O primeiro release dos Ramones

Que pérola!

Pinçada pelo Dangerous Minds.

O release do Bloco do Eu Sozinho

Onde você estava em 2001? Eu tinha começado a trabalhar em São Paulo (ainda morando em Campinas) e havia escrito o release do segundo disco do Los Hermanos – e, por isso, não cheguei a escrever sobre o disco na época em nenhum outro lugar. Mas tropecei com o texto no site da banda e me liguei que justamente quem precisava ler não havia lido, uma vez que esse material fica disponível apenas para quem trabalha com música (quando é lido). E como daqui a pouco é carnaval (já? Já), taí a íntegra do texto:

Los Hermanos continuam o Baile de Carnaval. A charanga ainda ecoa sobre o batuque secular do samba se espremendo entre marchas-rancho, chá-chá-chás e boleros para chegar à massa. Mas a celebração da alta noite aos poucos vai cedendo ao cansaço físico e a festa vai esmorecendo. Não estamos mais no meio de 250 mil compradores de disco berrando o refrão “Ô Anna Júliaaaaa”, nem no meio de uma seqüência acelerada de neo-boleros pós-pagode que transformaram a tradicional festa brasileira numa máquina registradora trabalhando em ritmo industrial. O porre vai virando ressaca, a boca vai ressecando, acabou-se o que era doce. Mas, como a banda das quatro noites, o grupo carioca segue tocando. Mas reduzem a marcha, literalmente. O frenesi frevo/axé/baião da eletricidade rock fica em segundo plano. É acessório, cosmético. Não adianta forçar o público para pular – olhe para eles, derrubados uns por cima dos outros.

Estamos entrando na quarta e última fase de qualquer boa noite de carnaval, aquela enunciada pelas emblemáticas “Bandeira Branca” e “Máscara Negra”. O trombone assume uma função tão importante quanto a guitarra no primeiro disco e o tom azul-madrugada do instrumento toma conta do segundo disco do Los Hermanos.

Bloco do Eu Sozinho canta o fim do baile, o nascer do dia, as pessoas acordando ainda meio bêbadas, entre fantasias rasgadas, garrafas derrubadas pelo chão, confete e serpentina desbotados pela mistura indecifrável de líquidos espalhados pelo chão. Canta para os vários solitários que atravessaram a noite inteira entre flertes e sorrisos e acabaram sem par como vieram. Mas agora eles estão amarrotados, suados, usados, borrados. O final de um baile de carnaval sempre vem mostrar para cada um de nós quem realmente somos. A fantasia cai tão pesada quanto a realidade que, indefectivelmente, é triste.

O grupo sente isso, sempre sentiu. Mesmo nos momentos mais eufóricos de seu primeiro disco, a felicidade vinha apenas como um raio de sol no horizonte.

Contemplativo e cético, o vocalista e guitarrista Marcelo Camelo caía na triste constatação dos poetas românticos, de que a melancolia é o estado natural do ser humano. Pintava-se de palhaço para fazer os outros rirem, enquanto, por dentro, estava chorando. Assim o conjunto se sentia em meio ao turbilhão “Anna Júlia”, o hit jovem guarda que catapultou o grupo de suas raízes underground ao panteão de plástico do mercadão pop. Enquanto todos cantavam sorrindo a plenos pulmões, o grupo se sentia preso à uma música que não representava o todo de seu trabalho, numa encruzilhada clássica na história da música popular: ser ídolos de multidões ou queridos de poucos. Entre um caminho e outro, o grupo preferiu trilhar seu próprio rumo, abrindo a terceira via à foice. Para isso, se reuniram em um sítio no interior do Rio de Janeiro, onde começaram a calibrar o que se tornaria o disco que está saindo. A saída do baixista Patrick Laplan foi suprimida pela participação especial do amigo Kassin (do Acabou La Tequila, influência confessa do grupo) e a produção ficou por conta do cobra Chico Neves.

