr dele. E os vídeos eu fiz no festival na Bahia.

Na medida certa

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O Radioca acertou na proporção e faz uma primeira edição impecável com shows com o melhor da música brasileira atual. Escrevi sobre o festival baiano pro meu blog no UOL. Abaixo, os vídeos que fiz no festival.

Viva Ava

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Dona de um dos melhores discos desse ano, Ava Rocha volta ao palco da Serralheira nesta terça e quarta, repetindo um dos grandes momentos da música brasileira em 2015 quando ela deixou embasbacada uma plateia que reunia músicos, artistas e cabeças da atual cena paulistana. Acompanhada de uma banda afiadíssima (o sambista noise Marcos Campello, o guitarrista experimental Eduardo Manso, o baixista harmonizador Felipe Zenícola e a bateria precisa de Thomas Harres), Ava domina o palco sem o menor compromisso, dona de uma presença tão expansiva e intensa quanto a personalidade exposta no disco que leva seu nome completo, Ava Patrya Yndia Yracema.

“No palco eu procuro não reproduzir o disco mas aproveitar alguns elementos que compõem a poética sonora, isso tem sido transcriado pelos músicos que estão tocando comigo ao vivo”, me explica a cantora. “Esse é o show que eu tenho feito por agora, de lançamento do disco, experimentando o repertório do disco e o do show que contempla varias outras músicas e experimentações. Também tem um viés performático, então o palco é um espaço onde eu estou experimentando e desenvolvendo também um pensamento cênico.” Além das músicas do disco, ela ainda cantou músicas anteriores como “Oloruzui” e “Canção de Protesto”, o poema musicado “Spring” e versões para clássicos brasileiros como “Iracema” de Adoniran Barbosa e “Canoa Canoa” de Milton Nascimento, todas registradas nos vídeos que fiz, abaixo:

Pergunto a ela sobre como anda esta nova cena carioca que viu nascer seu novo disco e ela disse que é “uma zona cheia de muros, mas há vontade para derrubá-los e serão”, disse com a convicção de quem mistura experimentalismo free com canções que tocariam numa rádio AM do meio do século passado. “Nenhum ambiente cultural pode fluir pleno numa cidade que vive tantas injustiças, dentro desse sitema corroído”, continua, “há, no entanto, muito desejo e um fortalecimento do ambiente por conta da rede das pessoas que integram esse ambiente: artistas, músicos, compositores, produtores, gestores, críticos, público etc. Enfim há muita explosão criativa, muita experimentação, muita coisa linda acontecendo mas tem essa dificuldade, o espaço social totalmente deteriorado. O ambiente é por tanto de resistência e ardor.” O Rio tem características específicas, mas ela também está falando sobre o resto do Brasil.

O Terno e Boogarins tocando Clube da Esquina

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O encontro entre duas das principais bandas da nova psicodelia brasileira encerrou com uma versão arrebatadora para “Saídas e Bandeiras No. 2”, de Milton Nascimento e Lô Borges no mítico Clube da Esquina. Mais um aceno para a influência do Clube, que paira cada vez mais forte sobre a produção musical desta década.

Dá pra ver o show inteiro aí embaixo (depois eu escrevo melhor sobre ele, que ainda teve três inéditas do Boogarins: “Falsa Folha de Rosto”, “6000 Dias” e uma ainda sem título, que eu chamei de “De uma Vez”), mas é que essa versão dessa música do Lô…

Tudo Tanto #010: “Agora está tudo mudando, eu tenho um plano”

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Escrevi sobre o show de lançamento de Fortaleza, do Cidadão Instigado, na minha coluna Tudo Tanto da edição do mês passado da revista Caros Amigos. Lá embaixo tem os vídeos que fiz do mesmo show.

A maturidade do Cidadão Instigado
No lançamento do quarto ábum da banda cearense, Fortaleza, o público sabia cantar músicas que uma semana antes não conheciam

“Até que enfim
Eu cansei de me esquivar
Quanto tempo eu pensei em parar
Olho para o lado
Quanta gente diferente
E o que vou fazer?
Se não consigo te esquecer
Vou seguir…vou seguir”

Assim Fernando Catatau, líder do grupo cearense Cidadão Instigado, começa o quarto álbum de sua banda, batizado de Fortaleza, e seu show de lançamento deste que aconteceu no Sesc Pompeia, em São Paulo, no início do mês passado. Ele não está cantando apenas sobre o sentido da vida, sobre um relacionamento ou sobre sua cidade-natal, mas sobre seu próprio conjunto, que levou mais de meia década para finalmente lançar seu novo disco .

