Toninho Mendes (1954-2017)

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Hoje revistas em quadrinhos são álbuns, desenhistas e roteiristas são tão conhecidos quanto astros do rock e há lojas especializadas nesta mídia, que trazem publicações de todo o mundo. Uma realidade muito diferente da qual eu cresci. Fora a editora Abril (que publicava apenas tudo da Marvel, da DC, da Disney e do Maurício de Sousa), algumas publicações heróicas de editoras específicas e tiras em jornal, não se encontrava nada de quadrinho em lugar nenhum. Graphic novel era um conceito quase hermético, a expressão quadrinho adulto parecia uma contradição e as revistas eram conhecidas como “revistinhas” não apenas por seu tamanho compacto, mas por serem, em sua maioria, destinadas ao público infantil.

Foi quando no meio dos anos 80, quando ninguém esperava, uma horda de bárbaros invadiu as bancas apresentando personagens punks, bêbados, marginais, drogados, andando de skate, tocando guitarra, falando de política, incomodando geral. Primeiro foi a revista Chiclete com Banana, que nos apresentou a figuras como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Meiaoito, Walter Ego, Bibelô, Mara Tara, Skrotinhos e personagens que pareciam ter saído de algum puteiro, algum pulgueiro, algum esgoto. Era a versão brasileira dos Warriors, os Selvagens da Noite, o futuro apocalíptico de Fuga de Nova York acontecendo no Brasil, em plena São Paulo. Depois veio a revista Geraldão, com seus personagens toscos e mal desenhados, mas igualmente putanheiros: o personagem-título, o casal Neuras, Dona Marta, Zé do Apocalipse, Doy Jorge… A revista Piratas do Tietê – que, ao contrário das revistas tradicionais, era horizontal – trazia a nau com os biltres do título, um condomínio lotado de figuraças, um gato branco e uma gata preta, um puxa-saco imortal e outras figuras imaginadas por Laerte. O encontro destes três heróis acontecia na hilária adaptação do filme de John Landis Três Amigos!, em que os três desenhistas vestiam os mesmos trajes de caubóis mexicanos de mentira que Steve Martin, Chevy Chase e Martin Short usavam no filme de 1986. Além desta, havia a cabeçuda Circo, que além de histórias com tons menos escrachados que as três primeiras revistas, também trazia os clássicos quadrinhos que Luiz Gê fez naquele período (reunidos, posteriormente, na excelente antologia Território de Bravos). E também a imortal Níquel Náusea, casa não só dos bichos de Fernando Gonzales, como de autores que orbitavam ao redor destes cinco principais nomes, como Spacca, Newton Foot, Guto Lacaz e Fábio Zimbres. As peças daquele quebra-cabeças de profanação eram reunidas por um selo que todos reconheceriam como uma grife maldita: a Circo Editorial.

Aquela invasão era tudo que um pré-adolescente queria da vida – e tudo que seus pais não queriam. A quantidade de sexo, sacanagem, escatologia, violência, afronta e escrotidão contida naquelas páginas poderia ser resumida na imensa quantidade de palavrões publicados. Palavrões até hoje são tabu no Brasil – já viu alguma revista sendo vendida em banca com um palavrão na capa? Não pode.

As revistas da Circo não só tinham palavrão como testavam todos os limites que poderiam testar. Foi ali que Laerte já começara a mostrar seu lado feminino, mesmo que ainda disfarçado de piada. O zine Jam, que vinha encartado nas páginas do meio da Chiclete com Banana reunia literatura beat com teatro do absurdo, free jazz com filmes de terror, rock psicodélico e experiências sexuais. E muitas drogas. E muita putaria. E muito rock. Alto. Eram só quadrinhos mas dava pra sentir o cheiro do cigarro, o gosto da cachaça, o som do bar lotado, a textura do pé descalço pisando num cocô. Era tudo que a TV, os jornais, as revistas e as rádios não queriam. Era um país que ainda sofria do trauma da censura da ditadura militar. Não existia internet nem produtos importados. As revistas publicadas pela Circo Editorial (e, na paralela, a heróica Animal) funcionaram como os anos 60, 70 e 80 para um país que parecia ter parado em algum momento entre o suicídio de Getúlio e inauguração de Brasília.

Com o tempo descobri que a Circo Editorial era obra de um editor nato, que publicava, na raça, revistas que ele achava que tinham de ser lidas. Toninho Mendes, que morreu na manhã desta terça-feira, não era um executivo do mercado editorial – era um fã com instinto pra perceber que não estava só. Lançava as revistas que queria ler e descobriu uma multidão de semelhantes. Centenas de milhares de moleques de todas as idades, para ser mais exato. As revistas tinham uma circulação invejável até para as revistas ditas mais sérias.

Foi ele quem colocou São Paulo no mapa da cultura pop brasileira da segunda metade do século 20, uma era dominada pelo Rio de Janeiro cenográfico da Rede Globo, e, principalmente, nos ensinou que era possível gostar de quadrinhos feitos no Brasil. Antes dele, o quadrinho brasileiro era basicamente Maurício de Sousa a a geração que cresceu no Pasquim, cujo humor visual estava mais próximo do cartum do que das HQs (mesmo com as histórias de Ziraldo, os personagens de Henfil e as tiras do Veríssimo). Com a Circo Editorial, ele não só tirou o atraso do Brasil em relação ao mercado internacional como mostrou que era possível ser quadrinista também. Do mesmo jeito que a Circo despertou centenas de milhares de novos fãs do formato, também pariu milhares de novos autores.

Sua morte não tem o impacto que deveria pois ele sempre trabalhou nos bastidores, mas a importância de sua vida é ímpar – tanto no mercado editorial quanto no meio dos quadrinhos no Brasil. Deixo aqui meu agradecimento público a este sujeito que foi fundamental na minha formação pessoal – a minha e de toda minha geração.