Curtindo o disco como pinga de alambique, retrocederam a um tempo em que a bossa nova não havia transformado o samba em ritmo pré-programado de teclado. E voltaram para o ano 2001 como uma banda de samba. Como se o rótulo “MPB” não existisse, como se fazer samba fosse tão natural a qualquer brasileiro, independente de sua faixa etária, classe social ou formação acadêmica. É um exercício de recriação da genealogia do rock brasileiro: Noel Rosa é o nosso Robert Johnson, Chico Buarque nosso Bob Dylan, Cartola nosso Muddy Waters, Beth Carvalho uma Aretha Franklin, Jair Rodrigues um James Brown e por aí vai…

Sim, Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante (voz e guitarra), Bruno Medina (teclados) e Rodrigo Barba (bateria) formam uma banda de samba, apesar de virem da classe média, do curso superior, da pele branca e da formação baixo-teclado-guitarra-e-bateria. Em seu segundo álbum, eles mergulham ainda mais fundo no fundo de quintal, temperando o sambão com doses de hardcore,rock alternativo, levadas latinas, um microponto de psicodelia beatle e compassos mutantes. Deixam de lado o astral Red Hot Chili Peppers/Mr. Bungle que o primeiro disco transparecia e se devotam à melodia, cantando o fim da festa incessante que eles mesmos eram até então.

Mas se o tom do disco remete à quarta-feira de cinzas, ele também vê o nascer do novo século como um fim de carnaval. Mas em vez de correr atrás de recursos tecnológicos e futurísticos para falar sobre a aurora do novo tempo, eles voltam ao começo do século 20, usando elementos das primeiras décadas dos anos 1900 como fantasia. Há referências de modernismo, vaudeville, citações em francês, bailes de máscaras, maxixe, atenção aos detalhes, literatura, eles colocam o Bloco do Eu Sozinho na rua em busca da mesma ingenuidade frívola dos primeiros anos do século passado. Procuram,assim, fugir da ironia que tentou, de todo jeito, encaixar o grupo em rótulos esdrúxulos e diferentes comportamentos.

O excesso de referências musicais deixou de ser um simples problema de arranjos. Quase todas as faixas do disco atravessam várias fases, a estrutura das canções (mais complexas que as do primeiro disco, hoje vistas pela banda como “um rascunho”) alcança diferentes pontos de vista, sem dificuldade ou forçar a barra. Como o Clash fez no clássico London Calling, eles contam a sua versão da história transformando tudo em samba (enquanto o grupo inglês pulverizava tudo em punk) a citação (incidental?) que o trombone faz no primeiro som ouvido no disco remete imediatamente à introdução instrumental da faixa-título do disco de 1979. Seja qual for o território musical, a linguagem melancólica e o batuque do samba estão ali, onipresentes. Não é à toa que a editora de músicas do grupo seja chamada Zé Pereira.

Mas por baixo das letras tristes e contemplativas, os Hermanos aproveitam para espetar quem os incomoda. Os “vocês” espalhados pelo belíssimo encarte podem se referir ao fã, à crítica, ao mercado, a certas publicações (há citações ainda mais explícitas, embora maquiadas como letra de música), ao público que comprou o grupo só por causa de “Anna Júlia”, ao seguidor fiel dos tempos do underground carioca. A letra de “Cadê teu Suin-?”, uma brincadeira com sílabas, contém desde a rixa não declarada entre Tom Zé e Caetano Veloso, cobranças de diretores artísticos, desculpas esfarrapadas, críticas à dita “nova MPB”, o peso do refrão exigido… O grupo passa adiante “Eu que controlo o meu guidon” sem dar ouvidos a quem ladra. O disco termina convicto de que eles fizeram o melhor que podiam ao não repetir o primeiro álbum. “Quero não saber de cor, também”, canta Camelo entre as cordas e um surdo de escola de samba, “pra que minha vida siga adiante”.