Formado por Catatau na guitarra, composições e vocais, Régis Damasceno na segunda guitarra, Dustan Gallás nos teclados e efeitos, Rian Batista no baixo, o técnico de som Yuri Kalil e Clayton Martin na bateria, o Cidadão surgiu no final dos anos 90, com quase esta mesma formação, à exceção do paulistano Clayton, que juntou-se à banda quando ela já havia se mudado para São Paulo, na década passada. No século anterior, só um registro sobreviveu, um CD demo com cinco faixas batizado apenas de EP que hoje é tratado como raridade. A discografia oficial do grupo – O Ciclo da De:Cadência (2002), O Método Túfo de Experiências (2005) e Uhuuu! (2009) – é toda deste século.

Nestes discos, o grupo veio aprimorando uma sonoridade de rock clássico com um sabor especificamente brasileiro, a começar pelo carregado sotaque de seu vocalista e principal compositor. Catatau, guitar hero, conduz a banda para a virada dos anos 60 para os 70, quando os Beatles começavam a se desintegrar e o Pink Floyd e o Led Zeppelin a encontrarem seus rumos. Canções que se descortinam em dinâmicas elétricas que refletem tanto o momento em que o rock psicodélico começa a ficar mais pesado (Jimi Hendrix, Deep Purple, Black Sabbath) quanto como esta sonoridade se refletiu na música brasileira e particularmente nordestina (de Raul Seixas a Tutti Frutti, passando por Zé Ramalho, Fagner e Alceu Valença).

“Até que Enfim” não é a primeira música do disco Fortaleza à toa. A gestação do disco começou ainda em 2012, quando a banda se isolou em uma casa em Icaraizinho de Amontada, no litoral cearense, próximo a Jericoacoara. De lá pra cá foram três anos de amadurecimento musical que, pra começar, exigiu que a banda saísse de sua zona de conforto. Rian, Dustan e Regis trocaram de instrumentos: o baixista agora toca teclados, violão e fez os arranjos vocais, o segundo guitarrista assumiu o baixo e o tecladista pegou a segunda guitarra. Essa nova formatação mexeu com os brios da banda, que começou a pesar mais seu som, deixando as canções ensolaradas do disco de 2009 no passado. O disco continuou sendo gravado nos estúdios caseiros dos integrantes da banda até que, no início de 2015, o disco finalmente foi finalizado: vocais gravados, masterização em Los Angeles e lançamento pra download gratuito em seu próprio site, www.cidadaoinstigado.com.br

Fortaleza é um disco pesado no sentido musical, mas com momentos líricos e contemplativos (como a bela “Perto de Mim”, “Os Viajantes” e “Dudu Vivi Dada”) até um reggae (“Land of Light”). O peso dos anos 70 está nos timbres elétricos, mas eles estão longe de ser retrô. E o recado dado no decorrer do disco tem diferentes endereços, embora a principal referência seja a cidade-natal da banda que batiza o disco. Fortaleza pode ser ouvido como uma declaração de amor ao mesmo tempo que uma cobrança à capital cearense: “Minha Fortaleza ‘réia’ o que fizeram com você?”, pergunta o líder da banda no repente elétrico da faixa-título. Marca a maturidade do Cidadão Instigado em relação à busca da própria sonoridade.

Disponibilizado online na primeira semana de abril, o disco foi apresentado ao vivo uma semana depois de ter sido liberado na internet. E o show no Sesc Pompeia coroou este lançamento quando a banda ousou tocar praticamente o novo disco – e com as músicas quase em ordem idêntica – na íntegra, deixando o bis para tocar duas músicas de dois outros discos anteriores: “Lá Fora Tem” e a homenagem ao canadense Neil Young “Homem Velho”. E mesmo tocando pela primeira vez um disco que havia lançado há apenas uma semana, o Cidadão Instigado ainda contou com o coro da plateia em várias canções. Um momento especial para um disco de tal calibre.

My Magical Glowing Lens: “A truly amazing dream”

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Gabriela Deptulski abriu um portal intertemporal no sábado passado na Casa do Mancha. Seu My Magical Glowing Lens pode ter começado como um promissor projeto shoegaze num quarto em Colatina, no Espírito Santo, apenas com um computador, uma guitarra e vários pedais, mas ela está inconscientemente traçando um cânone desprezado por muitos ao fazer a conexão entre duas vertentes hoje clássicas no rock: a era de ouro dos anos 60 e a era pós-punk dos anos 80.

O fato do My Magical Glowing Lens não ser mais só Gabriela e sim uma banda com baixo, guitarra, teclado e bateria reforça essa conexão, mas ela já estava nos solos de guitarra da cantora e compositora, que embora sussurrasse sob camadas de microfonia seguindo a escola de bandas como Cure, Echo & the Bunnymen, Jesus & Mary Chain e My Bloody Valentine, já ecoavam sombras de Eric Clapton, Syd Barrett, Jimi Hendrix e Robbie Krieger.

A transformação do MMGL em banda conta com a aproximação do grupo The Single Malt, de Vila Velha, uma banda claramente com referências sessentistas e o diálogo do trio com a vocalista e guitarrista está engatando bem. O guitarrista Raími Leone funciona como contraponto perfeito para os solos de Gabriela, puxando bases hipnóticas ou improvisando solos de outra natureza, mais blues que psicodélica. Alternando ente o baixo e o teclado (onde faz as linhas de baixo), Pedro Moscardi deixa evidente as referências do início do rock pesado, ecoando Jack Bruce, Glen Hughes, John Entwistle e até Geddy Lee. Só o baterista Rafael Borges destoa do grupo, não por falta de afinidade e sim por excesso – ao esmurrar seu kit como um Keith Moon, ele perde a sutileza de seu instrumento nas partes que requerem mais intensidade do que força, mas nada que comprometa a apresentação.

A conexão entre as duas vertentes musicais – rock clássico e indie rock – pode ter sido acionada via Kevin Parker – é evidente a influência do guitarrista do Tame Impala no trabalho de Gabriela, mas ela é mais negada pelos fãs do que pelos músicos: o Jesus & Mary Chain se descrevia como o cruzamento de Stooges com “Be My Baby” e Beach Boys, o Echo & the Bunnymen venerava os Doors e o Cure gravou “Purple Haze” do Jimi Hendrix. Ao cutucar nessa ferida, o My Magical Glowing Lens pode estar começando uma utopia do indie rock brasileiro dos anos 90. Quem esteve lá sabe.

Filmei todo o show, saca só:

Ornette Coleman (1930-2015)

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Ornette Coleman era daqueles sobre-humanos como Picasso, Miles e Orson Welles, uma força da natureza encarnada em uma pessoa, que levou a música a uma esfera inimaginável até então. Pude registrar sua apresentação em 2010 no Sesc Pinheiros e, como todos que o viram ao vivo, sou uma pessoa melhor por causa disso. Abaixo, o momento mágico de sua segunda apresentação naquela vinda, quando a luz acabou no meio de “Dancing in Your Head” – e ele continuou mesmo assim:

Aqui tudo que consegui filmar naqueles dois dias:

Ave Coleman.

Como foi o show do Mac McCaughan no Centro Cultural São Paulo: “There is no try”

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Quando o Superchunk veio para o Brasil pela primeira vez, em 1998, eles eram apenas uma das inúmeras bandas que tocavam no Lado B da MTV com “super” no começo do nome. Já era uma banda importante de rock alternativo, mas foi a partir do fim dos anos 90 que começaram a botar suas garras de fora e se estabelecer como uma instituição da cena independente americana – principalmente a partir da maturidade da gravadora Merge, fundada pelo casal central da banda, Mac McCaughan e Laura Ballance. 1998 foi o ano em que bandas de amigos do casal que lançavam discos pela gravadora saíram dos rascunhos e começaram a forjar suas obras-primas, notadamente In the Aeroplane Over the Sea do Neutral Milk Hotel, o triplo 69 Love Songs do Magnetic Fields e o genial Nixon do Lambchop, além dos discos da fase final do Superchunk (Indoor Living e Come Pick Me Up, discos mais sólidos que os nostálgicos primeiros passos da banda, como No Pocket for Kitty, Foolish ou Here’s Where the Strings Come In).

E o grupo veio ao Brasil num dos primeiros impulsos de uma incipiente cena independente brasileira de se conectar com o resto do mundo. O Brasil já tinha assistido a shows do Echo & the Bunnymen, Cure, Nick Cave e Jesus & Mary Chain antes dos anos 90, mas foram esforços heróicos e não se conectavam com a produção indie brasileira, que ainda rastejava em fitas demo e discos lançados por lojas da Galeria do Rock de São Paulo. O primeiro elo do indie brasileiro com o resto do mundo acontece ao mesmo tempo em que nossa cena independente finalmente se percebe como uma só: o festival BHRIF de Belo Horizonte trazia o Fugazi para o Brasil na mesma época em que o Juntatribo de Campinas reunia guitar bands, eletrônicos, rappers, hardcore, grupos de funk metal, os Raimundos, Little Quail e o Planet Hemp tocando para um mesmo público. O próximo passo da dupla que trouxe o Fugazi pela primeira vez ao Brasil – Marcos Boffa e Jefferson Sousa agora respondiam como Motor Music, selo e produtora sediado em uma loja de discos na capital mineira – foi começar uma série de turnês internacionais de bandas independentes estrangeiras pelo Brasil, como Man or Astroman?, Seaweed, Yo La Tengo, Stereolab, entre outros. Essa porta foi aberta com o Superchunk, quando, num tempo em que não havia banda larga, YouTube ou redes sociais, o grupo desbravou o interior do Brasil tocando em lugares que mal cabiam duzentas pessoas.

A quarta vinda de Mac para o Brasil parece coroar estes dois momentos de evolução da cultura indie: a institucionalização da Merge e a maturidade da cena nacional. De lá pra cá o Superchunk acabou e voltou, Mac e Laura deixaram de ser um casal mas continuaram com a Merge ,que lançou o Arcade Fire, o Caribou, o She & Him e o Spoon, ganhando importância no jogo fonográfico ao emplacar artistas no topo dos mais vendidos, além de uma série de bandas menores e trabalhos solo de indies veteranos. A cena brasileira saiu da mendigagem por sobras de grandes festivais para um circuito de festivais indies que funciona em todo o Brasil, da virtual ausência de casas de shows especializadas para uma cena em que turnês por casas do tipo em diferentes capitais torna-se possível, de heróicos donos de selo de fitas cassete para empreendedores com visão para apostar em artistas de pequeno e médio porte, de um público formado literalmente pelos próprios artistas e amigos para um mercado de nicho em ascensão. O Brasil da PELVs é completamente diferente do Brasil d’O Terno.

O momento diferente destas duas cenas indies causou um choque conceitual quando o indie anglófono tornou-se o sabor da vez do mercado fonográfico internacional no começo da década passada, graças à geração de bandas entre os Strokes, os White Stripes e o Franz Ferdinand. Um telefone sem fio que transformou definitivamente a nomenclatura indie – que vinha dos meios de produção destas cenas regionais – em convenção estética, relacionando-se mais a roupas, penteados e hábitos de comportamento do que a um modus operandi. Logo a produção da cena independente misturava-se com uma tendência quase de moda e que seria inevitável no momento em que o independente se profissionalizasse globalmente. Mas a confusão que isso causou no imaginário brasileiro fez muita gente apostar que indie era um modismo passageiro. Felizmente essa confusão está sendo desfeita e aos poucos voltamos a falar sobre não apenas sobre um mercado, mas de uma atmosfera, uma presença física, que permite que artistas se expressem como querem – e não como o público-alvo deveria consumir.

Por isso havia um gosto especial ao assistir a um solitário Mac no meio do teatro de arena de dois andares no meio do Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, em um evento que consolida a gravadora e produtora Balaclava, de Fernando Dotta e Rafael Farah, o núcleo de produção paulistano que lançou discos dos Soundscapes, Séculos Apaixonados, Bonifrate, Holger e Quarto Negro (entre outros) e realizou shows do Mac de Marco e do Sebadoh no Brasil.

Sozinho com sua guitarra ele cantava músicas do Superchunk, do Portastic e de seu primeiro disco solo como se elas tivessem sido compostas para aquele momento, como se não precisassem de baixo e bateria para decolar como canções. A vozinha apertada de Mac misturava-se com uma guitarra seca com poucos pedais e funcionava quase como uma conversa com o público que estava a apenas poucos metros dele. Era um diálogo que vez por outra caía para a nostalgia quando a audiência suspirava feliz os contracantos dos refrões de “Digging for Something” e “Slack Motherfucker”.

Dentro de um festival que ainda contou com as bandas brasileiras Soundscapes e Shed e o grupo norte-americano Shivas (pronto, quatro bandas, duas gringas e duas brasileiras durante dois dias e temos um festival – pra que dezenas de bandas em quatro ou cinco palcos?), a apresentação de Mac funcionou como uma aula magna de indie rock. Não que ele tenha precisado explicar nada, afinal estava tudo nas entrelinhas de suas canções (ou explícita no refrão de “Only Do” – “não há tentar, só fazer”), embora tenha sido um prazer ouvi-lo dizer que iria tocar da Casa do Mancha (perdi essa, infelizmente). É como se estivéssemos retomando aquela discussão que começou na primeira turnê brasileira do Superchunk mas que perdeu-se entre hypes e divergências estéticas vazias.

Filmei o show todo abaixo: